sábado, 3 de novembro de 2012

Essa luz do celular na sala de cinema...

 Cézar Hazaki*

 
A cultura da televisão se desenvolveu nos Estados Unidos – cuja hegemonia tornaram-lhe a usina da sociedade do espetáculo – e se expandiu por todo o mundo (Raj Patel, “Obesos e famélicos”, ed. Marea, Buenos Aires, 2008). Nesse país, nos anos 1950, uma em cada dez famílias tinha televisor em casa; nos anos 1960, nove em cada dez. Esta revolução da imagem, que levou o espetáculo à sala de estar, transformou os eixos da vida familiar. O evento televisivo conseguiu se transformar no centro das atenções. Rapidamente, as famílias se acostumaram a comer enquanto assistiam TV. O encontro familiar passou a ser dominado pela TV, apesar das recomendações de especialistas que recomendavam separar a refeição da televisão.

Ligeiramente, a indústria da alimentação, que havia produzido enormes quantidades de comida enlatada para as tropas na Segunda Guerra Mundial e que precisava abrir novos mercados, compreendeu isso. Assim, inventaram a comida congelada. Bombardearam publicitariamente as donas de casa mostrando que cozinhar já não era o importante, pois se perde muito tempo. Como o espetáculo estava dentro de casa e era preciso dar atenção para o mesmo, deixar de preparar a refeição trazia liberdade para assistir mais TV. Apareceram as marcas de comidas congeladas “TV Dinner” e “TV Brand Frozen Dinners”. Na época, as revistas femininas insistiam que as crianças bagunceiras, graças ao incentivo para assistir TV, podiam comer o que sua mãe oferecia, sem se opor. Em casa, o espetáculo era tão poderoso que podia até disciplinar as crianças. A TV foi a ritalina da época.

Num longo e sistemático processo, que incluiu muitas mudanças tecnológicas (como a incorporação do freezer), a comida em comum foi abandonada como ritual familiar. Privilegiou-se a imagem da televisão. A organização da mesa familiar foi modificada ao se incorporar o televisor como integrante, o que também marcou a agenda: passou-se a falar daquilo que a TV mostrava. Era a TV que falava, os convivas se transformaram em espectadores e a TV no terceiro pai. E este processo foi avançando. Hoje, cada integrante da família come “delivery”, sozinho em seu quarto, assistindo TV e conectado à Internet.

O cinema havia preservado para si a condição de lugar ritual, que demandava concentração do espectador. Quando se iniciava a projeção, era preciso respeitar a escuridão para não romper a cerimônia coletiva. Porém, o costume de comer rápido, para continuar assistindo TV, abriu as portas para outro negócio dentro do cinema: beber e comer. Os donos das salas credenciaram a venda de comidas dentro do cinema, e iniciou algo impossível de parar: os espectadores começaram a comer como se estivessem em suas casas, diante do televisor. Baldes de pipoca, refrigerantes, guloseimas, hambúrgueres, cachorros-quentes. Hoje, nas redes de cinemas são encontrados bons assentos, boa imagem, excelente som e o espectador da poltrona vizinha mastigando pipoca e bebendo refrigerante.

E mais mudanças serão vistas, desta vez vindas dos usuários de telefones celulares: é cada vez maior o número daqueles que os ligam, durante o filme, em diversos lugares na sala. Os usuários respondem mensagens de texto, resistindo em desligar os celulares. Ficam atentos às duas telas: a do cinema e à pessoal [celular]. Em maio passado, Amy Miles, da “CEO de Regal Entertainment” – a maior rede de exibição de filmes dos Estados Unidos -, advertiu que, embora sua empresa ainda não admita o uso de telefones celulares, “se apresentássemos um filme que seja para um público mais jovem, poderíamos mudar este critério” (www.acculturated.com).

A empresária está convencida de que a relação hiperconectada, entre os jovens e seus “smartphones”, não retrocederá e que se intensificará na medida em que os aparelhos se tornem mais sofisticados. O tema foi explanado na convenção anual que é feita pelos proprietários de redes de projeção cinematográfica, em Las Vegas. Neste encontro, debateu-se sobre a estratégia para favorecer a volta desses jovens às salas cinematográficas, uma vez que antes que deixar sua hiperconectividade permanente, preferem não ir ao cinema.

Desta forma, estamos na presença de um novo tipo de espectador, que imporá condições na forma de ver cinema. O “Cinemacom” procura recapturar esses adolescentes desertores das salas, e busca soluções. Uma delas seria dispor de um espaço isolado, como se fosse uma sala para fumantes, onde seria permitido usar o celular sem restrições. A outra é oferecer funções especiais, com maior custo, para aqueles que querem usar o celular durante o filme. Trata-se de fazê-los se sentir em casa, fazendo “zapping” entre o filme, as mensagens de texto e as chamadas de seus amigos. Se já podem comer na sala, por que deveriam desligar a placenta midiática, prestativa e solícita, vinte e quatro horas, para alimentar o jovem hiperconectado.

Freud falava dos órgãos auxiliares para se referir aos avanços tecnológicos que o homem se colocava, e que o faziam se sentir um deus. Ele dizia que era difícil para que se acostumasse com as próteses tecnológicas, mas acreditamos que não é o que acontece com o celular. O “smartphone” torna atual o modelo proposto por Donna Haraway, em seu “Manifesto cyborg”, de 1985: o cyborg é um híbrido de máquina e homem, um organismo cibernético, uma pessoa conectada a uma rede. Hoje, o cyborg – híbrido de máquina e homem, organismo cibernético, pessoa conectada a uma rede – não é mais uma ficção: o celular já é parte do corpo do homem. Sua presença marca um aprofundamento da relação entre o atual corpus tecnológico e o corpo das pessoas. E este corpo mediático traz uma nova forma de subjetivação. Uma nova modificação do homem, onde a mutação é pela incorporação da tecnologia web e suas máquinas de comunicar, que se introduzem no corpo e o modificam.

Atualmente, o cyborg – união do humano com a menor e mais potente máquina de comunicar que foi inventada – não pode se sustentar sem essas múltiplas aplicações da hiperconectividade providas pelos “smartphones”. Desconectá-lo ou esquecê-lo gera uma ansiedade muito primária: como humano, precariza-se, e com o celular vence a incerteza. É assim que se constitui o cyborg, um Popeye que comeu espinafre e acredita estar seguro e pronto para qualquer façanha comunicativa.

O celular, assim incorporado ao corpo, realiza uma unidade mais completa do corpo mediático, que havia começado com a TV, para se aprofundar com a revolução informática e alcançar novas dimensões com a ordem da telefonia celular. Agora, a placenta mediática pode ser requerida em todo momento e lugar. Os celulares são o cordão umbilical do modelo cyborg: anexados ao corpo, fazem parte dele. Sem dúvidas, as novas gerações, as infâncias digitais que estamos vendo crescer, serão muito mais cyborg. Contudo, os que já são cyborgs hiperconectados não admitem restrições ao seu afã comunicativo. Por isso, o cinema e o teatro são cada vez mais um campo de batalha entre os que não aceitam os celulares ligados e aqueles que não podem prescindir do seu. Estes, ao se esquecer de desligá-los – um típico ato de frustração -, impõem condições aos outros.

No cinema atual está presente o modelo televisivo: o “celu-espectador” aplica o modelo que praticou em frente ao televisor: o zapping. Vai do filme à mensagem de texto recém-recebida e vice-versa. Ou seja, sua atenção é menos concentrada e, por isso mesmo, requer vários estímulos simultâneos; com a reserva de que é mais fiel à sua conexão por celular do que ao ritual da tela.

Como o celular conta com vibrador, pode não atrapalhar com o seu som, mas trata de impor novas regras em relação ao acender e apagar das luzes. Os novos celulares com “leds” possuem um brilho que é impossível não prestar atenção. E o espectador com seu celular não é anônimo, não se trata de passar despercebido, como também não pretendem passar, aqueles que comem pipoca num balde: estão dispostos a romper a liturgia que conhecíamos no cinema. Em sua prepotência de cyborg, pouco importa as reclamações dos humanos espectadores (restos arqueológicos da humanidade pretérita); ele não quer a escuridão completa, não quer estar atento somente ao filme, não quer perder nada de seu mundo pessoal durante o filme. Na sociedade do espetáculo, o cyborg não aceita ser espectador, quer ser protagonista.

Em definitivo, quer fazer o que aprendeu e desenvolveu em sua casa, assistindo televisão: comer rápido, atender ao telefone e fazer “zapping”. O controle remoto era uma ferramenta, embora fora do corpo, não era solto da mão. O celular é parte inseparável do próprio corpo. Ele vai para todas as partes, é escutado diretamente no ouvido, fala-se mais com ele do que com quem se está viajando ou trabalhando. O celular constitui uma nova espécie de humanidade, e os cyborgs mostram as novas formas de subjetivação condicionadas pela tecnologia.
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 *O psicanalista Cézar Hazaki, citando como precedente a complexa relação entre a TV e o cinema, sustenta que aqueles que não param de olhar o celular, durante o filme, fazem parte de “um novo tipo de expectador, que imporá condições”, e que esse expectador é a realização do cyborg que a ficção científica já antecipou. O texto, extraído de um artigo escrito para o próximo número da revista Topía, é publicado no jornal Página/12, 01-11-2012. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU on line, 03/11/2012
Imagem da Internet

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