Ricardo Abramovay*
Abandonando
as formas arcaicas de fazer negócios,
a indústria automobilística
depara-se com o extraordinário potencial de transformação para colocar
seus produtos a serviço da vida social.
É possível recuperar o papel revolucionário que teve o automóvel
individual no desenho das cidades, na mobilidade das pessoas e na
própria cultura das sociedades contemporâneas? Que os carros
particulares tenham perdido este papel já é hoje lugar-comum:
ineficientes sob o ângulo energético, vetores do estrangulamento
na
circulação, responsáveis por desenhos urbanos desumanizados, é cada vez
menos óbvia a associação entre esses veículos e
a liberdade à qual
estiveram ligados até meados do século XX.
Optar por essa forma de deslocamento, hoje, envolve um risco
crescente de ver-se preso a uma caixa fechada que favorece a emergência
do que cada um de nós tem de pior e que Nilton Bonder chama de
autoviolência. Além disso, os custos sociais (evidentemente, não pagos)
do automóvel individual são exorbitantes: a Technische Universitat, de
Dresden, estima-os em nada menos que 373 bilhões de euros anuais, só na
União Europeia.
Será possível então que o automóvel, síntese de algumas das mais
importantes inovações do século XX, volte a ter um papel fundamental na
emergência de cidades sustentáveis e deixe de ser o emblema
da paralisia
e do desperdício material e energético a que hoje se vincula?
A KPMG e a Roland Berger, duas das mais importantes consultorias
globais, mobilizaram suas equipes para ouvir dirigentes da indústria
automobilística no mundo todo a respeito desse tema. O resultado é
fascinante e mostra uma indústria com um extraordinário potencial de
transformação para colocar
seus produtos a serviço da vida social que,
ao mesmo tempo, está diante de obstáculos cruciais, que a fazem
persistir em formas arcaicas de fazer negócios.
A primeira transformação que já está
em curso foi batizada pela KPMG
de “carro conectado”. As mídias digitais serão decisivas não só no
funcionamento da própria máquina, mas, sobretudo, na sua ligação com as
cidades, pela possibilidade de indicar onde
há congestionamentos e
quais os melhores horários e trajetos para evitá-los. Na segurança dos
veículos e no monitoramento dos próprios motoristas, as tecnologias da
informação vão desempenhar papel cada vez mais importante. A eficiência
dos motores a combustão interna pode aumentar muito em razão do uso
dessas tecnologias. Novos materiais (como fibras de carbono) tornarão os
carros mais leves e mais econômicos.
Mas há uma segunda dimensão revolucionária do carro conectado: ela já
permite que a economia da partilha ocupe lugar central no uso do
automóvel. O estudo da KPMG prevê que em 2026 a partilha será, por
exemplo, a opção preferida de um quarto dos brasileiros que usam
transporte individual, por meio de sistemas de aluguel baseados em
dispositivos móveis, como os que hoje já começam a existir em várias
cidades do mundo.
A terceira transformação, mostra a Roland Berger, é que o próprio
modelo de negócio das grandes montadoras globais está ultrapassado.
Companhias não automobilísticas talvez estejam mais aptas a levar
adiante projetos inovadores neste setor. Empresas automobilísticas são
mais rígidas e hierarquizadas e mudam com maior dificuldade que as de
tecnologia da informação. O atual modelo do negócio automobilístico
continua norteado pela oferta: o traço fundamental deste push model
consiste em investir cada vez mais em novas fábricas, na expectativa de
vender mais e mais carros.
O problema é que, segundo os
dois estudos, o horizonte de ampliação
permanente na produção e venda de automóveis individuais choca-se contra
um mercado em estado de saturação. Segundo
a Roland Berger, o mundo tem
capacidade para produzir 90 milhões de veículos e a demanda é de apenas
69 milhões. Os dados da KPMG são basicamente os mesmos. Ao mesmo tempo,
os dois estudos revelam que, no mundo todo, o carro deixa de ser a
grande aspiração de consumo das jovens gerações. E, no entanto, os
investimentos para
ampliar a oferta, sobretudo nos países em
desenvolvimento, não cessam de expandir.
Não se trata de preconizar uma sociedade sem carros. Trata-se, sim,
de constatar
que os avanços recentes na conectividade
e na eficiência
material e energética dos automóveis só ganharão sentido se estiverem a
serviço de cidades organizadas em função das pessoas. E, para isso, a
indústria precisa aprender a oferecer serviços de mobilidade, e não cada
vez mais carros.
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* Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e
do IRI-USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor deMuito Além da
Economia Verde, lançado na Rio+20 pela Editora Planeta Sustentável.
** Publicado originalmente no site Ricardo Abramovay.
Fonte: http://envolverde.com.br/14/05/2013
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