Tempestade ameaça a cidade-símbolo da riqueza e da potência humana
Lucas Jackson/Reuters
Para filósofo da ciência, o furacão que castigou Manhattan está longe de ser um evento 'natural' e é a prova de que cidadãos e governos terão de levar realmente a sério as mudanças climáticas
Nós, homens modernos, costumamos nos imaginar como seres racionais,
que orientam suas ações pela lógica da causa e efeito, capazes de domar a
natureza com os instrumentos avançados da ciência e da tecnologia.
Construímos metrópoles, civilizações e uma inabalável autoconfiança. E
então, de um dia para o outro, uma tempestade de proporções bíblicas
ameaça a cidade-símbolo da riqueza e da potência humana. E a natureza
cobra seu preço dos inquilinos de um planeta que se torna pequeno diante
de suas ambições.
"Em primeiro lugar, deixe-me dizer que o furacão Sandy não foi um
evento 'natural'." Com essas palavras, surpreendentes na boca de um
filósofo da ciência, o australiano Peter Singer começa a entrevista que
você lê a seguir. Professor de bioética da Universidade Princeton -
pesquisador e ambientalista incansável na denúncia dos riscos do
aquecimento global e na defesa dos direitos dos animais -, Singer
espanta-se tanto diante dos que creem em um Deus onipotente e
intervencionista a zelar pela vida dos homens quanto dos que relutam em
acreditar nos dados científicos que atestam os efeitos nefastos da ação
humana sobre o clima da Terra.
Com o número de mortos em decorrência do Sandy aproximando-se da
centena na sexta-feira e a campanha presidencial virtualmente paralisada
nos Estados Unidos diante da tragédia, pelo menos um sintomático efeito
político se fez sentir: o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, um
independente que já esteve afinado com os republicanos, declarou apoio à
reeleição de Barack Obama. Alarmado com a magnitude da destruição na
cidade, Bloomberg tomou partido na celeuma sobre o tema ambiental, que
divide democratas, defensores do investimento em energias verdes, dos
"negacionistas" republicanos, que refutam a ideia de que o aquecimento
global seja causado pela ação do homem.
Para Peter Singer, chegamos ao ponto em que não basta intensificar
preparativos para emergências de grandes proporções em nossas
metrópoles. Será preciso tomar uma atitude radical em relação às
emissões de gases do efeito estufa, nas formas de geração de energia e
em nossos próprios padrões de consumo - antes que seja tarde demais.
"Tempestades extremas como essa", diz o professor, "evidenciam nossa
ingenuidade ao imaginarmos que o conhecimento científico é suficiente
para nos proteger delas."
As imagens do furacão Sandy sobre Manhattan lembram muito os
filmes de catástrofe em Hollywood, que atraem multidões aos cinemas.
Qual é o efeito desses grandes eventos naturais sobre a autoestima e a
imaginação do homem atual?Em primeiro lugar, deixe-me dizer
que não devemos admitir que o furacão Sandy foi um evento "natural".
Cientistas que pesquisam mudanças climáticas induzidas pela atividade
humana já haviam previsto que eventos climáticos extremos iriam se
tornar mais comuns. Por sua intensidade e força, é praticamente certo
que o furacão esteja conectado aos danos que causamos ao meio ambiente.
No que se refere ao clima, assim como às plantas, animais e tudo o que
chamamos de "ambiente natural", não existe mais "natureza" neste
planeta: estamos vivendo numa era em que a atividade humana afeta tudo,
em todas as partes do mundo. Dito isso, tempestades extremas como essa, e
também terremotos e tsunamis, evidenciam nossa ingenuidade ao
imaginarmos que nosso conhecimento científico é suficiente para nos
proteger deles. Às vezes podemos prever esses eventos, o que
evidentemente nos ajuda a salvar muitas vidas, mas ainda assim eles
mostram quão pífios podem ser nossos melhores esforços para
enfrentá-los.
Então eles abalam, além de cidades, as nossas crenças?Exato.
Esse é um fator curiosamente ignorado muitas vezes. Em 1755, após um
terremoto e um tsunami devastarem Lisboa, matando dezenas de milhares de
pessoas, filósofos iluministas questionaram como o mundo poderia ter
sido criado por um ser onipotente, onisciente e benevolente. Este não
pode ser o melhor dos mundos, disse Voltaire por meio de seu personagem
Cândido. Concordo com ele e me intriga o fato de cristãos tradicionais
testemunharem semelhantes calamidades - com milhares de mortos,
incluindo crianças, com sofrimento generalizado - e continuarem a crer
em um deus com semelhantes atributos.
Mesmo com as previsões dos cientistas e com as precauções
tomadas pelas autoridades americanas, a usina nuclear de New Jersey
entrou em 'estado de alerta' devido à tempestade. Por mais que nos
preparemos para tais eventos, chegaremos a estar seguros?A
energia nuclear é uma atividade inerentemente perigosa, e desastres como
o tsunami que atingiu a planta nuclear de Fukushima deixaram isso
bastante claro. Tanto que países como a Alemanha já acordaram para a
necessidade de abandoná-la. Mesmo quando as probabilidades de algo dar
errado são extremamente baixas, se isso acontece as consequências podem
ser um desastre de proporções inéditas - e podem tornar uma extensa
região inabitável por séculos. Claro que a energia nuclear não contribui
para o aquecimento global e é, compreensivelmente, uma alternativa
atraente aos olhos de muitos. Mas há outras opções mais seguras que o
nuclear ou as termoelétricas a carvão, como a energia solar, eólica e
hidrelétrica, com eficiência razoável e menor produção de lixo.
O sr. afirma que o Sandy não pode ser chamado de evento
'natural', mas alguns cientistas têm dito que, embora intenso, ele não
foi tão diferente de outros furacões ou ciclones. Sandy
poderia ser chamado de "normal" no contexto de um fenômeno que ocorresse
uma vez a cada cem anos. O problema é que esses "desastres naturais"
têm tido frequência cada vez maior, de um a cada década. Seria difícil
dizer, diante de um único furacão, que ele é resultado do aquecimento
global. Mas no atual cenário de furacões, enchentes e secas cada vez
mais frequentes no mundo, eu não chamaria o Sandy, de forma alguma, de
"fenômeno natural".
Ou seja, a partir de agora as pessoas terão que desenvolver
uma certa 'consciência de sobrevivência' para enfrentar desastres cada
vez mais comuns?Prefiro dizer que as pessoas - e os
governos - terão de levar realmente a sério as mudanças climáticas. Nós
temos de reduzir as emissões de gases antes que a situação se torne
ainda pior. Mas enquanto isso não acontece as pessoas podem se preparar
para perdas e desastres cada vez mais frequentes nas grandes cidades.
Quanto os urbanistas de hoje estão preparados para enfrentar essa situação?O
planejamento urbano começa a centrar foco na antecipação de
emergências, mas é muito difícil estar preparado para ocorrências de tão
grandes proporções. Na construção do novo World Trade Center em Nova
York, por exemplo, a polícia solicitou que a base do edifício fosse
forte o bastante para resistir a uma grande explosão. Só que esse é
apenas um tipo de emergência possível. Existe, como se pôde perceber
agora na cidade, muito pouca proteção para barrar as inundações. Mesmo
as instalações de energia elétrica nova-iorquinas não estão protegidas:
enquanto falamos aqui, a parte baixa de Manhattan continua às escuras, e
pode levar dias até que a energia seja religada.
A campanha presidencial americana parou por causa do furacão.
Grandes tragédias, como o furacão Katrina em 2005, sempre afetaram a
política, mas de início parece haver um acordo tácito para enfrentá-las.
Por quê?Num primeiro momento, há a sensação de que todos
devem se unir e trabalhar juntos para reduzir os danos. Mas é um
sentimento que não dura muito. O Katrina, no fim, foi devastador para a
administração Bush, principalmente porque a Fema (Federal Emergency
Management Authority, agência governamental responsável pela prevenção
de catástrofes) fez um trabalho péssimo - e ficou revelado que Bush
havia nomeado um amigo político sem experiência no assunto para a chefia
da agência. Agora, tanto as agências meteorológicas quanto a Fema
fizeram um trabalho muito melhor do que no caso Katrina.
"E
vale ainda notar que pessoas mortas em furacões, terremotos, tsunamis e
ataques terroristas ganham muito mais atenção do que as que perdem a
vida por razões relacionadas à pobreza, à falta de saneamento,
água
potável ou atendimento médico.
De acordo com a Unicef, as mortes de 8
milhões de crianças a cada ano em decorrência de fatores como esses
poderiam ser evitadas. Isso é mais do que 20 mil óbitos por dia -
tragédia muito maior que a do furacão Sandy, seja no Haiti, seja nos
EUA."
Aparentemente, Obama e Romney têm visões distintas sobre a importância da Fema. De
fato. E espero que os apoiadores do presidente Obama deixem bem claro
que Mitt Romney disse, no ano passado, que pretendia extinguir a Fema e
atribuir suas funções aos Estados. Depois do furacão Sandy ele já mudou o
discurso, não quer mais abolir a Fema... O que prova que diz qualquer
coisa para ser eleito. Há uma clara diferença entre os dois candidatos
nesse assunto. Depois de Bush ter diminuído o status da Fema, Obama
felizmente o recuperou. Mas os republicanos insistem na ideologia de
reduzir o poder do governo federal, mesmo quando é óbvio ser impossível
para as autoridades individuais dos Estados lidarem com um problema como
o do furacão Sandy, que afeta vários deles.
Segunda-feira, quando as estatísticas americanas registravam
menos de uma dezena de mortos, 52 pessoas já haviam morrido por causa do
Sandy no Haiti. Nessas grandes tragédias as vidas das populações mais
pobres contam menos? É fato que populações pobres,
distantes dos centros internacionais de mídia, recebem muito menos
atenção. É um problema que sempre vimos e estamos vendo de novo agora. E
vale ainda notar que pessoas mortas em furacões, terremotos, tsunamis e
ataques terroristas ganham muito mais atenção do que as que perdem a
vida por razões relacionadas à pobreza, à falta de saneamento, água
potável ou atendimento médico. De acordo com a Unicef, as mortes de 8
milhões de crianças a cada ano em decorrência de fatores como esses
poderiam ser evitadas. Isso é mais do que 20 mil óbitos por dia -
tragédia muito maior que a do furacão Sandy, seja no Haiti, seja nos
EUA. Uma tragédia cotidiana, que não rende imagens cinematográficas na
TV; simplesmente não é noticiada.
Essa semana, uma corte italiana condenou por homicídio
culposo sete sismólogos que não previram um terremoto que matou 300
pessoas em 2009. O que achou do caso?Um absurdo e uma
ameaça à pesquisa científica. Como podemos incentivar que pesquisadores
deixem as universidades para prestar serviço em áreas de significância
pública se os ameaçamos de prisão quando algo dá errado? Não está claro
sequer se esses cientistas cometeram algum engano nesse caso - eles
podem ter agido com base nas evidências que eram disponíveis. Podiam ter
feito melhor? Como saber? E, ainda que tivessem cometido um equívoco
genuíno, jamais se justificaria condená-los por homicídio culposo!
O que já aprendemos sobre a prevenção de grandes tragédias naturais?Que
não se pode esperar proteção completa diante de terremotos ou eventos
climáticos extremos. Mas certamente podemos construir edifícios mais
sólidos, erguer barragens anti-inundação e proteger os equipamentos de
infraestrutura essenciais ao funcionamento das cidades. Organizações
como a Geohazards International, por exemplo, têm sido pioneiras no
desenvolvimento de projetos como o de parques altos em cidades
costeiras, sujeitas a tsunamis, que podem acolher a população tão logo
ocorra um alerta de terremoto oceânico. O problema, obviamente, é que
tudo isso custa dinheiro, e quando os riscos de que determinado evento
ocorra são pequenos, tendemos a não querer gastar com isso.
Como lidar com o potencial de destruição da natureza quando precisamos desesperadamente preservá-la da destruição humana?O
melhor que podemos fazer a ambos, a natureza e nós, é reduzir as
emissões de gases do efeito estufa. Nesse sentido, não podemos ignorar
que um dos fatores de maior geração desses gases é a produção de carne -
especialmente a bovina, pois as vacas produzem metano, que contribui 72
vezes mais para o aquecimento global que o dióxido de carbono. Sem uma
mudança efetiva em nossos padrões de consumo, não vamos conseguir
desacelerar a mudança climática que torna cada vez mais frequentes
desastres como o furacão Sandy.
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* Entrevista
PETER SINGER - FILÓSOFO, PROFESSOR DE BIOÉTICA DA UNIVERSIDADE PRINCETON E AUTOR DE A VIDA QUE PODEMOS SALVAR (GRADIVA, 2011)
PETER SINGER - FILÓSOFO, PROFESSOR DE BIOÉTICA DA UNIVERSIDADE PRINCETON E AUTOR DE A VIDA QUE PODEMOS SALVAR (GRADIVA, 2011)
REPORTAGEM POR IVAN MARSIGLIA - O Estado de S.Paulo
FONTE: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,e-o-homem-criou-sandy,955408,0.htm
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