Paulo Ghiraldelli Jr.*
Por que Michael Sandel** faz sucesso? A
resposta fácil é dizer que ele fala bem, torna questões complexas fáceis
de entender por um público mais amplo sem com isso ceder ao didatismo
ou ao escorregão conceitual. Essa verdade às vezes nubla outra: o
professor de Harvard tem sido cada vez mais ouvido porque ele tem uma
novidade para dizer, e esta novidade está soando aos ouvidos dos jovens
como alguma coisa que faz sentido.
Qual a novidade de Sandel? Bem, em
termos de novidade mesmo, de algo inédito, Sandel não tem muito a dizer.
Mas o que ele diz é tão caduco, tão fora de propósito até bem pouco
tempo atrás, que soa como novidade. Ele sabe bem disso. Sua novidade
pode ser enunciada, resumidamente, na seguinte pergunta: que tal
voltarmos a considerar questões econômicas ou mesmo toda a disciplina
Economia como algo no âmbito da filosofia moral, como era nos tempos de
Adam Smith?
A garotada que o escuta no mundo todo –
presencialmente ou pelos seus cursos disponibilizados na Internet – pode
não ter lido Adam Smith. Alguns, inclusive, podem até nem saber quem é
Adam Smith. Há os que nunca imaginaram que Economia e filosofia moral
estiveram juntas. Todavia, quando ele fala aos jovens, Sandel não coloca
seu projeto desse modo. Para os jovens, ele não faz metateoria, ele
simplesmente disserta sobre um tema da filosofia política, e assim
fazendo traz relações que são geradas no mundo econômico, no âmbito do
mercado moderno, para o campo da avaliação ético moral. Diferentemente
dos jovens existentes até mais ou menos os anos sessenta e setenta, os
estudantes de hoje estão adorando isso.
Até os anos setenta e mesmo oitenta,
qualquer crítica moral ao “capitalismo” ou, melhor dizendo, “ao
mercado”, embora bastante popular, era tomada pelos jovens mais
aplicados nos estudos, como uma forma tosca, romantizada de ver
as coisas. Todas as pessoas faziam juízo moral sobre o mercado, mas
ninguém dizia isso em rodas mais cultas. Nas rodas dos letrados, era
importante não ser piegas e, portanto, o correto era não deixar de
professar uma crítica marxista de cunho “científico”. Criticava-se o
positivismo do século XIX, mas era nele que estava o ideal dos letrados.
O correto era, portanto, analisar a modernidade segundo seus mecanismos
evolutivos internos, como quem analisa uma doença se propagando em um
organismo. Dizia-se na mesa de bar “o capitalista é um ladrão filho da
puta”. Mas, na hora de escrever, essas mesmas pessoas não podiam dizer
isso. Avaliações morais não podiam ser feitas. Era necessário mostrar
que se o capitalista era alguém deplorável, assim era por conta de ser
capitalista, de ser uma peça no mundo gerenciado pelo mercado e “pelo
Capital”.
Esse tipo de pensamento, dominado pela
sociologia, gerou antes hipocrisia que teoria eficaz. Para sair disso os
teóricos – em especial os americanos – resolveram adotar uma divisão no
campo da filosofia política e no campo do direito. Começaram a falar em
teorias teleológicas e teorias deontológicas. Essa divisão ainda
permanece. As primeiras são as que colocam o bem acima do direito, as
segundas fazem o inverso. As primeiras são teorias geradas por uma
avaliação moral que fixa o bem como um fim. São as teorias
tradicionalmente filosóficas, uma vez que quase sempre metafísicas. As
segundas são descritivas. A ideia básica destas últimas não é alcançar a
felicidade, mas apenas administrar a justiça.
No mundo americano esse tipo de
formulação descritiva ganhou uma expressão máxima em John Rawls. Ele
propôs uma teoria contratualista de modo que a sociedade pudesse viver
em um regime de justiça social. Assim, valorações morais ficariam de
fora da teoria e também de fora da própria vida política prática, no
campo da discussão plural, racional e pública, no âmbito da democracia
liberal de tipo americano.
Nós aqui hoje temos um pé nesse tipo de
formulação. Não raro, pedimos que os debates políticos não se embrenhem
em questões que seriam do âmbito privado, como a união gay ou aborto
etc. Nesse caso, pede-se que a política não seja guiada por valores
morais que, enfim, são próprias da vida pessoal. Isso implica, portanto,
em deixarmos de lado posições religiosas quando vamos para a praça
pública discutir política, ou seja, a administração da cidade e a
justiça na cidade. Mantendo o Estado neutro em termos de desejos que
seriam os da vida privada de cada um, acreditamos poder exercer a
democracia liberal em seu máximo de presteza e eficiência.
Ora, Sandel é aquele que aparece para
dizer que talvez nunca tenhamos, de fato, feito tal coisa. E mais: nunca
faremos tal coisa, e temos de admitir, então, que em questões de
política, introduzimos nossa escala de valores que é montada a partir do
que entendemos ser o bem. Fazemos isso por meio de nossa cultura
particular, de nossa vida religiosa, de nossos costumes comunitários.
Ora, se fazemos isso desde sempre, então, poderíamos assumir isso.
Assumir, sim, mas não para tirar do estado sua busca de neutralidade,
tornando-o uma instância a mais entre grupos sociais divergentes, mas de
modo a levarmos em conta que teremos de, no campo político, sair da
ideia de respeito ao outro para abraçar a ideia de aprendizado sobre o
outro.
A ideia de respeito é própria da teoria
liberal deontológica. Nesse tipo de formulação, os valores morais de
cada um são os valores morais de cada um e nada mais. Os seus valores
são os seus e os meus são os meus. Não nos confrontamos na arena pública
com eles. Na arena pública colocamos plataformas políticas que dizem
respeito à administração da cidade. Ora, a ideia de aprendizado é também
liberal, mas ela não implica em respeito como separação e indiferença
ou aparente indiferença. Ela implica em colocar tudo em debate,
inclusive nossas posições morais, uma vez que elas dirigem nossas ideias
sobre a administração da cidade. O que pedimos é que o outro tente
pensar a partir dos nossos valores e, ao mesmo tempo, nós faremos um
esforço no mesmo sentido em relação aos valores do outro. Essa situação
parece ser mais difícil, mas não temos como fugir dela. Talvez ela seja a
única possível na democracia. Fora disso, não teríamos democracia,
teríamos apenas períodos políticos no qual vingaria um tipo de
plebiscito.
O que Michael Sandel diz é o seguinte:
vamos ter de admitir religião, moral, gostos pessoais etc. no campo da
discussão pública da política, e vamos ter de aprender uns com os outros
sobre vidas diferentes de grupos diferentes, e fazer leis que levem em
conta esse aprendizado comum. Ou seja, teremos de reconhecer uma
prática que há muito já estamos fazendo. Por exemplo: a escravidão
acabou nos Estados Unidos não sem a religião entrar no debate político; a
religião entrou e, por meio de uma noção do que é o bem, conquistou
muitos para a ideia de que a escravidão era uma instituição cruel e,
portanto, pecaminosa. Não foi com a ausência da religião no debate
público que conseguimos eliminar algo tão amado pelos conservadores,
justamente os que pareciam ser mais religiosos. Exemplos desse tipo não
faltam se pensarmos os direitos de minorias no contexto de nossa vida
política hoje.
Como a democracia atual não é mais só
uma regime que visa administra conflitos entre ricos e pobres, mas
administrar também os direitos de minorias, então é natural que os
jovens escutem Michael Sandel. Ele pode não estar falando algo novo, mas
ele está ponde de maneira mais clara a necessidade que temos de
entender essa relação entre o liberalismo que trabalha com um sujeito
abstrato e o liberalismo (ou comunitarismo) que trabalha com um sujeito
engajado em suas práticas vitais, familiares, comunitárias.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
** Michael J. Sandel é professor da Universidade de Harvard, onde leciona filosofia política desde 1980. O seu desempenho
em " Justiça", o curso mais popular de Sandel em Harvard, frequentado
anualmente por milhares de estudantes no histórico Anfiteatro da foto
acima, levou o jornal Washington Post a nomear Michael Sandel
como “provavelmente o mais proeminente professor universitário dos
Estados Unidos”. Transformado em uma série de vídeos acessíveis pela
internet, o curso é uma jornada sobre a reflexão moral aplicada a temas
como justiça, igualdade, democracia e cidadania. A série com doze
episódios nos desafia com complexos dilemas morais e nos convida a
ponderar sobre qual é a coisa certa a fazer, tanto na política quanto em
nossa vida cotidiana.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/por-que-sandel-e-um-pop-star-da-filosofia/
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