Um dia ele se atrasou 10 minutos para o treino; pediu desculpas até para a bandeirinha
Jonne Roriz/Estadão
Jonne Roriz/Estadão
Zizao chegou como estratégia de marketing. Quase sem jogar, virou o mais improvável anti-herói da Fiel
Quer água de cocô? Hehehe." O Zizao vai abrindo a
geladeira e eu não sei se essa risadinha dele é a de sempre. Um reflexo
nervoso que encerra as frases que ele estropia em português? Ou uma
zombaria ensinada pelos amigos no vestiário? Penso rápido e fico com a
primeira. Sua intimidade com os latins ainda não dá pra essas sutilezas
de deslocar a sílaba tônica em nome de uma boa sacanagem. "Água de cocô.
Brasil. Gostoso. Hehehe", ele insiste, e abre espaço pros copos na mesa
com tampo de vidro. Numa braçada ele escanteia os montes de Bis,
bolachas recheadas e um livrinho de capa verde vai junto. Português do
Brasil para Chineses. Dentro, uns rasgos de papel do seu dicionário
artesanal construído dia a dia desde que chegou para jogar no
Corinthians, em março. Lá fora, o silêncio do vento, latidos esparsos e
os passarinhos do condomínio bucólico onde ele mora, fora de São Paulo. O
verbete mais novo, em letra mirrada de criança, é simples e esperançoso
como o seu futebol: "apoio = support = (dois ideogramas chineses que
sou incapaz de reproduzir)". Anotou porque queria escrever no Facebook
um agradecimento à mais fiel das torcidas. "Obrigado por seu apoio."
Bebemos a água de coco. E logo eu percebo que há uma palavra banida
do vocabulário zizaozístico. Marketing. Ela exerce um estranho poder
sobre ele - o poder de repentinamente deixá-lo puto. Sem hehehes. Nem
precisa entender a frase inteira. Se ouve "marketing" o Zizao já sabe do
que se trata. E então desapruma as sobrancelhas, murcha os lábios e diz
numa tacada só, em inglês yakissoba: "É uma boa ideia o clube me trazer
como estratégia de marketing. Isso o ajuda a ficar conhecido na China.
Mas tem uma coisa importante: eu preciso jogar bem pro marketing
funcionar. Se eu não jogo bem, as pessoas se esquecerão de tudo". Soa
quase como um grito de socorro. Deve ser chato ser visto como um
negócio, um enfeite. Um vaso da dinastia Mao para mera apreciação e, às
vezes, deboche. Já teve equipe de TV que levou o Zizao pra equilibrar
melão na cabeça no Mercado Municipal. Outra que o fez cantar "aqui tem
um bando de loucos..." e mais uma que só queria saber se ele conhecia
Tufão e Carminha. "No conhece. Hehehe", respondeu, um tanto sem jeito e
assustado.
O economista Luis Paulo Rosenberg, vice-presidente do Corinthians,
nunca tergiversou sobre o plano que ele mesmo inventou: "O mercado de
futebol na China está crescendo rápido. Tem empresário graúdo
investindo. O Zizao é o nosso jeito de fazer os chineses olharem pro
Corinthians. Queremos colocar a marca Corinthians na China pra vender
camisas lá, fazer amistosos lá, pré-temporadas, parcerias com empresas
de lá". Por que lá? A economia, estúpido. Lá o marfinense Drogba foi
jogar por US$ 320 mil por semana. E também o argentino-fluminense Darío
Conca, por US$ 60 milhões por cinco temporadas. Lá está o técnico
italiano Marcelo Lippi, campeão do mundo em 2006. Lá o Barcelona belisca
€ 10 milhões numa pré-temporada de duas semanas. Rosenberg quer enfiar o
Corinthians nessa ciranda. Calma, palmeirense... Não é tanta maluquice
assim. "O mercado chinês de futebol está em formação. Os torcedores
ainda não se identificam com os clubes locais, estão aprendendo a gostar
do jogo. E já é o décimo campeonato com maior média de público no
mundo, na frente do Brasil, o 13º. Trazendo um chinês pra cá, o
Corinthians tenta se posicionar entre as marcas referenciais que estarão
no imaginário desse torcedor em formação. Com estratégias
complementares, como oferta de produtos do clube, plano de sócios e
excursões constantes, pode dar certo", analisa o Fernando Ferreira,
sócio-diretor da Pluri Consultoria Negócios Esportivos.
Vendo-o afundado no sofá da sua sala, de camiseta, calça de abrigo e
havaianas, eu acho que o Zizao não dá a mínima pra essa coisa toda. Ele
quer jogar. Mais que isso. Quer mostrar que sabe jogar e assim afastar
um pouco a sombra do tal marketing. E, se me permitem um pitaco neste
país de técnicos de futebol e comentaristas políticos, arrisco queimar a
minha língua: pelo que vi nos treinos das últimas duas semanas, digo
que o Zizao sabe jogar. Não é um Messi, obviamente, ao contrário do que
jurou o repórter de uma TV estatal chinesa que veio entrevistá-lo esses
dias. Mas está longe de ser um perna-de-pau. Vi o Zizao marcar gols de
cavadinha e de sem-pulo. Driblar com certa desenvoltura. E perder umas
bolas fáceis. Acima de tudo, vi o Zizao correr pra chuchu. "Olha, quando
a gente soube que viria um chinês pro time ficou todo mundo
desconfiado. Pra que um chinês?! Pô, com esse monte de jogador que tem
no Brasil...", me disse numa tarde quente o lateral-esquerdo Fábio
Santos. "Mas um boleiro reconhece outro bem rápido. No primeiro treino,
assim que o Zizao tocou na bola, a gente sacou que ele sabe jogar." Os
meus colegas com mais tarimba em coberturas futebolísticas diziam - com
razão e evocando o mestre Didi - que treino é treino e jogo é jogo.
Alguns deles, porém, compartilhavam, além da beirada do campo, uma
dúvida a respeito de qual seria a perna boa do Zizao. Porque num
exercício de cruzamentos e finalizações, o china batia de esquerda e de
direita com a mesma força e precisão.
"Direito melhor. Hehehe", o Zizao afirma, mostrando o dedão daquele
pé, onde há uma colônia de calos e bolhas a atestar seu uso mais
frequente. Com 1,70m, 63 kg e uma voz fina e hesitante, o Zizao parece
um menino de 16 ou 17 anos, embora tenha 24. Pelos meus cálculos, a
timidez dele é 358 vezes maior que o PIB da China. Mesmo assim ele não
reluta em me mostrar a casa que comprou e está pagando em prestações com
o grosso do seu salário de US$ 15 mil por mês. Comprou e não alugou
porque, se puder, quer ficar pra sempre no Brasil. Curioso isso, pois o
que ele conheceu do País nestes oito meses se resume às duas rodovias
que usa para ir e voltar do treino e aos filmes Cidade de Deus e Tropa
de Elite que lhe indicaram dizendo "toma, olha como é o Brasil". No ano
que vem ele quer trazer a namorada chinesa e ir para Fernando de
Noronha, que garantiram pra ele ser um "palaíso". Mas raramente o Zizao
sai de casa. É praticamente um china in box. Provou caipirinha e não
gostou. Feijoada, sim. E admira a religiosidade do povo local. "Tite
conversa com santa. Todos dias. Acho ouve ele. É bonito. Hehehe," conta
sobre o treinador.
Seu empréstimo ao Corinthians termina no final de 2013 e, depois
disso, sabe-se lá. A casa ele achou na internet. É dessas pré-fabricadas
de madeira, instalada sobre um andar térreo de alvenaria. Tudo simples,
com poucos móveis e só uma traquitana made in China digna de nota: um
robô-vassoura. Você aciona o bicho por controle remoto, ele faz o
serviço aos rodopios, reconhecendo degraus, cantos, toda sorte de
obstáculos, e no final volta sozinho pra tomada. Uma beleza. No andar de
cima vive o casal de amigos chineses que mora com o Zizao. Zhengjie
Zhuang, a mulher, acaba de dar à luz. Yang Jiang, o marido, está há oito
anos no Brasil, ajuda Zizao como intérprete e tem um negócio de
importação de coisinhas pra animais de estimação. No momento, ele aposta
nas unhas de silicone para gatos. "Na China é um sucesso. Aqui ainda
vai pegar." Os três conversam em mandarim. Mas a língua materna do Zizao
é o cantonês. Nela, o seu nome, Zhi Zhao (Zizao e a variante Zizão são
obras corintianas), é pronunciado Tchi Tchu, de onde vem o apelido Tchu.
Mas o Yang não gosta de chamá-lo assim. "É que na minha cidade Tchu
quer dizer fedido."
O Zizao mora no andar de baixo, uma parte da casa que cheira a sabão
em pó. O quarto dele fica ao lado da área de serviço. É de onde ele ouve
todos os dias, perto das 6 e meia da tarde, um vizinho gaiato parar o
carro no portão, acelerar forte e gritar: "Vai Zizao! Vai Colíntias!"
Também pensa na mãe, no pai e na irmã olhando as datas de nascimento
deles que tatuou no braço direito. E onde ri sozinho ao lembrar o
Pacaembu e a magnética embevecida assim cantar: "Um, dois, três! Coloca o
chinês!" Isso me remete a um comentário do publicitário Washington
Olivetto sobre a capacidade dos corintianos nos encantarmos com certos
jogadores folclóricos do nível de um Ataliba, um Biro-Biro, um Zizao: "O
time que tem um monte de anti-heróis na plateia convive melhor com seus
anti-heróis de dentro do campo". Meu amigo jornalista Celso Unzelte,
grande historiador do Timão, lembra do volante cintura-dura Ezequiel e
valida: "Ao contrário dos gênios, esses caras são como nós, mortais. Só
que tiveram a chance de estar lá embaixo jogando. Dão tudo de si como
nós daríamos".
Retornemos ao quarto do Zizao. Enfileirados perto da porta há dois
pares de chuteiras e dez tênis Nike, seu patrocinador. Uma cama, uma
mesa, um violão e um criado-mudo cheio de moedas e cédulas de yuan, o
dinheiro chinês. Nas paredes pintadas de laranja berrante ele pendurou
com esparadrapo uns cartazes que o Tite lhe deu. Num deles, em português
e inglês, se lê "Humildade. Ambição. Sabedoria". Noutro, uma frase do
craque Tostão: "Ao contrário do que diz o chavão, que o medo de perder
tira a vontade de vencer, os grandes jogadores e times começam a perder
mais que o habitual quando se acostumam com a vitória, o sucesso, a
rotina, e perdem a ansiedade, o medo de serem derrotados". O Zizao diz,
sem tirar os olhos de um cubo mágico que tem entre os dedos: "Eu
entende. Yang traduz". Ele acerta todas as cores do brinquedo logo
depois. Não gastou nem dois minutos. "Existe técnica. No bom ainda.
Record mundial cinco segundos."
Bolonas e bolinhas. E aí está. Jogar futebol, pro Zizao, é como
resolver um cubo mágico. Questão de técnica e raciocínio. A intuição ele
deixa pros brasileiros. Foi assim desde que aos 9 anos ele decidiu ser
jogador profissional na China - um país, como lembra o Yang, que só é
bom com as bolinhas pequenas e sempre viu o futebol como coisa de
malandro. Mas o pai do Zizao deu aquela força. Botou o menino numa
escolinha e foi atrás de livros e vídeos pra entender o jogo. Leu
biografias de Zidane, Maradona, Ronaldo, Beckham. Viu gravações dos
jogos dos grandes times europeus. "Trabalhar é uma necessidade da vida. E
trabalhar como jogador era o sonho do Zizao, então eu dei o meu máximo
apoio, como daria em qualquer outra profissão que ele escolhesse", me
diz por Skype, de Panyu, sudeste da China, o patriarca Chen Jing Xian,
de 50 anos. O Yang, que traduz a conversa, garante que Jing Xian se
tornou um entendido no assunto. "Quando assiste a um jogo no estádio,
ele vai apontando quem está fora de posição, quem tem boa técnica e quem
é ruim e, principalmente, quem está com preguiça."
Vai ver é por isso que o Zizao treina tanto. É comum que ele durma no
centro de treinamento para se exercitar na manhã seguinte, sozinho, sem
ordem de ninguém. Nessas horas está sempre com a bola, chutando-a num
paredão, ensaiando viradas rápidas, ou apenas correndo com ela colada
nos pés. O preparador físico Fábio Mahseredjian conta que pede pra ele
não exagerar, porque, se deixar, o Zizao treina em dois períodos todos
os dias - por conta própria. "Eu já trabalhei com jogador croata,
peruano, argentino, italiano. E te juro: o Zizao é o primeiro que eu
vejo treinar sem ser obrigado. Um dia furou o pneu do carro dele e ele
chegou dez minutos atrasado. Você precisava ver o tanto que esse menino
se desculpou. Pediu desculpas pra comissão técnica, pros roupeiros, pro
outros jogadores, para a bandeirinha de escanteio...", diz, hiperbólico,
o Mahseredjian. No momento, ele faz um trabalho de fortalecimento
muscular com o Zizao, porque o Tite, em bom titenês, pediu para melhorar
"o potencial de estabilização" dele. Traduzindo: o Tite, egresso da
escola gaúcha de futebol, acha que o Zizao precisa aguentar mais em pé
quando levar uns trancos dos adversários. Desde que chegou, ele já
sofreu duas luxações no ombro - a primeira por causa de um tombo, a
segunda por causa de um simples puxão na camisa - e teve que operar.
Até este domingo, o Zizao tinha jogado apenas 13 minutos. Contra o
Cruzeiro, no dia 17 do mês passado. Chutou pro gol, caiu, cobrou
escanteio, deu passe de calcanhar. E correu pra chuchu. Ao todo, tocou
nove vezes na boa. Na melhor delas deixou um zagueiro sentado e, quando
ia deixando o segundo com uma pedalada, acabou desarmado. Se passasse,
ficaria sozinho na cara do gol. "Abusado esse Zizao!", espantou-se o
narrador Milton Leite. Nos dias seguintes à partida, o china ficou horas
na frente da TV revendo o lance. Queria entender onde tinha errado, se
havia outra saída. E, provavelmente pensando num cubo mágico, concluiu:
"Melhor jogar bola baixo perna do zagueiro". Vai Zizao! Vai Colíntias!
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Reportagem por CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S.Paulo
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-dois-tles-coloca-o-chines!--,955433,0.htm
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