Miguel Reale Júnior*
Haveria da parte dos filhos em relação aos pais, do
marido em relação à mulher, da mãe em relação à filha o direito de
requerer judicialmente que lhe seja dedicado afeto? Haveria a
possibilidade de alguém pretender o bem-querer de outrem como dever
jurídico por ser seu filho, marido ou mãe? Como impor a alguém ser
afetuoso em razão de laço de sangue ou de liame matrimonial? Por não se
ter sido afetuoso, pode-se transformar essa falta de afeto em dinheiro,
por descumprimento do dever de agir afetuosamente?
Essa questão vem sendo erroneamente apreciada pelos tribunais,
culminando com recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na
qual se confundem integralmente direito e moral. Dentre os vários
exemplos, há duas decisões conflitantes do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais. Segundo o entendimento da 7.ª Câmara Cível, caberia ao pai pagar
indenização, embora prestasse regularmente alimentos, "em face da dor
sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do
direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico". Mas, em
decisão oposta, a 12.ª Câmara Cível, com razão, considerou indevida a
indenização por danos morais em vista da ausência da figura paterna:
"Ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor", pois "a paternidade
requer envolvimento afetivo e se constrói com o passar do tempo, através
de amor, dedicação, atenção, respeito, carinho, zelo, etc, ou seja,
envolve uma série de sentimentos e atitudes que não podem ser impostos a
alguém e muito menos serem quantificados e aferidos como dano
indenizável".
No STJ decidiu-se que caberia ao pai pagar à filha indenização, pois
houve ausência quase completa de contato paterno com a reclamante, em
descompasso com o tratamento dispensado a outros herdeiros. Hoje casada e
professora, a filha declarou a este jornal: "Desde que nasci ele nunca
me quis". Revelou, também, que em toda a sua vida sentiu falta de ter um
pai: "Uma pessoa para me aconselhar, para conversar, para me ajudar no
que eu precisasse, eu nunca tive. Eu me encontrei com meu pai algumas
vezes, tanto que ele pagou a pensão porque foi obrigado, mas em nenhuma
das vezes ele me deu atenção".
Para a ministra Nancy Andrighi, há deveres de convívio, cuidado,
educação, transmissão de atenção, acompanhamento do desenvolvimento
sociopsicológico dos filhos: "Amar é faculdade, cuidar é dever". A seu
ver, além do estabelecido na lei, "os pais devem garantir aos filhos, ao
menos quanto à afetividade, condições para adequada formação
psicológica e inserção social".
No caso, a filha conseguira a "inserção social", mas a ministra
entendeu, conforme noticiou o Estado (2/5), não se poder negar ter
havido "sofrimento, mágoa e tristeza", que persistem como decorrência
das omissões de cuidado do pai, daí derivando dever de indenizar. No seu
entender, há, para além da lei, deveres de transmissão de atenção e de
afetividade. Estes, portanto, não defluem da lei, mas de juízo moral do
julgador, comovido com o sofrimento da filha, quando é certo não ser
eventual dor, de difícil constatação, que legitima indenização, mas sim a
violação a bem jurídico essencial, garantido pelo direito. A conduta do
pai desatencioso com o filho, apesar de cumpridor dos deveres
alimentares, pode ser moralmente censurável, mas não ilícita.
Ora, se o dever não decorre da lei, mas de juízo moral, inexiste
pretensão juridicamente assegurada, pois não há direito subjetivo ao
afeto, transformando-se o amor em dever jurídico. Se era incabível
requerer judicialmente, quando criança, que o pai lhe dedicasse afeto,
como depois transformar a ausência desse afeto em indenização monetária?
Mistura-se o moralmente reprovável com o juridicamente exigível, quando
apenas cabe indenização por descumprimento de dever jurídico. Pode ser
censurável não ter afeto pelo filho, mas tal não constitui falta de
cuidado legalmente estatuído e a lei jamais poderia impor a efetividade
de carinho paterno.
A frase de efeito, repetida na imprensa, "amar é uma faculdade,
cuidar é dever" incide em equívocos, pois faculdade consiste na
possibilidade de exercício de um direito. Amar não é uma faculdade, é
sentimento espontâneo de bem-querer que não deriva da lei.
Cuidar de criança ou adolescente é um dever, mas dentro de quais
limites legais? O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente
estabelecem que cumpre aos pais prover alimentos: nutrição, saúde,
habitação e educação. No Código Penal estatui-se ser crime o abandono
material e intelectual consistente em deixar, sem justa causa, de prover
a subsistência do filho ou sua instrução. No campo do direito não se
confunde cuidado com cuidar afetivamente.
Dar afeto ou cuidar afetivamente - ser conselheiro, amigo, garantir
equilíbrio emocional e inserção social - não constitui um dever
jurídico, a não ser que se queira instituir a hipocrisia por força de
lei. Muitas são as circunstâncias que a vida apresenta quanto aos
afetos, a começar pela espontânea afinidade surgida sem se saber por
quê. Pretender colocar o Estado a ditar o sentimento do afeto é um
autoritarismo paternalista inaceitável. Com clareza assinalou a
jornalista Eliane Brum não caber a nenhum tribunal analisar
"sentimentos" e desferir punições pela ausência ou excesso de
"sentimentos".
A decisão é preocupante exemplo de mercantilização das relações
afetivas, com o risco de incompatibilidades naturais gerarem mágoa e,
depois, a ação indenizatória como represália. Grave é o Estado assumir o
papel de grande tutor, para suprir o desamor, impondo compensação em
dinheiro, que algumas vezes pode apenas ter gosto de vingança. No STJ
acaba-se, sem se aperceber, por consagrar o dever de cuidar
amorosamente, substituindo-o pelo dever de indenizar monetariamente.
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* Jurista. Professor Universitário. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 02/06/2012
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