Paulo Brabo*
Por mais que eu me esforce, não consigo pensar num fator que
tenha contribuído mais para a diluição do impacto da Bíblia, tendo
aberto maior brecha para uma leitura tendenciosa da sua mensagem,
do que o fato de que um dia alguém achou por bem dividi-la em
versículos.
Um livro como a carta de São Paulo aos Efésios, que até aquele
momento vinha sendo lido como um todo contínuo e orgânico, acordou
no dia seguinte esquartejado de modo inteiramente arbitrário,
tendo adquirido a graça e a agradabilidade de leitura de uma
planilha do Excel. E nunca mais recuperaram-se da operação: foi
retalhado dessa forma que cada livro da Bíblia chegou até nós.
A divisão em versículos teve a infelicidade de nascer mais ou
menos ao mesmo tempo em que vinha à luz a tecnologia dos tipos
móveis de Gutemberg – e tecnologia significou desde sempre uma
coisa: não há erro fortuito que não possa ser reproduzido
indefinidamente.
O estrago para a integridade da Bíblia foi enorme e, em grande
parte, irreversível. Mesmo diante de um texto corrido temos a
tendência eu e você à seleção e à parcialidade. A nova e forjada
fragmentação convidava, praticamente exigia, que cada isolada
porção do texto bíblico fosse memorizada e entendida fora do seu
contexto. No caso da carta aos Efésios, por exemplo, encontraram
plenipotenciária consagração entre os protestantes os versos
oito e nove do segundo capítulo: porque pela graça sois salvos,
por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras,
para que ninguém se glorie – versos a partir nos quais os
protestantes fundamentaram sua tese de que a fé é essencial e as
boas obras secundárias. Porém a arbitrária divisão em
versículos deixou o raciocínio de Paulo para sempre incompleto,
seu argumento para sempre suspenso e separado da frase seguinte, que qualifica o que foi dito e introduz uma enorme reviravolta: porque
somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais
Deus preparou de antemão para que andássemos nelas.
A divisão em versículos, além de favorecer a leitura
seletiva, incentivou a fetichização pura e simples dos textos
atingidos por ela, com a consequente anulação do seu
significado. Na verdade, os textos sagrados prestam-se
particularmente, por sua própria natureza, à fetichização; o
retalhamento da Bíblia em versículos apenas acentuou essa
tendência e facilitou o processo.
Fetichizar um texto é inflá-lo ao extremo, é recortá-lo e
memorizá-lo e emoldurá-lo e reproduzi-lo em letras cada vez
maiores até drenar por completo e tornar inacessível o seu
significado original: até que as palavras, douradas mas cegas, remetam a tudo e a nada.
Um emblema escandaloso da fetichização da Bíblia promovida
pela divisão em versículos é a caixa de promessas (disponível
em diversos formatos na livraria evangélica mais próxima de
você): uma caixinha cheia de filetes coloridos de papel, cada um
contendo um versículo isolado da Bíblia cuidadosamente
selecionado para que você, lendo, sinta-se amado, com os flancos
cobertos e a prosperidade assegurada. Quando está pra baixo você
abre a caixa e puxa uma promessa ao acaso, como quem lê um biscoito da
sorte: a satisfação é garantida, ou você pode pedir o seu espírito
crítico de volta1.
Cinco séculos se passaram sem grandes novidades, porém é
preciso lembrar que as ideias medíocres dos homens dormem, mas não
descansam. Ficam em estado letárgico, aguardando que novas
tecnologias permitam que arruínem-se as ideias grandes e boas.
E, claro, esta é a geração em que esse momento chegou: num espaço de
30 anos, os últimos, o computador eletrônico gerou o computador
pessoal, o computador pessoal tomou para si cônjuges e formou a
rede local, a rede local teve relações extraconjugais e gerou a
internet, e a internet pariu as redes sociais.
Estamos instruídos e capacitados, colonizadores que somos
das paisagens virtuais, e o que era impossível é agora
inevitável. O twitter nos ensinou a dividir a realidade em
porções isoladas de 140 caracteres, e quando a realidade tomba a
literatura não tarda a cair. Somos milhões de escribas e
amanuenses, inteiramente prontos para versicularizar
– converter resolutamente em versículos – toda a literatura
mundial, e tabulá-la em trabalho voluntário nos murais
sempre-deslizantes das redes sociais. Não há admirador
bem-intencionado que não viva saqueando a obra de poetas e
romancistas, filósofos e ensaístas, santos e compositores,
críticos e humoristas de todas as épocas, esquartejando
resignadamente suas ideias de modo a fazê-las caber nos
escaninhos do twitter e dos gifs animados. Somos um mundo inteiro
de taxidermistas, e não descansaremos até que os melhores e os
piores textos do mundo tenham sido reduzidos a frases de efeito e
gotas de sabedoria.
Era inevitável: as redes sociais, que vivem da fetichização e
da consequente anulação de todas as coisas, não teriam como deixar
de sequestrar o poder da literatura. O Facebook, em particular,
assumiu o papel de banalizador supremo, drenando a vitalidade de
tudo na experiência humana que já teve algum interesse e algum
valor. A literatura, aquela velha dama, não escapou dessa
indignidade. No mural do seu Facebook alternam-se versos
piscantes da Bíblia, frases de Luís Fernando Veríssimo,
pensamentos falsamente atribuídos a Shakespeare,
provocações de Gandhi, citações de Mia Couto, poemas animados de
Casimiro de Abreu, letras de Chico Buarque, pérolas de sabedoria de
Abraham Lincoln e papa Francesco e Brennan Manning e Dalai Lama e Martin
Luther King e Paulo Coelho e Eugene Peterson e Richard Dawkins e
Malba Tahan e Tolstoi e coisas que Shakespeare realmente disse e
Diego Mainardi. Tudo devidamente versicularizado, empalhado e
fetichizado: pedaços de carne, ao mesmo tempo expostos para a
admiração pública e separados do corpo.
Essa, como dizia minha avó, é a hora da queima: a hora da
sistemática caixa-de-promessização de tudo neste mundo que já foi
belo, humano e sagrado. Fetichizar a Bíblia foi tarefa para
amadores; sente-se aí e assista enquanto retalhamos cada página
jamais escrita até a desfiguração completa.
Outro dia minha irmã, que está no Facebook, tropeçou ali em
imagens coloridas que emolduravam frases inspirativas –
praticamente Preciosas Promessas – do Paulo Brabo (mais
um motivo para não estar no Facebook, não?). Sendo minha irmã, ela
achou meio sinistra aquela tietagem e me escreveu perguntando se
não me incomoda saber que coisas que escrevo andam circulando pela
net na forma de gotas de sabedoria.
Respondi que sim, claro que me incomoda, mas que ela não devia
estranhar por encontrar no Facebook algo que é tão típico do
Facebook: a fetichização de uma coisa que em outro lugar talvez
fizesse sentido e tivesse o seu valor. E concluí que o que de fato me
irrita é pensar que nas redes sociais encontram destino igualmente
indigno autores melhores.
Naturalmente, encontro como todo mundo prazer diante de uma ideia
magistralmente construída e articulada – digamos, esta de
Borges: apaixonar-se é criar uma religião cujo Deus é falível. Ou esta, minha: mil gênios podem não ajudar, mas um idiota faz toda a diferença.
Porém há um mar entre apreciar uma frase na cumplicidade de uma
página e reduzi-la a pérola de sabedoria. É, praticamente, a
diferença entre fazer amor e ficar excitado diante de uma imagem de
sexo que você encontra na internet. Há entre as duas coisas uma
relação mais do que casual, e você pode acreditar que nesta vida há
espaço para as duas coisas, mas são ventos que falam de destinos
diferentes.
1. A caixa de promessas é também conhecida pelo nome aliterado de Preciosas Promessas; os produtos complementares da mesma linha, Memoráveis Maldições e Estressantes Exigências, nunca chegaram a conquistar uma grande fatia de mercado.
--------------------------------------
* Escritor.
Fonte: http://forjauniversal.com/2013/a-pornografia-das-frases-de-efeito/#identifier_0_311
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário