Entrevista com a geógrafa Doreen Barbara Massey
Doreen Barbara Massey (foto) é uma geógrafa
feminista inglesa. Colaborou com alguns dos mais importantes autores da
geografia marxista. Sua obra foi fundamental para a configuração da
geografia atual, e fortemente impulsionou a reflexão sobre o espaço em
todas as disciplinas sociais. Atualmente é professora de Geografia Humana na Open University.
Massey nasceu em Manchester, estudando na Universidade de Oxford e na Universidade da Filadélfia. Começou sua carreira no Centre for Environmental Studies (CES), em Londres. No CES desenvolveu numerosas análises da economia britânica contemporânea. Quando o CES foi fechado pelo governo de Margaret Thatcher, em 1979, Massey transferiu-se para a Open University, uma universidade pública a serviço da classe trabalhadora. Em 1994, foi premiada com a Medalha Vitória de Geografia, prêmio concedido pela Sociedade Geográfica (Royal Geographical Society). Em 1998, recebeu o prêmio Prix Vautrin Lud, conhecido como Nobel de Geografia.
Seus interesses, referentes à teoria do espaço e do lugar, incluem a visão crítica da globalização, o desenvolvimento regional desigual, a relevância do local e o compromisso político da análise geográfica. Reconceituou o significado de “lugar” e inventou o conceito de “geometria do poder”. Este conceito lhe serviu para explicar as desigualdades sociais, geradas pela economia capitalista, a partir de uma análise geográfica.
Entre suas obras publicadas em castelhano estão: “Ciudad Mundial” e “Doreen Massey: un sentido global del poder”. Também participou do livro “Pensar este tiempo”, organizado por Ernesto Laclau e Leonor Arfuch.
Pode-se observar a aplicação prática do conceito de “geometria do poder” em experiências organizacionais como os Conselhos Comunais, desenvolvidos na Venezuela. Por esta razão, em diferentes ocasiões, Massey visitou a Venezuela para poder analisar a evolução prática de suas teorias.
Seu trabalho acadêmico se baseia na ideia de que se deve teorizar rente ao chão, com conceitos de ida e de volta, que devem chegar ao destinatário e, em seguida, retornar para continuar trabalhando sobre eles.
Durante a década de 1980, passou uma curta temporada, em Nicarágua, trabalhando com os sandinistas no Instituto Nacional de Investigação Econômica e Social. “Foi meu primeiro ingresso nas alternativas latino-americanas”, relembra com alegria. “Aprendi mais deles do que pude ajudá-los”.
Recentemente, visitou Buenos Aires, convidada pela Secretaria de Cultura da Nação, para participar do ciclo “Debates y Combates en Tecnópolis”, junto com Ernesto Laclau e outros cientistas políticos.
Ao finalizar a entrevista, surpresa, Massey comenta que várias pessoas com as quais cruzou, durante sua estadia na Argentina, disseram-lhe que certamente Buenos Aires gostaria dela, pois se parece com uma “cidade europeia”. “Na verdade é algo que não posso entender, é como ser subordinados, desmerecendo o latino-americano. É como não ter confiança para ser você mesmo. É quase um assunto de autoestima, despreza-se o que existe aqui e busca-se referência fora”.
No mundo, com os vínculos financeiros, ou na intimidade, com a diferença entre a cozinha e um escritório. A pesquisadora britânica propõe outra visão sobre os espaços: a que se relaciona com o poder. É desta forma que analisa o neoliberalismo, a globalização e a multipolaridade. Reivindica os novos espaços de poder na América Latina, e fala sobre a maneira como seus conceitos teóricos são aplicados nas reformas territoriais da Venezuela.
A entrevista é de Verónica Engler, publicada no jornal Página/12, 29-10-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você costuma repetir um lema: “A geografia importa” (Geography matters!) Por que e para que, atualmente, a geografia é importante?
Inicialmente, é importante porque a geografia de uma sociedade faz diferença na organização da mesma. O desenvolvimento desigual dentro de um país faz diferença na forma como funciona essa sociedade. Por exemplo, se há jovens que não tem acesso à cultura, terão dificuldades para entrar em determinados espaços, como os grandes museus ou lugares pelo estilo, espaços oficiais da arte; esta dificuldade agrava a exclusão. A organização do espaço tem efeitos sobre a posição social das pessoas. O espaço é um produto social e por sua vez tem efeitos sobre o social. Porque o espaço está repleto de poder. Todo dia produzimos o espaço. Em nível global, por exemplo, estão os vínculos financeiros, e mesmo dentro do espaço íntimo, a diferença entre a cozinha e um escritório marcam estas relações de poder. Na Europa, neste momento, por exemplo, um aspecto importante do problema é espacial, porque não podem arquitetar uma estrutura financeira que ataque o desenvolvimento desigual entre países. É o problema fundamental, é geográfico, mas não podem manobrá-lo.
Na situação em que você descreve, como se classifica a crise grega?
Acredito que o problema para os gregos é resultado da falha na arquitetura da União Europeia, pois não pode resolver o problema do desenvolvimento desigual entre países. É visto como um problema do país, mas na realidade o problema está na organização europeia, não é individual da Grécia. Como na Grécia não puderam desvalorizar sua moeda, tiveram que desvalorizar sua gente. Desta forma, a questão de não poder manobrar estas questões geográficas produz efeitos terríveis. Faz também parte de meus argumentos que, em termos de poder das elites da Europa, estão fomentando políticas nacionalistas, e ao invés de acusarem os bancos e o FMI, os gregos estão acusando a Alemanha. As pessoas na Espanha também jogam a culpa na Alemanha. Assim, estão tornando aquilo que é uma responsabilidade dos bancos num problema em que pessoas de diferentes países lutam uns contra os outros. Desta maneira, a imaginação geográfica, mediante as identidades nacionais, está sendo utilizada para contrapor um povo contra outro.
Partindo de uma perspectiva geográfica, como observa este fenômeno que hoje é nomeado como “globalização”?
Em primeiro lugar, eu diria que o termo “globalização” deveria ser acompanhado de um adjetivo, porque hoje o que temos é uma “globalização neoliberal”. O problema não é o fato de ser global, mas a forma de ser. É importante pensar em diferenciar estas questões. Em segundo lugar, acredito que precisamos focalizar esta versão da globalização num mundo multipolar. Para mim é importante a ideia de multipolaridade, pois é uma tentativa de dizer: “Sim, queremos ser internacionalistas, globais, mas queremos ser globais de uma forma diferente, não de uma maneira neoliberal”.
O que você quer dizer com multipolaridade?
É bom esclarecer esta ideia, pois percebo no debate atual diferentes interpretações. Acredito que algumas pessoas, com a expressão multipolaridade, pretende apenas dizer que há variações no mundo, que alguns são diferentes de outros. Contudo, para mim a questão da multipolaridade é essencialmente política. É uma questão que surge numa era unipolar, em que os Estados Unidos e o neoliberalismo eram completamente dominantes. Para mim, então, a questão é: “Podemos estabelecer a multipolaridade no sentido de contar com alternativas ao neoliberalismo?” Desta maneira, não existe apenas um centro de poder no mundo. Na sociedade, existem manifestações que demonstram que outras formas de organização são possíveis. É por isso que a questão da multipolaridade está sendo encarada, aqui, na América Latina.
Entretanto, nem todo mundo pensa assim. Podemos realmente desafiar a hegemonia do liberalismo, num nível internacional? Para mim, a multipolaridade é mais do que um reconhecimento das diferenças. É necessário um real desafio à dominação unipolar. Neste momento, parece existir apenas uma forma de economia, que é a do mercado livre, a do neoliberalismo. Deste lugar, quando dizem que não há alternativa, querem dizer que há apenas uma forma de organizar a economia e a sociedade. É um tema quase filosófico, o espaço é a dimensão da multipolaridade, o espaço é a dimensão em que muitas coisas existem ao mesmo tempo. O que liberalismo e algumas das versões da modernidade fazem é colocar as diferenças geográficas numa só direção histórica, demonstrando que existe apenas uma possibilidade. Abrir-se à multiplicidade implica uma espacialização, abrir-se à possibilidade da multipolaridade.
O que seria reconhecer que existe mais do que a diversidade?
Acredito que o real desafio seja o dos princípios do neoliberalismo, particularmente a ideia de que o mercado é algo natural, que está fora do social, algo que não deve ser debatido, como se fosse uma força da natureza. Isto é o que estabelece o neoliberalismo, o mercado. A primeira coisa a ser feita é enfrentar isto. E segundo lugar, devemos desenvolver um sentido multipolar, necessitamos desenvolver formas de organizar a sociedade que tenham suas próprias trajetórias, suas próprias dinâmicas, que não sejam apenas uma variação do neoliberalismo, algo centralmente diferente, com uma economia social que tenha uma dinâmica particular. Em terceiro lugar, precisa ser algo sustentável. Porque nós na Europa acostumávamos pensar que a social-democracia era uma alternativa ao neoliberalismo. Porém, por diferentes razões, a social-democracia falhou completamente, principalmente porque não foi suficientemente radical no nível econômico, não desafiava o mercado. Além disso, não estabeleceu uma base social suficientemente forte. Por isso, foi insustentável econômica e socialmente.
De alguma maneira, você reconceituou a ideia de lugar. De que forma os lugares podem ter um sentido global?
Por um lado, como geógrafa quero reconhecer as especificidades dos espaços, amo os lugares e as diferenças entre eles. Contudo, por outro lado, quero ser internacionalista, tenho interesses nas relações globais. Tem muitas pessoas que prestam atenção na especificidade dos lugares, a partir de um lugar tipicamente romântico. Este tipo de amor aos lugares se torna algo sentimental, essencialista. Acredito que podemos amar a especificidade dos lugares, mas, ao mesmo tempo, devemos acabar com este tipo de visão romântica e essencialista. Por exemplo, a “britanidade”. A Inglaterra não seria a Inglaterra sem as relações com o resto do mundo: império-colônia, o bom e o mau. Então, a identidade dos lugares não é algo que surge do solo, mas das relações mantidas com o resto do mundo.
Um lugar não é uma coisa fechada, com uma identidade essencial, é uma articulação específica de relações globais, e é esta articulação de relações mais amplas que apresenta a sua particularidade. A especificidade dos lugares é sempre um produto de coisas mais amplas. E essa especificidade é algo que está em disputa.
Você introduziu um conceito novo em geografia, o de “geometria do poder”. Pode explicar do que se trata?
Como eu dizia, os espaços estão cheios de poder e são produtos das relações sociais, construímos o espaço o tempo todo. O poder é sempre um produto relacional, não se trata de que eu tenho poder e você não, trata-se do exercício do poder entre pessoas, entre as coisas, entre os lugares. O conceito de geometria do poder tenta apreender estas questões. O espaço é sempre formado por relações sociais plenas de poder e, por outro lado, o poder tem uma cartografia. Mapas do poder social, político e econômico podem ser feitos.
Este conceito de “geometria do poder” está sendo utilizado nas reformas territoriais, realizadas na Venezuela. De que forma o governo de Chávez incorpora suas ideias?
Eles estão utilizando esta ideia de tornar a geografia do poder político do país mais igual. E existem muitas formas para fazer isso. Primeiro, buscam igualar o poder entre as grandes cidades da costa e as menores, que estão mais distantes. A ideia é dar voz a todos os lugares, em nível local, no diálogo político. É um projeto que poderá levar muito tempo, mas eles estabeleceram as formas institucionais que podem desenvolver este tipo de poder, esta é uma das questões. O outro assunto é o desenvolvimento dos conselhos comunais. A partir de cada quatrocentos lares, pode se formar um conselho comunal. São gerados e operados por meio de uma democracia participativa. Isto é a autogestão local.
A geografia do poder está baseada no local, indo de baixo para cima, o que muda a natureza do poder, desde o poder de votar até o poder de fazer, de conseguir coisas práticas. Estão procurando pensar a geografia do poder político no país, tanto em termos de regiões, como de cidades. Por exemplo, em Caracas há um sentimento real, pela primeira vez as pessoas dos bairros pobres realmente sentem que tem voz, e isto é uma mudança na geografia do poder político. Antes os bairros pobres estavam excluídos do diálogo político, não tinham voz política, eu acredito que eles agora, sim, possuem.
Em seu parecer, experiências da América Latina, como a formação da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), é uma forma de desenvolver a multipolaridade?
Exatamente. Para mim o estabelecimento da Celac é muito significativo, é a primeira organização que inclui todos os países da América, com exceção dos Estados Unidos e Canadá. Marca uma nova identidade continental. Na Europa, diferente do que está ocorrendo aqui, não há realmente um sentido de identidade europeia. Por outra parte, a União Europeia é apenas de mercado livre e concorrência entre países, não tem a ver com um projeto comum, com relações sociais, simplesmente é de neoliberalismo. Na América Latina, eu vejo um mosaico de alianças: Unasul, Alba e Petrocaribe, são maneiras diferentes de imaginar o espaço em relação à Europa. As relações podem significar mutualidade ou cooperação, ou mudança igualitária, isso não é neoliberal. E isto também é construir uma identidade no continente, uma solidariedade, o que também permite as diferenças.
Sabemos que Bolívia não é o mesmo que Argentina, mas existe uma solidariedade. Pode haver diferenças e solidariedade também. Isto é diferente do que ocorre na Europa. Por um lado, há um novo tipo de espaço, um novo tipo de identidade, mas também acredito que esta identidade está começando a desafiar o neoliberalismo. Para mim, que vejo a partir da Europa, isto é fantástico. Porque o que está acontecendo é a construção de uma nova voz, que está dizendo coisas diferentes e, desta maneira, está desafiando ao neoliberalismo. Por outra parte, há experiências de novas formas de democracia. Isto também dá esperança para a Europa, pois o estabelecimento de um sentido para este novo projeto, como na Venezuela, realmente depende da gente. E estes projetos são uma forma de dizer que há alternativas ao neoliberalismo.
O que está ocorrendo na América Latina é diferente. As perguntas são: é suficientemente diferente? Está desafiando as bases? É sustentável? Isto é realmente uma batalha ideológica, uma batalha acerca da imaginação geográfica. A imaginação geográfica, nos Estados Unidos e Europa, diz que ainda somos o centro do mundo. Parece-me que o mais importante é que a partir da América Latina estão concebendo algo diferente. Há alguns anos, eu estive na Índia, e eles falavam de políticas tecnológicas, em suas discussões mencionavam suas relações de concorrência com a China, ninguém mencionou os Estados Unidos ou Europa. Isto é incrível e significa que há realmente possibilidades de desenvolver um mundo multipolar, mas no caso da Índia era uma questão apenas econômica. O que eu gosto na América Latina é que também se trata de um assunto político, um desafio ao neoliberalismo.
Você trabalha na Open University, uma universidade bastante especial na cena acadêmica da Grã-Bretanha, já que é aberta à classe operária. Como é trabalhar nesta instituição?
Para mim é muito importante estar na Open University (OU). Eu venho de uma área pobre do norte, da classe operária de Manchester, mas fui à Universidade de Oxford. Embora, de fato, ame o trabalho acadêmico, o elitismo da Oxford me fez pensar que não queria ser uma acadêmica. Então, durante vários anos trabalhei fora da universidade, fazendo outras coisas, porque pensava que ser uma acadêmica era algo muito elitista. Em certo momento, veio a possibilidade de trabalhar na OU e, desta maneira, foi resolvido o meu problema, pessoalmente porque era uma universidade com projeto político de educação popular e democrática. É o único lugar em que penso que poderia ser feliz como acadêmica. É um projeto democrático, pode-se ir para a OU sem títulos, mas oferecem o apoio necessário para que cada pessoa possa alcançar o nível universitário. É uma universidade explicitamente antielitista. E é de massa, possui milhares de estudantes. Na faculdade de ciências sociais deve existir mais de dez mil estudantes. Para mim é como deveria ser a educação, em diferentes aspectos, e para qualquer um. Num curso posso ter uma grande variedade de pessoas, pode ter um diplomata, uma dona de casa, um trabalhador do porto, e isto me encanta. Já me ofereceram trabalho em universidades de elite, mas eu sempre continuei trabalhando na OU.
Além de seu trabalho acadêmico, você costuma trabalhar com artistas.
Sim, trabalhei com (o artista dinamarquês) Olafur Eliasson, que tem um estúdio em Berlim. Envolvi-me muito em projetos com artistas que estão interessados no espaço. Recentemente terminamos um filme (Robinson in Ruins), e também escrevi um ensaio que se chama “Landscape, Space, Politics” (Paisagem, Espaço, Políticas). O que procuramos fazer é pensar a respeito de como ler a paisagem politicamente, sem romantizar, como caminhar por meio de uma paisagem e entendê-la, e poder aprender da paisagem que está incidindo na sociedade. É um projeto com um sentido político, tem muito a ver com a globalização neoliberal, com a crise financeira e com a reivindicação de uma mudança. Vanesa Redgrave fez a locução no filme. Sinto-me muito feliz, porque o assunto pelo qual estou interessada, o espaço e a política, está em todas as partes, então posso trabalhar com uma grande quantidade de pessoas. Posso estender minhas inquietudes para diferentes áreas, e desta maneira aprendo mais. Por exemplo, os artistas pensam muito diferente de mim, e por isso eu gosto de trabalhar com eles. Sobre os mesmos problemas, temos aproximações muito diferentes, e para mim isto é maravilhoso. É o que me mantém ativa, é a forma de se abrir para outras maneiras de pensar.
Massey nasceu em Manchester, estudando na Universidade de Oxford e na Universidade da Filadélfia. Começou sua carreira no Centre for Environmental Studies (CES), em Londres. No CES desenvolveu numerosas análises da economia britânica contemporânea. Quando o CES foi fechado pelo governo de Margaret Thatcher, em 1979, Massey transferiu-se para a Open University, uma universidade pública a serviço da classe trabalhadora. Em 1994, foi premiada com a Medalha Vitória de Geografia, prêmio concedido pela Sociedade Geográfica (Royal Geographical Society). Em 1998, recebeu o prêmio Prix Vautrin Lud, conhecido como Nobel de Geografia.
Seus interesses, referentes à teoria do espaço e do lugar, incluem a visão crítica da globalização, o desenvolvimento regional desigual, a relevância do local e o compromisso político da análise geográfica. Reconceituou o significado de “lugar” e inventou o conceito de “geometria do poder”. Este conceito lhe serviu para explicar as desigualdades sociais, geradas pela economia capitalista, a partir de uma análise geográfica.
Entre suas obras publicadas em castelhano estão: “Ciudad Mundial” e “Doreen Massey: un sentido global del poder”. Também participou do livro “Pensar este tiempo”, organizado por Ernesto Laclau e Leonor Arfuch.
Pode-se observar a aplicação prática do conceito de “geometria do poder” em experiências organizacionais como os Conselhos Comunais, desenvolvidos na Venezuela. Por esta razão, em diferentes ocasiões, Massey visitou a Venezuela para poder analisar a evolução prática de suas teorias.
Seu trabalho acadêmico se baseia na ideia de que se deve teorizar rente ao chão, com conceitos de ida e de volta, que devem chegar ao destinatário e, em seguida, retornar para continuar trabalhando sobre eles.
Durante a década de 1980, passou uma curta temporada, em Nicarágua, trabalhando com os sandinistas no Instituto Nacional de Investigação Econômica e Social. “Foi meu primeiro ingresso nas alternativas latino-americanas”, relembra com alegria. “Aprendi mais deles do que pude ajudá-los”.
Recentemente, visitou Buenos Aires, convidada pela Secretaria de Cultura da Nação, para participar do ciclo “Debates y Combates en Tecnópolis”, junto com Ernesto Laclau e outros cientistas políticos.
Ao finalizar a entrevista, surpresa, Massey comenta que várias pessoas com as quais cruzou, durante sua estadia na Argentina, disseram-lhe que certamente Buenos Aires gostaria dela, pois se parece com uma “cidade europeia”. “Na verdade é algo que não posso entender, é como ser subordinados, desmerecendo o latino-americano. É como não ter confiança para ser você mesmo. É quase um assunto de autoestima, despreza-se o que existe aqui e busca-se referência fora”.
No mundo, com os vínculos financeiros, ou na intimidade, com a diferença entre a cozinha e um escritório. A pesquisadora britânica propõe outra visão sobre os espaços: a que se relaciona com o poder. É desta forma que analisa o neoliberalismo, a globalização e a multipolaridade. Reivindica os novos espaços de poder na América Latina, e fala sobre a maneira como seus conceitos teóricos são aplicados nas reformas territoriais da Venezuela.
A entrevista é de Verónica Engler, publicada no jornal Página/12, 29-10-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você costuma repetir um lema: “A geografia importa” (Geography matters!) Por que e para que, atualmente, a geografia é importante?
Inicialmente, é importante porque a geografia de uma sociedade faz diferença na organização da mesma. O desenvolvimento desigual dentro de um país faz diferença na forma como funciona essa sociedade. Por exemplo, se há jovens que não tem acesso à cultura, terão dificuldades para entrar em determinados espaços, como os grandes museus ou lugares pelo estilo, espaços oficiais da arte; esta dificuldade agrava a exclusão. A organização do espaço tem efeitos sobre a posição social das pessoas. O espaço é um produto social e por sua vez tem efeitos sobre o social. Porque o espaço está repleto de poder. Todo dia produzimos o espaço. Em nível global, por exemplo, estão os vínculos financeiros, e mesmo dentro do espaço íntimo, a diferença entre a cozinha e um escritório marcam estas relações de poder. Na Europa, neste momento, por exemplo, um aspecto importante do problema é espacial, porque não podem arquitetar uma estrutura financeira que ataque o desenvolvimento desigual entre países. É o problema fundamental, é geográfico, mas não podem manobrá-lo.
Na situação em que você descreve, como se classifica a crise grega?
Acredito que o problema para os gregos é resultado da falha na arquitetura da União Europeia, pois não pode resolver o problema do desenvolvimento desigual entre países. É visto como um problema do país, mas na realidade o problema está na organização europeia, não é individual da Grécia. Como na Grécia não puderam desvalorizar sua moeda, tiveram que desvalorizar sua gente. Desta forma, a questão de não poder manobrar estas questões geográficas produz efeitos terríveis. Faz também parte de meus argumentos que, em termos de poder das elites da Europa, estão fomentando políticas nacionalistas, e ao invés de acusarem os bancos e o FMI, os gregos estão acusando a Alemanha. As pessoas na Espanha também jogam a culpa na Alemanha. Assim, estão tornando aquilo que é uma responsabilidade dos bancos num problema em que pessoas de diferentes países lutam uns contra os outros. Desta maneira, a imaginação geográfica, mediante as identidades nacionais, está sendo utilizada para contrapor um povo contra outro.
Partindo de uma perspectiva geográfica, como observa este fenômeno que hoje é nomeado como “globalização”?
Em primeiro lugar, eu diria que o termo “globalização” deveria ser acompanhado de um adjetivo, porque hoje o que temos é uma “globalização neoliberal”. O problema não é o fato de ser global, mas a forma de ser. É importante pensar em diferenciar estas questões. Em segundo lugar, acredito que precisamos focalizar esta versão da globalização num mundo multipolar. Para mim é importante a ideia de multipolaridade, pois é uma tentativa de dizer: “Sim, queremos ser internacionalistas, globais, mas queremos ser globais de uma forma diferente, não de uma maneira neoliberal”.
O que você quer dizer com multipolaridade?
É bom esclarecer esta ideia, pois percebo no debate atual diferentes interpretações. Acredito que algumas pessoas, com a expressão multipolaridade, pretende apenas dizer que há variações no mundo, que alguns são diferentes de outros. Contudo, para mim a questão da multipolaridade é essencialmente política. É uma questão que surge numa era unipolar, em que os Estados Unidos e o neoliberalismo eram completamente dominantes. Para mim, então, a questão é: “Podemos estabelecer a multipolaridade no sentido de contar com alternativas ao neoliberalismo?” Desta maneira, não existe apenas um centro de poder no mundo. Na sociedade, existem manifestações que demonstram que outras formas de organização são possíveis. É por isso que a questão da multipolaridade está sendo encarada, aqui, na América Latina.
Entretanto, nem todo mundo pensa assim. Podemos realmente desafiar a hegemonia do liberalismo, num nível internacional? Para mim, a multipolaridade é mais do que um reconhecimento das diferenças. É necessário um real desafio à dominação unipolar. Neste momento, parece existir apenas uma forma de economia, que é a do mercado livre, a do neoliberalismo. Deste lugar, quando dizem que não há alternativa, querem dizer que há apenas uma forma de organizar a economia e a sociedade. É um tema quase filosófico, o espaço é a dimensão da multipolaridade, o espaço é a dimensão em que muitas coisas existem ao mesmo tempo. O que liberalismo e algumas das versões da modernidade fazem é colocar as diferenças geográficas numa só direção histórica, demonstrando que existe apenas uma possibilidade. Abrir-se à multiplicidade implica uma espacialização, abrir-se à possibilidade da multipolaridade.
O que seria reconhecer que existe mais do que a diversidade?
Acredito que o real desafio seja o dos princípios do neoliberalismo, particularmente a ideia de que o mercado é algo natural, que está fora do social, algo que não deve ser debatido, como se fosse uma força da natureza. Isto é o que estabelece o neoliberalismo, o mercado. A primeira coisa a ser feita é enfrentar isto. E segundo lugar, devemos desenvolver um sentido multipolar, necessitamos desenvolver formas de organizar a sociedade que tenham suas próprias trajetórias, suas próprias dinâmicas, que não sejam apenas uma variação do neoliberalismo, algo centralmente diferente, com uma economia social que tenha uma dinâmica particular. Em terceiro lugar, precisa ser algo sustentável. Porque nós na Europa acostumávamos pensar que a social-democracia era uma alternativa ao neoliberalismo. Porém, por diferentes razões, a social-democracia falhou completamente, principalmente porque não foi suficientemente radical no nível econômico, não desafiava o mercado. Além disso, não estabeleceu uma base social suficientemente forte. Por isso, foi insustentável econômica e socialmente.
De alguma maneira, você reconceituou a ideia de lugar. De que forma os lugares podem ter um sentido global?
Por um lado, como geógrafa quero reconhecer as especificidades dos espaços, amo os lugares e as diferenças entre eles. Contudo, por outro lado, quero ser internacionalista, tenho interesses nas relações globais. Tem muitas pessoas que prestam atenção na especificidade dos lugares, a partir de um lugar tipicamente romântico. Este tipo de amor aos lugares se torna algo sentimental, essencialista. Acredito que podemos amar a especificidade dos lugares, mas, ao mesmo tempo, devemos acabar com este tipo de visão romântica e essencialista. Por exemplo, a “britanidade”. A Inglaterra não seria a Inglaterra sem as relações com o resto do mundo: império-colônia, o bom e o mau. Então, a identidade dos lugares não é algo que surge do solo, mas das relações mantidas com o resto do mundo.
Um lugar não é uma coisa fechada, com uma identidade essencial, é uma articulação específica de relações globais, e é esta articulação de relações mais amplas que apresenta a sua particularidade. A especificidade dos lugares é sempre um produto de coisas mais amplas. E essa especificidade é algo que está em disputa.
Você introduziu um conceito novo em geografia, o de “geometria do poder”. Pode explicar do que se trata?
Como eu dizia, os espaços estão cheios de poder e são produtos das relações sociais, construímos o espaço o tempo todo. O poder é sempre um produto relacional, não se trata de que eu tenho poder e você não, trata-se do exercício do poder entre pessoas, entre as coisas, entre os lugares. O conceito de geometria do poder tenta apreender estas questões. O espaço é sempre formado por relações sociais plenas de poder e, por outro lado, o poder tem uma cartografia. Mapas do poder social, político e econômico podem ser feitos.
Este conceito de “geometria do poder” está sendo utilizado nas reformas territoriais, realizadas na Venezuela. De que forma o governo de Chávez incorpora suas ideias?
Eles estão utilizando esta ideia de tornar a geografia do poder político do país mais igual. E existem muitas formas para fazer isso. Primeiro, buscam igualar o poder entre as grandes cidades da costa e as menores, que estão mais distantes. A ideia é dar voz a todos os lugares, em nível local, no diálogo político. É um projeto que poderá levar muito tempo, mas eles estabeleceram as formas institucionais que podem desenvolver este tipo de poder, esta é uma das questões. O outro assunto é o desenvolvimento dos conselhos comunais. A partir de cada quatrocentos lares, pode se formar um conselho comunal. São gerados e operados por meio de uma democracia participativa. Isto é a autogestão local.
A geografia do poder está baseada no local, indo de baixo para cima, o que muda a natureza do poder, desde o poder de votar até o poder de fazer, de conseguir coisas práticas. Estão procurando pensar a geografia do poder político no país, tanto em termos de regiões, como de cidades. Por exemplo, em Caracas há um sentimento real, pela primeira vez as pessoas dos bairros pobres realmente sentem que tem voz, e isto é uma mudança na geografia do poder político. Antes os bairros pobres estavam excluídos do diálogo político, não tinham voz política, eu acredito que eles agora, sim, possuem.
Em seu parecer, experiências da América Latina, como a formação da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), é uma forma de desenvolver a multipolaridade?
Exatamente. Para mim o estabelecimento da Celac é muito significativo, é a primeira organização que inclui todos os países da América, com exceção dos Estados Unidos e Canadá. Marca uma nova identidade continental. Na Europa, diferente do que está ocorrendo aqui, não há realmente um sentido de identidade europeia. Por outra parte, a União Europeia é apenas de mercado livre e concorrência entre países, não tem a ver com um projeto comum, com relações sociais, simplesmente é de neoliberalismo. Na América Latina, eu vejo um mosaico de alianças: Unasul, Alba e Petrocaribe, são maneiras diferentes de imaginar o espaço em relação à Europa. As relações podem significar mutualidade ou cooperação, ou mudança igualitária, isso não é neoliberal. E isto também é construir uma identidade no continente, uma solidariedade, o que também permite as diferenças.
Sabemos que Bolívia não é o mesmo que Argentina, mas existe uma solidariedade. Pode haver diferenças e solidariedade também. Isto é diferente do que ocorre na Europa. Por um lado, há um novo tipo de espaço, um novo tipo de identidade, mas também acredito que esta identidade está começando a desafiar o neoliberalismo. Para mim, que vejo a partir da Europa, isto é fantástico. Porque o que está acontecendo é a construção de uma nova voz, que está dizendo coisas diferentes e, desta maneira, está desafiando ao neoliberalismo. Por outra parte, há experiências de novas formas de democracia. Isto também dá esperança para a Europa, pois o estabelecimento de um sentido para este novo projeto, como na Venezuela, realmente depende da gente. E estes projetos são uma forma de dizer que há alternativas ao neoliberalismo.
O que está ocorrendo na América Latina é diferente. As perguntas são: é suficientemente diferente? Está desafiando as bases? É sustentável? Isto é realmente uma batalha ideológica, uma batalha acerca da imaginação geográfica. A imaginação geográfica, nos Estados Unidos e Europa, diz que ainda somos o centro do mundo. Parece-me que o mais importante é que a partir da América Latina estão concebendo algo diferente. Há alguns anos, eu estive na Índia, e eles falavam de políticas tecnológicas, em suas discussões mencionavam suas relações de concorrência com a China, ninguém mencionou os Estados Unidos ou Europa. Isto é incrível e significa que há realmente possibilidades de desenvolver um mundo multipolar, mas no caso da Índia era uma questão apenas econômica. O que eu gosto na América Latina é que também se trata de um assunto político, um desafio ao neoliberalismo.
Você trabalha na Open University, uma universidade bastante especial na cena acadêmica da Grã-Bretanha, já que é aberta à classe operária. Como é trabalhar nesta instituição?
Para mim é muito importante estar na Open University (OU). Eu venho de uma área pobre do norte, da classe operária de Manchester, mas fui à Universidade de Oxford. Embora, de fato, ame o trabalho acadêmico, o elitismo da Oxford me fez pensar que não queria ser uma acadêmica. Então, durante vários anos trabalhei fora da universidade, fazendo outras coisas, porque pensava que ser uma acadêmica era algo muito elitista. Em certo momento, veio a possibilidade de trabalhar na OU e, desta maneira, foi resolvido o meu problema, pessoalmente porque era uma universidade com projeto político de educação popular e democrática. É o único lugar em que penso que poderia ser feliz como acadêmica. É um projeto democrático, pode-se ir para a OU sem títulos, mas oferecem o apoio necessário para que cada pessoa possa alcançar o nível universitário. É uma universidade explicitamente antielitista. E é de massa, possui milhares de estudantes. Na faculdade de ciências sociais deve existir mais de dez mil estudantes. Para mim é como deveria ser a educação, em diferentes aspectos, e para qualquer um. Num curso posso ter uma grande variedade de pessoas, pode ter um diplomata, uma dona de casa, um trabalhador do porto, e isto me encanta. Já me ofereceram trabalho em universidades de elite, mas eu sempre continuei trabalhando na OU.
Além de seu trabalho acadêmico, você costuma trabalhar com artistas.
Sim, trabalhei com (o artista dinamarquês) Olafur Eliasson, que tem um estúdio em Berlim. Envolvi-me muito em projetos com artistas que estão interessados no espaço. Recentemente terminamos um filme (Robinson in Ruins), e também escrevi um ensaio que se chama “Landscape, Space, Politics” (Paisagem, Espaço, Políticas). O que procuramos fazer é pensar a respeito de como ler a paisagem politicamente, sem romantizar, como caminhar por meio de uma paisagem e entendê-la, e poder aprender da paisagem que está incidindo na sociedade. É um projeto com um sentido político, tem muito a ver com a globalização neoliberal, com a crise financeira e com a reivindicação de uma mudança. Vanesa Redgrave fez a locução no filme. Sinto-me muito feliz, porque o assunto pelo qual estou interessada, o espaço e a política, está em todas as partes, então posso trabalhar com uma grande quantidade de pessoas. Posso estender minhas inquietudes para diferentes áreas, e desta maneira aprendo mais. Por exemplo, os artistas pensam muito diferente de mim, e por isso eu gosto de trabalhar com eles. Sobre os mesmos problemas, temos aproximações muito diferentes, e para mim isto é maravilhoso. É o que me mantém ativa, é a forma de se abrir para outras maneiras de pensar.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/03/11/2012
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