segunda-feira, 10 de junho de 2013

A pornografia das frases de efeito

Paulo Brabo*

Por mais que eu me esforce, não con­sigo pen­sar num fator que tenha con­tri­buído mais para a dilui­ção do impacto da Bíblia, tendo aberto maior bre­cha para uma lei­tura ten­den­ci­osa da sua men­sa­gem, do que o fato de que um dia alguém achou por bem dividi-​​la em versículos. 

Um livro como a carta de São Paulo aos Efé­sios, que até aquele momento vinha sendo lido como um todo con­tí­nuo e orgâ­nico, acor­dou no dia seguinte esquar­te­jado de modo intei­ra­mente arbi­trá­rio, tendo adqui­rido a graça e a agra­da­bi­li­dade de lei­tura de uma pla­ni­lha do Excel. E nunca mais recuperaram-​​se da ope­ra­ção: foi reta­lhado dessa forma que cada livro da Bíblia che­gou até nós.

A divi­são em ver­sí­cu­los teve a infe­li­ci­dade de nas­cer mais ou menos ao mesmo tempo em que vinha à luz a tec­no­lo­gia dos tipos móveis de Gutem­berg – e tec­no­lo­gia sig­ni­fi­cou desde sem­pre uma coisa: não há erro for­tuito que não possa ser repro­du­zido indefinidamente.

O estrago para a inte­gri­dade da Bíblia foi enorme e, em grande parte, irre­ver­sí­vel. Mesmo diante de um texto cor­rido temos a ten­dên­cia eu e você à sele­ção e à par­ci­a­li­dade. A nova e for­jada frag­men­ta­ção con­vi­dava, pra­ti­ca­mente exi­gia, que cada iso­lada por­ção do texto bíblico fosse memo­ri­zada e enten­dida fora do seu con­texto. No caso da carta aos Efé­sios, por exem­plo, encon­tra­ram ple­ni­po­ten­ciá­ria con­sa­gra­ção entre os pro­tes­tan­tes os ver­sos oito e nove do segundo capí­tulo: por­que pela graça sois sal­vos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que nin­guém se glo­rie – ver­sos a par­tir nos quais os pro­tes­tan­tes fun­da­men­ta­ram sua tese de que a fé é essen­cial e as boas obras secun­dá­rias. Porém a arbi­trá­ria divi­são em ver­sí­cu­los dei­xou o raci­o­cí­nio de Paulo para sem­pre incom­pleto, seu argu­mento para sem­pre sus­penso e sepa­rado da frase seguinte, que qua­li­fica o que foi dito e intro­duz uma enorme revi­ra­volta: por­que somos fei­tura sua, cri­a­dos em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus pre­pa­rou de ante­mão para que andás­se­mos nelas.

A divi­são em ver­sí­cu­los, além de favo­re­cer a lei­tura sele­tiva, incen­ti­vou a feti­chi­za­ção pura e sim­ples dos tex­tos atin­gi­dos por ela, com a con­se­quente anu­la­ção do seu sig­ni­fi­cado. Na ver­dade, os tex­tos sagra­dos prestam-​​se par­ti­cu­lar­mente, por sua pró­pria natu­reza, à feti­chi­za­ção; o reta­lha­mento da Bíblia em ver­sí­cu­los ape­nas acen­tuou essa ten­dên­cia e faci­li­tou o processo.

Feti­chi­zar um texto é inflá-​​lo ao extremo, é recortá-​​lo e memorizá-​​lo e emoldurá-​​lo e reproduzi-​​lo em letras cada vez mai­o­res até dre­nar por com­pleto e tor­nar ina­ces­sí­vel o seu sig­ni­fi­cado ori­gi­nal: até que as pala­vras, dou­ra­das mas cegas, reme­tam a tudo e a nada. 
 
Um emblema escan­da­loso da feti­chi­za­ção da Bíblia pro­mo­vida pela divi­são em ver­sí­cu­los é a caixa de pro­mes­sas (dis­po­ní­vel em diver­sos for­ma­tos na livra­ria evan­gé­lica mais pró­xima de você): uma cai­xi­nha cheia de file­tes colo­ri­dos de papel, cada um con­tendo um ver­sí­culo iso­lado da Bíblia cui­da­do­sa­mente sele­ci­o­nado para que você, lendo, sinta-​​se amado, com os flan­cos cober­tos e a pros­pe­ri­dade asse­gu­rada. Quando está pra baixo você abre a caixa e puxa uma pro­messa ao acaso, como quem lê um bis­coito da sorte: a satis­fa­ção é garan­tida, ou você pode pedir o seu espí­rito crí­tico de volta1.

Cinco sécu­los se pas­sa­ram sem gran­des novi­da­des, porém é pre­ciso lem­brar que as ideias medío­cres dos homens dor­mem, mas não des­can­sam. Ficam em estado letár­gico, aguar­dando que novas tec­no­lo­gias per­mi­tam que arruínem-​​se as ideias gran­des e boas. E, claro, esta é a gera­ção em que esse momento che­gou: num espaço de 30 anos, os últi­mos, o com­pu­ta­dor ele­trô­nico gerou o com­pu­ta­dor pes­soal, o com­pu­ta­dor pes­soal tomou para si côn­ju­ges e for­mou a rede local, a rede local teve rela­ções extra­con­ju­gais e gerou a inter­net, e a inter­net pariu as redes sociais.

Esta­mos ins­truí­dos e capa­ci­ta­dos, colo­ni­za­do­res que somos das pai­sa­gens vir­tu­ais, e o que era impos­sí­vel é agora ine­vi­tá­vel. O twit­ter nos ensi­nou a divi­dir a rea­li­dade em por­ções iso­la­das de 140 carac­te­res, e quando a rea­li­dade tomba a lite­ra­tura não tarda a cair. Somos milhões de escri­bas e ama­nu­en­ses, intei­ra­mente pron­tos para ver­si­cu­la­ri­zar – con­ver­ter reso­lu­ta­mente em ver­sí­cu­los – toda a lite­ra­tura mun­dial, e tabulá-​​la em tra­ba­lho volun­tá­rio nos murais sempre-​​deslizantes das redes soci­ais. Não há admi­ra­dor bem-​​intencionado que não viva saque­ando a obra de poe­tas e roman­cis­tas, filó­so­fos e ensaís­tas, san­tos e com­po­si­to­res, crí­ti­cos e humo­ris­tas de todas as épo­cas, esquar­te­jando resig­na­da­mente suas ideias de modo a fazê-​​las caber nos esca­ni­nhos do twit­ter e dos gifs ani­ma­dos. Somos um mundo inteiro de taxi­der­mis­tas, e não des­can­sa­re­mos até que os melho­res e os pio­res tex­tos do mundo tenham sido redu­zi­dos a fra­ses de efeito e gotas de sabedoria.

Era ine­vi­tá­vel: as redes soci­ais, que vivem da feti­chi­za­ção e da con­se­quente anu­la­ção de todas as coi­sas, não teriam como dei­xar de seques­trar o poder da lite­ra­tura. O Face­book, em par­ti­cu­lar, assu­miu o papel de bana­li­za­dor supremo, dre­nando a vita­li­dade de tudo na expe­ri­ên­cia humana que já teve algum inte­resse e algum valor. A lite­ra­tura, aquela velha dama, não esca­pou dessa indig­ni­dade. No mural do seu Face­book alternam-​​se ver­sos pis­can­tes da Bíblia, fra­ses de Luís Fer­nando Verís­simo, pen­sa­men­tos fal­sa­mente atri­buí­dos a Sha­kes­pe­are, pro­vo­ca­ções de Gandhi, cita­ções de Mia Couto, poe­mas ani­ma­dos de Casi­miro de Abreu, letras de Chico Buar­que, péro­las de sabe­do­ria de Abraham Lin­coln e papa Fran­cesco e Bren­nan Man­ning e Dalai Lama e Mar­tin Luther King e Paulo Coe­lho e Eugene Peter­son e Richard Daw­kins e Malba Tahan e Tols­toi e coi­sas que Sha­kes­pe­are real­mente disse e Diego Mai­nardi. Tudo devi­da­mente ver­si­cu­la­ri­zado, empa­lhado e feti­chi­zado: peda­ços de carne, ao mesmo tempo expos­tos para a admi­ra­ção pública e sepa­ra­dos do corpo. 
 
Essa, como dizia minha avó, é a hora da queima: a hora da sis­te­má­tica caixa-​​de-​​promessização de tudo neste mundo que já foi belo, humano e sagrado. Feti­chi­zar a Bíblia foi tarefa para ama­do­res; sente-​​se aí e assista enquanto reta­lha­mos cada página jamais escrita até a des­fi­gu­ra­ção completa.
Outro dia minha irmã, que está no Face­book, tro­pe­çou ali em ima­gens colo­ri­das que emol­du­ra­vam fra­ses ins­pi­ra­ti­vas – pra­ti­ca­mente Pre­ci­o­sas Pro­mes­sas – do Paulo Brabo (mais um motivo para não estar no Face­book, não?). Sendo minha irmã, ela achou meio sinis­tra aquela tie­ta­gem e me escre­veu per­gun­tando se não me inco­moda saber que coi­sas que escrevo andam cir­cu­lando pela net na forma de gotas de sabedoria.

Res­pondi que sim, claro que me inco­moda, mas que ela não devia estra­nhar por encon­trar no Face­book algo que é tão típico do Face­book: a feti­chi­za­ção de uma coisa que em outro lugar tal­vez fizesse sen­tido e tivesse o seu valor. E con­cluí que o que de fato me irrita é pen­sar que nas redes soci­ais encon­tram des­tino igual­mente indigno auto­res melhores.

Natu­ral­mente, encon­tro como todo mundo pra­zer diante de uma ideia magis­tral­mente cons­truída e arti­cu­lada – diga­mos, esta de Bor­ges: apaixonar-​​se é criar uma reli­gião cujo Deus é falí­vel. Ou esta, minha: mil gênios podem não aju­dar, mas um idi­ota faz toda a dife­rença.

Porém há um mar entre apre­ciar uma frase na cum­pli­ci­dade de uma página e reduzi-​​la a pérola de sabe­do­ria. É, pra­ti­ca­mente, a dife­rença entre fazer amor e ficar exci­tado diante de uma ima­gem de sexo que você encon­tra na inter­net. Há entre as duas coi­sas uma rela­ção mais do que casual, e você pode acre­di­tar que nesta vida há espaço para as duas coi­sas, mas são ven­tos que falam de des­ti­nos diferentes. 

1.  A caixa de promessas é também conhecida pelo nome aliterado de Preciosas Promessas; os produtos complementares da mesma linha, Memoráveis Maldições e Estressantes Exigências, nunca chegaram a conquistar uma grande fatia de mercado.
--------------------------------------
* Escritor.
Fonte: http://forjauniversal.com/2013/a-pornografia-das-frases-de-efeito/#identifier_0_311
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário