José Frazão Correia*
Na cultura ocidental, a Sarça Ardente parece ter-se
consumido, mas sem se ter consumado. É como se, culturalmente, o
sagrado tivesse deixado de arder. E de queimar. Não atrai. Não incide
sobre a carne. Não fere. Não implica. Não inspira. Diante dele,
deixámos de tirar o calçado. Parece ter perdido o fascínio que é
próprio dos cumes mais altos e o mistério que envolve os abismos mais
profundos. Nem fascinante, nem tremendo, talvez persista, ainda, mas
sem glória, na memória cultual e cultural de um passado ido. Ou, apenas,
no folclore revisitado por uma qualquer curiosidade turística ou
interesse social de momento. Se todos os lugares – do universo e da
consciência, da sociedade e da cultura, da ética e da estética – foram,
até há pouco, lugar da presença do sagrado, todos eles, hoje, se
tornam testemunhos da sua ausência. Deus perdeu o lugar nos lugares do
nosso quotidiano.
O absolutamente Outro torna-se, por isso, absolutamente irrelevante. Para um europeu médio, Deus já
não se compreende por si mesmo. É pouco mais do que um vocábulo que
nada diz, uma caixa de música que não ressoa – só um rumor, uma casca
vazia, uma ruína. Sem sentido e sem lugar, demasiado vago ou demasiado
ridículo, perdemos o vínculo vital com Ele. Permanece aquela ligação
utilitária que ainda faz encontrar alguma vantagem, individualmente
reconfortante ou socialmente agregadora, num mundo que, por momentos,
parece correr apressadamente para lado nenhum, sem memória nem destino.
No nosso ambiente cultural, Deus absoluto
permanece só. Intocável, não toca a vida. Incompreendido, torna-se
esquecido. Inefável, dissipa-se. Nós, homens e mulheres tão sensíveis,
deixámos de sentir Deus. Tão disponíveis para toda e qualquer
diferença, cessámos de lhe reconhecer a particularidade da voz. Podemos
viver tranquilamente como se Deus não existisse. E já nem sofremos nem
nos inquietamos com isso.
É este o vazio que também enquadra a nossa
identidade e as nossas práticas crentes. Coletivamente, parece
faltar-nos a sabedoria da escuta e do discernimento para reconhecer
Deus, a coragem para lhe responder prontamente como se responde a um
imperativo, a arte dos gestos e das palavras para o celebrar e o dizer,
a ousadia de estilos de vida justos para o realizar, um pensamento
alto para o questionar.
Este parece ser o nosso ponto de partida comum, o
vazio que prova o nosso amor. Demasiado pouco? Sim, talvez. Mas é o
que é. Não o lamentemos. Recordemos que o mundo e a cultura que, até há
bem pouco tempo, se compreenderam, naturalmente e necessariamente,
cheios de Deus, também produziram os seus ídolos e seus mandantes, as
suas abstrações e alienações, as suas iniquidades e impiedades. O «uno»
produziu e marginalizou tantas periferias. O «alto» ignorou tanto
quotidiano e tantas biografias. O «íntimo» fez-se surdo a tantos
apelos. O «perfeito» fez violência ao ritmo lento de tantos passos. O
«verdadeiro» declarou anátema tantas diferenças. O «puro» diabolizou
tanto corpo. Tomemos, portanto, este novo lugar e seus vazios como
feliz possibilidade para o Cristianis mo, uma promessa purificadora e
tão fecunda para a nossa fé como arte de viver e de habitar o mundo.
Poderemos reaprender a riqueza do despojamento, o dom criador da
expectativa, a graça de voltar a amar a Deus em todas as coisas e de as
amar, a todas, em Deus.
Aquele nada, ao qual os místicos do
passado procuraram elevar-se como vértice do próprio encontro com Deus,
é-nos dado, agora, como início comum. A pirâmide espiritual
inverteu-se. No turbilhão da vida quotidiana, na incerteza do concreto e
na insegurança do imediato, partimos da ausência de Deus, despojados
que fomos da sua onmipresença e da sua omnipotência. Mas, pela carência,
o nosso amor purificado poderá fazer germinar e maturar novos frutos. É
virtude das fraturas instaurar coisas novas, de outros modos. Nas
palavras do poeta Daniel Faria, «não tardará e direi [...] o vazio
devolveu-me o sempre presente ». Sim, o vazio poderá devolver-nos O-sempre-presente.
Esta será hoje a nossa primeira ascese, o limiar
abaixo do qual a nossa fé não pode descer – viver plenamente o próprio
presente, habitar criativamente o próprio lugar, realizando, assim,
todas as nossas capacidades humanas. Sem fugas. Sem desculpas. Hoje,
mais do que nunca, percebemos que a criação e a existência nos são
realmente confiadas. Pela disponibilidade dos nossos sentidos, pela
criatividade da nossa inteligência, pela obra das nossas mãos,
poderemos fazer de maneira que o nosso tempo dê e se dê à luz. Como
gesto de amor. Como ato de criação. Não sozinhos, mas com outros que,
sendo, por vezes, tão diferentes, tão estranhos, vivem, igualmente,
entregues à mesma graça e à igual tarefa que a vida é.
Na complexidade e na ambiguidade desta nossa
realidade quotidiana, poderemos voltar a pressentir sinais, não já de
uma presença estável e segura, que tudo cobre e assegura – e que, por
fim, desresponsabiliza e se torna irrelevante –, mas da passagem
infinita desse fogo que arde sem se consumir. Não é ídolo, coisa feita à
semelhança da imagem que de nós projetamos no pequeno espelho das
nossas vaidades e depressões. É ícone, desenho elementar, mas aberto,
por onde se insinua a passagem de um Outro, desse Outro que ainda nos
pode ferir e implicar, sem, porém, nada tirar à autonomia da nossa
liberdade. A sua passagem não invade o nosso espaço, mas cede-nos o
lugar. A sua voz não nos abafa as palavras: dá-nos a palavra e a arte de
a dizer. A sua promessa não nos cancela o presente, porque é no
presente que nos cura a imaginação e nos alarga o horizonte. A sua
presença, como de quem passa, diz-nos A-Deus.
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*José Frazão Correia é um dos intervenientes
na próxima Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, que a 21 de junho
debate em Fátima o tema "Culturas Juvenis Emergentes" (cf. "Artigos
relacionados").
José Frazão Correia, SJ
In A fé vive de afetos, ed. Paulinas
06.06.13
In A fé vive de afetos, ed. Paulinas
06.06.13
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