Juremir Machado da Silva*
“O capitalismo é o nosso horizonte”
François Furet morreu. Desparece um grande intelectual,
humanista e de extrema gentileza. Um ser feito para a amizade e para as
polêmicas. Parisiense, nascido em 1927, autor de obras luminosas que
mudaram a interpretação da Revolução Francesa, atacou com a violência do
texto erudito os dogmas e os mitos do século XX. Considerado
conservador pela esquerda, cultivava paradoxos: especializara-se em
apresentar leituras radicalmente novas de acontecimentos histórios
exaustivamente estudados. Com Pensar a Revolução Francesa (1978) e o Dicionário Crítico da Revolução Francesa (1988),
em colaboração com Mona Ozouf, ganhou projeção internacional, enquanto
desferia golpes fatais contra a trágica fábula da teoria
marxista-leninista. Em O Passado de uma Ilusão – Ensaio sobre a Idéia Comunista no Século XX
(Editora Siciliano), Furet inventariou a trajetória da cegueira que
impediu intelectuais geniais de aceitarem a verdade sobre o regime
soviético.
Nesta entrevista exclusiva concedida em Paris para mim,
publicada na Folha de S. Paulo, passados 40 anos do XX Congresso do
Partido Comunista da União Soviética, quando Kruchtchev denunciou
oficialmente os crimes de Stalin, o ex-diretor da Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais (EHESS – Paris), professor da Universidade
de Chicago e presidente da Fundação Saint-Simon, revisitou, com a sua
fala mansa e o seu sorriso irônico, a grande “construção ideológica” do
século XX. Numa manhã ensolarada, em fevereiro deste ano, durante uma
caminhada pelas ruas de Montparnasse, reafirmou suas posições. Algumas
meses antes, estivera no Brasil para uma série de conferências. Desejava
voltar ainda em 1997.
- O senhor escreveu um ensaio sobre a ilusão como motor da
vida social. O imaginário pode ser determinante para a construção da
realidade?
François Furet – Claro. Nunca canso de repetir que a
idéia de igualdade e de liberdade, essa extraordinária promessa sem
respaldo na realidade, na qual os homens não são livres e nem iguais,
mesmo quando encontram bastante igualdade e liberdade, é um fermento
formidável na cabeça e no coração dos atores sociais. As sociedades
modernas operam com um impulso utópico particular, forte e de
conseqüências ambíguas. Os sonhos e as fantasias ajudam a mover os
homens.
- Em 1956, Nikita Kruchtchev sacudiu o mundo com suas
revelações sobre os crimes de Stalin. O que representou de fato o
relatório do XX Congresso do PCUS?
François Furet – O relatório Kruchtchev marca uma
data capital na história do comunismo em geral e da idéia comunista em
particular. Com efeito, é a primeira vez que a crítica radical do
movimento é feita do interior, pelo chefe. A denúncia dos crimes de
Stalin deixa de ser articulada por reacionários, por marginais ou
excluídos e passa a ser objeto da vontade do Secretário-geral do Partido
Bolchevique. Em função disso é que a repercussão do discurso de 1956
foi enorme, não somente junto aos intelectuais, mas na opinião pública
internacional.
- Por que as advertências de Karl Kautsky a André Gide,
passando por Souvarine, Victor Serge e tantos outros intelectuais, a
propósito da terror soviético não foram escutadas?
François Furet - Essa é a questão que deve ser
respondida pela investigação histórica atual. Ela norteou a construção
do meu livro. Os intelectuais são apenas uma parte do contingente de
cegos em relação à realidade terrível da União Soviética. Os diplomatas,
os políticos e boa parte da opinião pública sofreram do mesmo mal. Aos
intelectuais cabia, entretanto, o trabalho crítico de revelação ou de
exumação da verdade. Hoje, eles são cobrados pelos rastros deixados, um
caminho de omissão ou de indiferença face aos relatos dos que ousaram
denunciar. No início dos anos 20, Souvarine foi um dos primeiros a
testemunhar sobre o regime soviético. Ignorou-se tudo isso.
"A diferença
entre o crente religioso e o comunista,
conforme a anedota, está no
fato de que
o primeiro sabe que crê
enquanto o último crê que sabe."
- O comunismo era uma religião?
Furet - A analogia, embora limitada, é possível.
Existem componentes religiosos na adesão ao credo comunista. A diferença
entre o crente religioso e o comunista, conforme a anedota, está no
fato de que o primeiro sabe que crê enquanto o último crê que sabe. Os
ex-comunistas eram desqualificados como traidores ou ressentidos. A
direita era acusada de dizer somente o que interessava a ela e assim por
diante. O marxismo-leninismo possuía o meio absoluto de sua defesa. Os
dois únicos homens que mereceram crédito, quando denunciaram o regime
soviético, foram dois secretários do Partido Comunista Soviético:
Kruchtchev e Gorbatchev. A verdade teve de sair do próprio território
cultuado. Necessitou-se do desaparecimento do regime para que a ilusão
se dissipasse.
- Como explicar que Jean-Paul Sartre tenha sido capaz de negar o horror stalinista mesmo depois do Congresso de 1956?
François Furet – A paixão dominante em Sartre sempre
foi o ódio à burguesia. Sartre detestava o mundo no qual vivia e, acima
de tudo, odiava os burgueses. Diga-se de passagem que o universo
burguês não é amável e nem admirável e ele tinha boas razões para odiar a
burguesia. O investimento relativo à União Soviética nutria-se de uma
força passional e de elementos exteriores à história soviética. Sartre,
como muita gente neste século, hesitava e recusava-se a abandonar a
esperança em uma sociedade nova, preciosa e oposta àquela que o
amargurava. O mundo burguês na história da humanidade representa a
sociedade que produz o maior número de inimigos dela mesma. As razões
disso são claras: todos os grandes filósofos dos séculos XVIII e XIX
viram os defeitos de uma civilização baseada predominantemente sobre o
dinheiro, o lucro, a acumulação, etc. O comunismo tornou-se uma espécie
de exorcismo do déficit político do universo burguês. Era preciso,
portanto, que a União Soviética fosse melhor.
- No caso de Sartre é a cegueira ou a mentira que o leva a recusar a realidade?
François Furet – A palavra certa é cegueira. Sartre e
os outros eram pessoas de boa fé, todos possuídos por uma paixão
política forte e compreensível.
IstoÉ – Não existiu falsificação da história em nome da imposição de uma ideologia?
Furet – Sartre não falsificou deliberadamente a
história. Ele faz parte do caso geral e foi vítima, como milhões de
homens deste século, da ilusão segundo a qual a União Soviética contruía
uma sociedade livre das maldições do capitalismo. Sartre, a exemplo da
maioria da esquerda, foi antifascita, mas não antitotalitário.
- Já a Revolução Francesa foi utilizada por historiadores
como modelo para analisar e justificar os métodos e o terror da
Revolução Russa?
François Furet – Certamente houve uma apropriação
marxista-leninista da Revolução Francesa. Basta dizer que 1793 passou a
ser considerado o episódio fundamental da Revolução Francesa quando se
sabe que o essencial ocorreu em 1789. Tomou-se a Revolução Francesa como
uma antecipação fracassada de 1917, cujas promessas revolucionárias não
teriam sido cumpridas. Afora o destaque aos aspectos sociais, o
arcabouço conceitual da análise marxista-leninista da Revolução Francesa
é totalmente falso. 1789 não corresponde à revolução burguesa e nem
1793 ao momento revolucionário popular e anti-burguês. Ou bem a
Revolução é burguesa e 1789 e Thermidor são os seus acontecimentos
decisivos, ou ela não é burguesa e será necessário que nos expliquem o
que é. Em realidade, trata-se de um evento político que ultrapassou
largamente as determinações sociais, e o desejo de integrar a Revolução
no quadro da ditadura de uma classe não encontra apoio nos fatos. Eis o
ponto cego de um certo marxismo e do marximo-leninismo: a redução do
nível político a uma causalidade puramente social.
"A paixão dominante em Sartre sempre
foi o ódio à burguesia. Sartre detestava o mundo no qual vivia e, acima
de tudo, odiava os burgueses. Diga-se de passagem que o universo
burguês não é amável e nem admirável e ele
tinha boas razões para odiar a
burguesia."
- Há uma relação histórica coerente entre Lenin e Robespierre?
François Furet – Há elementos nessa comparação que
não são absurdos. Existe nos dois homens esse aspecto moderno contido no
investimento quase fanático num projeto de salvação. Mas, em
contrapartida, diferenças não faltam. A paisagem mental de Robespierre
estava habitada pelo Ser-Supremo enquanto a de Lenin obedecia ao
imperativo da superação da luta de classes.
- Seus livros mais recentes são um acerto de contas com os
intelectuais de esquerda que o acusaram de conservadorismo e continuam a
tomá-lo por reacionário?
François Furet – Não. E não é a primeira vez que
respondo a essa questão. O livro foi bem recebido mesmo pela esquerda e
pelos comunistas franceses… Recebi o prêmio do melhor livro político de
1995 por essa obra. Os comunistas franceses acolheram-me com
consideração, apesar das diferentes interpretações sobre um tema
polêmico. Discutem o meu livro. O acerto de contas realizou-se há muito.
Fui membro do Partido Comunista Francês na juventude e deixei-o depois
de madura reflexão.
- Comunismo e fascismo, para o senhor, contrariando as
verdades de esquerda, encontram-se no repúdio ao liberalismo. Por que a
democracia liberal estimula tantas reações extremadas?
Furet – A democracia liberal suscita tantas reações
fanáticas por ser um regime de relativismo moral e que não tem pontos de
apoio filosóficos. O mundo liberal consiste em fazer viver em conjunto
cidadãos de todas as opiniões e representa a hegemonia do individualismo
privado voltado para o prazer, o bem-estar, as paixões e os desejos de
cada um, sem pilares virtuosos e sem outra legitimidade que a do
dinheiro. Há no mundo burguês, desde a origem, uma enfermidade política
causada pela ilegitimidade. A burguesia não é uma classe política.
Quanto ao problema do fascismo e do comunismo, estou convencido de que a
interpretação mais imbecil do fascismo é justamente essa que o
transforma em produto do universo burguês. Ao contrário, o que há de
espetacular no fenômeno, do ponto de visto histórico, é que ele escapa a
tal redução. Se Hitler era a marionete do grande capital não há como
compreender o genocídio dos judeus, algo que nunca fez parte do programa
liberal.
- O fascismo também pode ser revolucionário?
Furet – Com certeza. Compreendê-lo como a recusa da
mudança é um erro. O fascismo caracteriza-se pela tomada do poder por
gangsters, o que Marx chamaria de lumpen, gente não pertencente
a nenhuma classe organizada da sociedade. Tomada de poder em nome do
povo e da comunidade sem a limitação de nenhum controle racional.
Algumas das paixões que alimentaram o fascismo eram comparáveis às do
comunismo, entre elas o ódio ao individualismo burguês. Para mim, a
grande invenção do fascismo foi a recuperação da idéia revolucionária em
benefício da direita. A direita européia, desde a Revolução Francesa,
era contra-revolucionária, cultivando o sonho absurdo de fazer a
história correr ao contrário e voltar ao passado para encontrar o ponto
que paradoxalmente originou a Revolução. O fascismo recuperou a idéia de
futuro para a direita e em conseqüência o projeto revolucionário.
- O senhor cita no Passado de uma Ilusão uma frase
de Saul Bellow: “Tesouros de inteligência podem ser investidos ao
serviço da ignorância quando a necessidade de ilusão é profunda”. O
desejo encobriu a realidade?
Furet – O século XX está marcado pelo
desencantamento religioso, no sentido weberiano do termo, e a crença na
redenção do homem pela história tornou-se um pouco o substituto dessa
perda. O investimento potente em política como um modo de salvação
terrestre ocupou o lugar deixado vago pela fé tradicional. Muitos homens
deixaram-se enganar pelo intenso desejo de uma sociedade radicalmente
nova. Transformou-se em verdade científica, com o
materialismo-histórico, o que era produto do voluntarismo sem qualquer
garantia de êxito.
- Alguns dos temas característicos dos anos 30 estão de retorno?
Furet – De jeito nenhum. É absurdo. Elaborou-se uma
analogia entre o fascismo dos anos 30 e os acontecimentos envolvendo a
Sérbia e a Bósnia. Mas não é a mesma coisa. Os homens gostam de pensar
que os eventos do futuro serão comparáveis aos do passado. Estamos,
contudo, num mundo totalmente diferente. O fato de que atravessamos uma
fase de depressão e de desmitificação do sonho do crescimento econômico
infinito não é uma razão para lamentar o fim do comunismo. Tampouco o
recrudescimento do terrorismo do IRA, do ETA ou do Hamas devem levar a
crer que o caos esteja prestes a se impor no mundo.
"A religião, os Direitos do Homem e o humanitarismo
são versões moles da utopia.
O que está definitivamente morto na utopia
comunista
é o papel da classe operária, que era vista
enquanto classe
messiânica."
- Num país do Terceiro Mundo, caso do Brasil, a utopia
comunista continua a seduzir muitos intelectuais. Os acontecimentos do
ano passado na França, com as grandes manifestações e as greves
organizados por sindicatos, representaram para alguns dos críticos do
neoliberalismo o retorno da classe operária à vida política.
Furet – Duvido que o movimento social francês do
último outono tenha a ver com esse hipotético renascimento. Tratava-se
de uma greve em torno de vantagens sociais adquiridas nos setores
industriais do Estado e não de uma ação com perspectiva revolucionária.
- O crescimento do desemprego não pode favorecer o ideal revolucionário comunista?
Furet – As nossas sociedades democráticas são
inseparáveis de um tendência utópica. Não creio, portanto, que isso
venha a desaparecer. A religião, os Direitos do Homem e o humanitarismo
são versões moles da utopia. O que está definitivamente morto na utopia
comunista é o papel da classe operária, que era vista enquanto classe
messiânica. Mesmo os comunistas não acreditam mais nisso pois a classe
operária está desaparecerendo sob os nossos olhos. O marxismo-leninismo e
sua relação com a história também pereceram. A idéia de um
Partido-Estado não faz mais sentido. Será que viveremos a partir de
agora sem a visão de uma sociedade pós-capitalista? Não. Talvez venhamos
a inventar uma alternativa. Esperemos que seja menos trágico.
- O que senhor pensa quando políticos de esquerda denunciam o
fracasso da social-democracia e afirmam ainda que o capitalismo está
condenado?
Furet – Quem tem coragem hoje de dizer que o
capitalismo está condenado? Raríssimas pessoas. Vivemos numa espécie de
capitalismo universal. Após a queda do comunismo resta um só campo de
influência mundial: o capitalismo. É a universalização do mercado. Não
conheço nenhum homem sensato – filósofo, político ou mesmo partido – que
proponha outra economia que não seja a capitalista. Nada pode levar a
crer na atualidade que é útil eliminar a propriedade privada e a livre
iniciativa para gerar bens com alta produtividade.
- Seria possível deturpar Sartre e dizer que o capitalismo é um horizonte incontornável do século XXI?
Furet – No momento o capitalismo é o horizonte de
nossa época: um horizonte no qual teremos dificuldades para viver;
precisamos agir conhecendo as nossas contradições e sabendo que até
agora não encontramos a solução. Os salvadores do século XX levaram-nos a
fracassos apocalípticos. Não estou feliz com a nossa realidade, embora
não seja o inferno, e prefiro-a às utopias sangrentas.
- As nações de direita e esquerda estão condenadas?
Furet – Não, ao menos enquanto as nossas se
caracterizarão pelas lutas de partidos e de homens pelo poder. A opinião
pública será sempre chamada a pronunciar-se a respeito de programas e
de idéias diferentes, de esquerda ou de direita.
- A democracia liberal é definitivamente o último estágio da história?
Furet – Não. A história nunca termina. Os hegelianos
podem falar em fim da história. Em Hegel havia o individualismo
moderno, o constitucionalismo, o capitalismo industrial e o conceito de
fim da história, existente também em Tocqueville. Não sou filósofo e nem
teólogo para pensar em fim da história. Digo apenas que hoje ninguém
imagina um regime econômico capaz de substituir o capitalismo. Já a
crítica à social-democracia esconde com freqüência uma nostalgia do
comunismo.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Tradutor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
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