Um disjuntiva atormenta, não raro, aqueles que buscam superar o
capitalismo, em época de incertezas e após o fracasso do socialismo
estatista. Onde concentrar energias, para a construção do “outro mundo
possível”? Na mudança pessoal das atitudes, que pode contagiar pelo
exemplo? Ou transformando as estruturas que, por multiplicarem a lógica
do lucro máximo, produzem permanentemente desigualdade, alienação e
depredação da natureza?
Talvez a pergunta (e a angústia despertada por ela) sejam
desnecessárias e até contraproducentes, pensa alguém com décadas de
ativismo junto aos movimentos sociais. Carlos Alberto Libânio Christo, o
“Frei Betto” considera que ambas respostas, se absolutas, podem
conduzir a um labirinto. A crença na mudança apenas “a partir das
estruturas”, desenhou o fracasso da União Soviética e das experiências
que seguiram seu projeto. Mas esquecer as grandes reformas, e focar
apenas no indivíduo, produz ilusões como a da igreja católica – de cujos
colégios, muito bem intencionados, “continuam saindo políticos
corruptos”…
Frei Betto tem uma alternativa a estas duas escolhas apartadas. Ele
quer ver as mudanças de atitude pessoal convertidas em esforços pela
transformação mais ampla do mundo. Uma como complemento da outra, nunca
enquanto oposição. Para demonstrar que é possível, recorre a alguns
exemplos.
Que tal uma reforma agrária? O Brasil é, junto com a Argentina, um
dos dois países das Américas que nunca rompeu com o latifúndio. Ao
permitir que milhões de produtores praticassem a diversidade, tendo
acesso à terra, esta transformação não estimularia práticas sustentáveis
e orgânicas, opostas às do grande agronegócio?
Se nos desencantamos tanto com a colonização das instituições pelo
poder econômico, por que não imaginar uma grande reforma política –
profunda o suficiente para proibir os grupos privados de financiar
campanhas eleitorais, e “comprar” parlamentares e governantes? Diante de
uma mídia que age como partido político, sonega informações aos
cidadãos e ataca, na prática, a liberdade de expressão, a saída não
seria uma redistribuição das concessões públicas de TV e rádio, e
programas de incentivo à produção de conteúdos na blogosfera?
Frei Betto lança, em suma, um desafio. E se a mesma criatividade
capaz de produzir atitudes pessoais transformadoras for mobilizada para
desenhar políticas públicas de sentido oposto às atuais? E se nossas
visões de mundo – que valorizam a igualdade, a colaboração, novas
relações entre ser humano e natureza – puderem ser traduzidas, também,
em grandes mudanças estruturais?
Ligado à Teologia da Libertação, escritor e assessor de movimentos
sociais, Frei Betto já tinha uma longa história de luta política quando
se tornou assessor especial do presidente Lula e coordenador de
mobilização social do programa Fome Zero, em 2003 e 2004. Preso pelos
militares entre 1969 e 1973, recebeu em 1982 o Prêmio Jabuti pelo livro
Batismo de Sangue, em que descreve a participação dos frades dominicanos
na resistência à ditadura. A entrevista publicada a seguir é o
resultado de um diálogo com a jornalista Júlia Magalhães, no âmbito da
pesquisa sobre a participação política no Brasil que o instituto Ideafix
realizou para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).
Outras Palavras – Qual é sua percepção sobre a participação política do cidadão brasileiro?
Frei Betto – Diria que, no geral, o brasileiro se
interessa pouco por política e acaba entrando no engodo dos políticos,
que procuram passar o sentimento de nojo pela política. Quem tem nojo da
política é governado por quem não tem. Tudo o que os maus políticos
querem é que a gente tenha bastante nojo, para que fiquem à vontade nas
suas maracutaias.
Contudo, me surpreendeu a mobilização através das redes sociais no 7
de setembro [de 2011]. Até então, só evangélicos, gays e os que são a
favor da liberação da maconha ocupavam as ruas. Foi muito positivo ver
em várias cidades do Brasil a manifestação contra a corrupção, pela
transparência dos votos dos deputados e senadores, pela reforma
política, pela reforma agrária, pela auditoria da dívida externa.
Temos infelizmente uma democracia meramente delegativa: vamos às
urnas a cada dois anos delegar a nossa representação a um vereador,
deputado, presidente, mas temos muito pouco grau de participação.
Estamos ainda longe de uma democracia verdadeiramente representativa,
principalmente dos setores populares, e mais longe ainda de uma
democracia participativa em que sociedade política e sociedade civil
dialoguem de igual para igual.
OP – Como o cidadão pode participar de forma mais efetiva?
FB – Haveria dois canais prioritários: primeiro as
escolas, que são unidades políticas, mas não têm consciência disso. Elas
acabam deixando seus alunos vulneráveis à mídia, principalmente à tevê e
à internet, em termos de formação política. O segundo seria a própria
mídia, se ela tivesse interesse em formar cidadãos. Mas a mídia tem
interesse em formar consumistas, porque é movida pela publicidade. A
cidadania tem um espírito crítico, e o espírito crítico é um antídoto ao
consumismo. A consciência cidadã da nação brasileira melhoraria muito
se o ministério da Educação, os diretores e professores, os donos de
escolas tivessem consciência de que a escola deve formar
prioritariamente cidadãos, não consumistas e não mão de obra qualificada
para o mercado de trabalho.
OP – Você citou questões importantes. Quais os grandes temas que mobilizam a sociedade brasileira, hoje, a seu ver?
FB – Infelizmente os temas que mobilizam a sociedade
brasileira não são os que interessariam. Gostaria que a sociedade
brasileira se mobilizasse pela reforma agrária, pela reforma política,
por reformas de estrutura que o Brasil deseja desde que me entendo por
gente. A estrutura fundiária do Brasil nunca foi mexida. Somos, com a
Argentina, os dois únicos países das três Américas que nunca passaram
por uma reforma agrária. As pessoas se mobilizam pela liberalização da
maconha, por fatores evangélicos etc – tudo bem, é um direito delas. Mas
infelizmente não se mobilizam por uma reforma política que acabe de
fato com a impunidade e a imunidade dos políticos. Não adianta só
sairmos nas ruas e gritar “abaixo a corrupção”. Qualquer pressão nesse
sentido é positiva, mas insuficiente: a corrupção só vai acabar no
momento em que houver mecanismos institucionais capazes de coibir e
punir os corruptos e os corruptores. Falta essa consciência na sociedade
brasileira.
OP – Existe um discurso bastante presente na
atualidade, que é de descrença nas instituições e busca por
transformação através dos indivíduos. Qual é sua opinião a respeito?
FB – A Igreja investiu durante séculos nessa utopia
de que, mudando as pessoas, mudaríamos o mundo. Basta ver os colégios
católicos, dos quais saíram notórios políticos corruptos. O método
inverso foi tentado pelo socialismo soviético e não deu certo. Portanto,
as estruturas e as pessoas mudam umas às outras.
A questão não é o que vem primeiro, o ovo ou a galinha: são as duas
coisas. As pessoas só mudam mudando o mundo. Explico: não adianta querer
que seu filho não jogue a caixa de chicletes na rua, se você joga um
maço de cigarros, porque a criança é mimetista. Não adianta querer que
os políticos não sejam corruptos se eles sabem que não há punição para a
corrupção. Então precisamos criar um projeto de sociedade na qual
desvios como a corrupção e o nepotismo sejam rigorosamente punidos – e
mudar, ao mesmo tempo, os padrões do sentido da vida humana.
Hoje a vida humana está reduzida à busca do prazer, no sentido
hedonista da riqueza, do poder, e não das virtudes subjetivas. Isso está
levando a uma desumanização que é setorizada pelo crescimento do
consumo de drogas. No fundo, o que o drogado está dizendo é: “quero ser
feliz e sei que a felicidade não está fora de mim. Mas, como não tenho
um sentido de vida que me provoque um ânimo, um entusiasmo, busco na
química esse efeito”.
OP – Como é possível mudar isso, você vê um caminho?
FB – Volto a dizer: através da escola e da mídia.
Mas, para isso, seria preciso ter um Estado que regulasse a mídia,
ignorando essa falácia de que regular mídia é censura. Na verdade,
censura é quando um determinado canal de televisão convoca um grupo de
formadores de opinião para um debate e determina a exclusão de Frei
Betto – porque ele é progressista, de esquerda, solidário a Cuba. Isso é
censura, democracia da boca para fora. Na hora de debater o 11 de
setembro, a crise econômica, a guerra da Líbia nos grandes veículos de
comunicação, você não vê opiniões divergentes.
Um fato recente demonstra bem o que estou dizendo: enquanto os juros
subiam, o Banco Central era autônomo. Agora que os juros caem, o Banco
Central perde autonomia. Na verdade, a queda dos juros não interessa ao
setor financeiro, então eles inventam essa falácia de que é perda de
autonomia do Banco Central.
"...estamos cada vez mais reduzidos a
um consumismo exacerbado que
esgarça as relações humanas,
que substitui
os valores humanos por objetos.
Ou seja: sou, perante você, tanto mais
valorizado quanto mais bens eu consumo,
ou tanto menos quanto menos
bens
eu possuo."
OP – Esse é um discurso sobre liberdade bastante presente. Queria que você falasse mais sobre isso.
FB – Por exemplo, você lê uma coisa no jornal e fica
indignada: que liberdade de expressão tem para contestar? É liberdade
deles, para eles. A população tem muito pouco canal de manifestação. A
democracia existe para uma minoria que tem poder aquisitivo. Que
liberdade tem uma faxineira cuja família mora no Nordeste de visitar
essa família? Que garantia tem de que o filho dela vai chegar à
universidade?
Estamos falando em liberdade para uma minoria, esses 8 milhões de
brasileiros que pagam impostos – mas somos quase 200 milhões! Liberdade,
hoje, no Brasil, é ir ao mercado escolher sua marca de cerveja. Não se
pode escolher entre diferentes modelos de sociedade. Sequer é
permissível que democracia e capitalismo não sejam considerados
sinônimos.
OP – O consumo é um grande tema, hoje?
FB – Sim, porque estamos cada vez mais reduzidos a
um consumismo exacerbado que esgarça as relações humanas, que substitui
os valores humanos por objetos. Ou seja: sou, perante você, tanto mais
valorizado quanto mais bens eu consumo, ou tanto menos quanto menos bens
eu possuo. São as mercadorias que eu porto que me agregam mais ou menos
valor social. Isso é um processo de reificação do ser humano, de
desumanização brutal. Temos que lutar contra isso.
BF – E de que forma esse apelo ao consumo se reflete na política?
FB – O apelo ao consumo cria condicionamentos, cria
consciência. Como os políticos são financiados por grandes empresas, são
incapazes de proibir, no Congresso Nacional, que no Brasil uma criança
possa ser ator ou atriz de peças publicitárias; ou que a publicidade de
alimentos notoriamente nocivos seja veiculada nos meios de comunicação.
Os políticos estão com o rabo preso com essas grandes empresas que
financiam suas campanhas, e aí o silêncio é conivência.
"Qual é o sentido de um
programa
como o Big Brother? A meu ver,
é um programa perverso, jamais
deixaria
um filho, com menos de 16 anos,
assistir àquele programa.
Ele
sequer tem um momento em
que se discute um poema do Drummond,
da Adélia
Prado, nada.
É absolutamente permissivo, pornográfico,
um programa de
animalização
do ser humano – e no entanto tem
a maior audiência da tevê
brasileira."
OP – Qual sua opinião a respeito da discussão sobre o controle social das mídias no Brasil?
FB – A mídia radiofônica e televisiva pertence à
União – embora seja gerida como se pertencesse a determinadas famílias. E
as concessões, que têm prazo determinado, são renovadas
automaticamente. Então é preciso, sim, um grande controle social sobre a
mídia.
Para um médico que faz uma safadeza, como o Roger Abdelmassih, que
abusava de pacientes mulheres, existe um conselho de medicina que pune.
Isso não existe na mídia. Se uma revista arrasa com você, você vai levar
anos tentando processá-la, e dificilmente terá recursos para obrigá-la a
reconhecer que mentiu a seu respeito. Um jornalista que notoriamente
falseia notícias, degrada a imagem de pessoas do bem, dificilmente será
punido; não conheço um único caso. Agora, conheço o caso de um veículo
que recorrentemente emite uma imagem execrável de pessoas de bem, como a
revista Veja.
OP – A criação de um conselho para fazer o
controle social das mídias, por exemplo, seria uma forma de participação
política da sociedade?
FB – Claro. Deve ser formado por pessoas que sejam
independentes dos veículos de comunicação e entendam de formação de
opinião, de mídia. E essas pessoas existem. Qual é o sentido de um
programa como o Big Brother? A meu ver, é um programa perverso, jamais
deixaria um filho, com menos de 16 anos, assistir àquele programa. Ele
sequer tem um momento em que se discute um poema do Drummond, da Adélia
Prado, nada. É absolutamente permissivo, pornográfico, um programa de
animalização do ser humano – e no entanto tem a maior audiência da tevê
brasileira.
OP – Como você vê o jovem nesse contexto?
FB – Os jovens acabam convencidos de que essas
figuras consumistas de Big Brother etc. são seus ídolos. Alguns são
vulneráveis a esse apelo pelo poder, riqueza e beleza; e sofrem muito
porque esse apelo é para um em cada 10 mil. Os demais sofrem uma grande
frustração, que gera depois depressão e consumo de drogas, porque não
conseguem realizar os anseios embutidos na mídia.
"Nossa liberdade hoje é muito restrita,
as
pessoas têm medo da rua, do público,
estão cada vez mais engaioladas
em
prisões de luxo. Estamos abrindo
mão de nossa liberdade em nome da
segurança
– e isso é grave."
OP – E a questão das redes sociais?
FB – As redes são o que há de mais democrático para
veicular informação e mobilização, embora também veiculem violência,
pedofilia, pornografia. Dois governos foram derrubados graças às redes
sociais, o da Tunísia e o do Egito. A internet é um veículo que convoca,
mas é muito aleatória, por isso acho que deveria haver um controle, um
sistema pelo qual se pudesse evitar convocação de violência, vandalismo.
É o momento das escolas introduzirem a educação para a internet nos
seus currículos. Não tem educação para a leitura, saber o que é um
clássico? Então, tem que ter educação para a internet, para a televisão,
para o olhar. Estamos em uma era imagética, e, no entanto, na escola a
educação literária é mais forte que a imagética. É preciso despertar na
garotada esse espírito crítico diante da telinha, seja da tevê, seja do
computador; senão eles vão sofrer com um fluxo muito grande de
informações e deformações, não conseguem estabelecer a síntese
cognitiva, e acabam sendo vítimas inconscientes do próprio veículo que
utilizam. Ficam sem referências.
OP – O sociólogo polonês Zygmund Bauman diz que
segurança sem liberdade é escravidão, e liberdade sem segurança é caos.
Você concorda com isso?
FB – Concordo, o problema é que estamos cada vez
mais em busca de segurança. Nossa liberdade hoje é muito restrita, as
pessoas têm medo da rua, do público, estão cada vez mais engaioladas em
prisões de luxo. Estamos abrindo mão de nossa liberdade em nome da
segurança – e isso é grave.
OP – Nesse contexto de transformações, quais as mais significativas da sociedade brasileira nos últimos anos?
FB – Em primeiro lugar o governo Lula, porque tirou
30 milhões de pessoas da miséria, acabou com a dívida externa, tornou o
país soberano e independente, principalmente frente aos Estados Unidos e
ao bloco ocidental. Estabeleceu programas sociais com recursos
consideráveis, o que governos anteriores não tinham feito, e o sistema
de crédito. O que mudou a face do país e permitiu que o Brasil tenha
passado, até agora, pela crise financeira desencadeada a partir de de
2008, foi justamente o fato de o governo Lula ter estabelecido um
sistema de crédito e de políticas sociais que veio a aquecer o mercado
interno, que é muito robusto no Brasil. Foi o que vi de mais
significativo no Brasil nos últimos anos.
"Praticamente o lazer do brasileiro é ver telenovela
ou ir ao culto, à igreja, onde ele entra
em contato com o transcendente,
o mágico.
Isso tem uma força muito grande no universo popular porque o
ajuda a emergir das dificuldades
e sofrimentos. Só uma pequena minoria
tem acesso a uma ociosidade criativa."
OP – E com relação ao exercício da cidadania?
FB – Cresceu a consciência de cidadania, dos diretos
do consumidor, dos direitos humanos, mas ainda estamos muito distantes
de vencer preconceitos, discriminações. Talvez esses acirramentos –
espancamento de homossexuais, crimes previstos na Lei Maria da Penha –,
tudo isso seja sintoma de que estamos avançando, porque antes essas
coisas aconteciam mas ninguém falava, e agora elas são notícia,
passíveis de ação policial. Então creio que vem crescendo, sim, a
consciência de que temos direito à cidadania, à pluralidade cultural, à
diversidade religiosa, e não devemos fazer do divergente o diferente.
Não devemos cair no fundamentalismo de uma postura que quer se impor a
outra, mas praticar tolerância.
OP – Em relação ao mercado de trabalho: as
pessoas trabalham cada vez mais, às vezes doze, catorze horas. Como isso
interfere na construção de uma sociedade?
FB – Interfere na construção das relações
familiares, porque os pais não dão atenção suficiente a seus filhos, não
é reservado tempo para lazer, para atividades culturais. Até porque os
grandes aglomerados urbanos de classe média-baixa não têm acesso a
equipamentos sociais que lhes permitam curtir o esporte, a cultura, a
arte. Você vai pela periferia são prédios e prédios, casas e casas,
casebres e casebres, raramente vê um campo de futebol, um teatro, cinema
então nem pensar. Praticamente o lazer do brasileiro é ver telenovela
ou ir ao culto, à igreja, onde ele entra em contato com o transcendente,
o mágico. Isso tem uma força muito grande no universo popular porque o
ajuda a emergir das dificuldades e sofrimentos. Só uma pequena minoria
tem acesso a uma ociosidade criativa.
OP – Como vê a relação entre política e religião?
FB – A política é a forma de organizar nossa
convivência social e a religião é a forma de imprimir à nossa
resistência um sentido transcendente. São coisas que se complementam em
nossas vidas, mas nem sempre é fácil estabelecer as distinções para
fazer a sadia conexão. Há muito fundamentalismo de um lado e de outro:
aqueles que querem fazer da sua religião uma proposta política e aqueles
que querem fazer da política uma verdadeira religião, com partidos que
têm papas, cardeais, bispos, crenças, dogmas intocáveis.
OP – Que desafios a relação entre política e religião nos coloca, levando em conta a diversidade de religiões e crenças?
FB – O desafio é desenvolver uma cultura de
tolerância religiosa – mas estamos longe disso. Algumas confissões
religiosas têm tamanho domínio da mídia que inoculam o horror ao
espiritismo, às tradições afro-brasileiras, como a mídia americana cria
horror ao islamismo. Hoje, uma pessoa que se diz muçulmana é vista como
potencialmente terrorista, tanto que, após 2001, cresceu enormemente o
número de muçulmanos agredidos com muita violência, nos Estados Unidos. O
simples fato de alguém parecer um muçulmano já é fator de suspeita, de
preconceito.
OP – O Brasil é um país enorme, com uma
diversidade gigantesca. O que seria uma nova política que representasse
todos esses grupos e realidades?
FB – Para o Brasil ser um país melhor, o ponto
número um é fazer uma reforma agrária. Para além de 100 quilômetros dos
grandes centros urbanos, ainda se encontra muita miséria, absoluto
abandono de educação e saúde. Só vamos vencer esse contraste e evitar a
inchação das cidades, como vem ocorrendo, no dia que houver reforma
agrária. Ela é uma exigência de modernização do capitalismo brasileiro –
não estou nem falando de socialismo.
Enquanto o Brasil não mexer na sua estrutura social, a desigualdade
vai permanecer. Você pode até fazer essas políticas, como o Lula e a
Dilma estão fazendo, de atenuar os grandes problemas. Atenuar, não
resolver. Por exemplo, se o Bolsa Família acabar hoje, essas famílias
que dependem da União vão voltar para a miséria, porque o Bolsa Família
não conseguiu realizar aquilo que o Fome Zero se propunha fazer, que era
tornar as famílias produtoras da própria renda. O próprio governo que
criou o Fome Zero acabou com ele, transformou um programa que era
emancipatório em um programa compensatório, como o Bolsa Família. Então
você tem melhorias que não são estruturalmente asseguradas.
OP – Você imagina novas formas de fazer política?
FB – Quero uma reforma política que mude a estrutura
do país: o financiamento público de campanha, fim do caixa dois,
punição severa a quem praticar isso; fim dos lobbies do grande capital,
de bancos, indústrias; Ficha Limpa rigorosa – isso seria uma reforma
política. Também a proporcionalidade de representação da população de
cada estado: é um absurdo um estado como o Amapá eleger o mesmo número
de senadores de um estado como São Paulo. É preciso limpar a estrutura
política brasileira, tem muito resquício da ditadura. Estabelecer a
fidelidade partidária, acabar com o voto secreto – elejo um deputado e
não sei como ele votou no processo da deputada corrupta que foi filmada
prostituindo-se politicamente. Política tem que ser transparente e é
preciso que haja uma lei garantindo isso – o que só vai acontecer com
pressão popular.
OP – Existem hoje mecanismos de “transparência”
que disponibilizam as contas governamentais, mas a população muitas
vezes não sabe nem fazer a leitura daquilo.
FB – E mesmo fazendo a leitura, você jamais
desconfiaria que no ministério dos Transportes houve desvio de 628
milhões de reais, porque o que está lá parece tudo certinho, depois é
que a investigação mostra que não. É preciso aprofundar o sistema de
transparência no país, como também a Comissão de Ética da República, que
não pune ninguém, é sempre conivente e leniente com os corruptos.
"Uma Adélia Prado, Fernanda Montenegro,
gostaria que elas fossem chamadas
a opinar numa instância da República.
O
Brasil está cheio de pessoas íntegras,
honestas, acima de qualquer
suspeita."
OP – Que valores caracterizariam esse novo modelo?
FB – Primeiro, você jamais permitir que alguém com
ficha suja ou processo na justiça seja candidato. Segundo, que, em sendo
candidato, faça como foi aprovado agora na Espanha: seja obrigado a
abrir sua contabilidade, seu patrimônio. Terceiro, que todas suas
atitudes sejam públicas, nada secreto. Não sou especialista, mas como
cidadão creio que é preciso uma reforma política que acabe com a
impunidade e a imunidade desses políticos.
OP – Você consegue identificar pessoas que possam refletir esses anseios?
FB – Claro. Fábio Comparato, Dom Paulo Evaristo
Arns, Ricardo Kotscho, Washington Novaes, Samuel Pinheiro Guimarães,
Raduan Nassar, Chico Buarque, enfim, tem milhares de pessoas honestas,
transparentes, corajosas. Uma Adélia Prado, Fernanda Montenegro,
gostaria que elas fossem chamadas a opinar numa instância da República. O
Brasil está cheio de pessoas íntegras, honestas, acima de qualquer
suspeita.
OP – Como você vê a vida e a coabitação das futuras gerações neste pequeno planeta?
FB – A curto prazo, minha visão é pessimista. Acho
que a crise financeira vai se agravar, os miseráveis vão invadir cada
vez mais o espaço dos ricos, dos que estão bem de vida – porque não há
muro, não há polícia, não há lei que detenha o fluxo do mundo do pobre
para o mundo do rico. É uma questão de sobrevivência, e quando se trata
de sobrevivência a legalidade vem abaixo. Vão crescer os grupos de
direita, os governos despóticos, os preconceitos, os fundamentalismos de
ambos os lados. Isso tudo vai se agravar daqui para 2020.
"O outro passa a ser encarado como alguém que,
de alguma maneira,
deve corresponder
aos meus interesses, sem que se criem vínculos
de
alteridade, parceria
e solidariedade."
Não sei o que vai ser do futuro, mas talvez seja necessário passar
por esse inferno para cair a ficha de que precisamos criar um novo
modelo de sociedade. Uma sociedade baseada em outros parâmetros, e não
no preconceito, na imposição, na guerra, no belicismo, no consumismo.
Antigamente um rádio durava uma geração inteira, hoje um aparelho de
última geração se torna anacrônico em dois anos, superado. O computador,
então, nem se fala.
Estamos reciclando objetos, mas também estamos reciclando pessoas e
valores. Hoje as relações pessoais estão sendo mercantilizadas. Isso já
ocorria nas relações de trabalho, mas agora se transfere para a vida
social. O outro passa a ser encarado como alguém que, de alguma maneira,
deve corresponder aos meus interesses, sem que se criem vínculos de
alteridade, parceria e solidariedade.
OP – Uma sociedade baseada em outros parâmetros implicaria outro sistema de produção?
FB – Claro, de produção e sobretudo de distribuição,
para evitar que a excessiva riqueza seja acumulada nas mãos de poucos.
Na minha opinião isso é um acinte, e não um direito. Precisaríamos
promover a distribuição de renda, acabar com o direito de herança, pelo
menos na proporção atual; no caso de herança acima de determinado
patamar, 80% deveriam ir para o Estado, como o governo francês
determinou em setembro de 2012 [75%].
Aplicar mais em educação e saúde. As pessoas pagam impostos
excessivos, mas não têm um mínimo de direitos sociais, como acontece na
Suécia, na Finlândia, na Alemanha – nesses países você paga muito
imposto mas está seguro de que, precisando, vai ter retorno. Precisamos
de mudanças profundas de institucionalização e de mentalidade.
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Reportagem por Júlia Magalhães, do Outras Palavras
(Brasil de Fato)
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/%E2%80%9Ce-mudando-o-mundo-que-a-gente-se-transforma%E2%80%9D/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje
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