terça-feira, 4 de junho de 2013

Razões para a revolta

GILLES LAPOUGE*
 
Por que em Istambul, grande cidade turca, um protesto contra um projeto urbanístico transformou-se num maremoto que avança por todo país e sacode o poderoso governo de Recep Tayyip Erdogan? A efervescência das manifestações na Turquia parece similar às revoltas da Primavera Árabe que, há dois anos, derrubaram os regimes ditatoriais no Egito, Líbia e Tunísia. Mas não há nenhuma relação, salvo a coragem dos manifestantes. Na verdade, a Primavera Árabe foi totalmente o oposto do que ocorre na Turquia. 

Erdogan é um dirigente brilhante e eficaz. Em dez anos, conseguiu elevar o PIB turco e transformar seu país numa das grandes potências da região. E contrariamente aos tiranos egípcio, líbio ou tunisiano, o premiê Erdogan, chefe do partido AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) conquistou o poder de maneira "regular", por meio de eleições democráticas repetidas. 

Portanto, é preciso buscar outros motivos para a revolta em Istambul. O primeiro é a "embriaguez do sucesso". Erdogan, por força das vitórias, tornou-se um governante autoritário, brusco, arrogante e solitário. Ele edita leis sobre tudo. Cerceia as liberdades. Este homem, elevado ao pódio por eleições irrepreensíveis, comporta-se como um autocrata. 

Além disso, Erdogan, com esse poder opressivo, impõe uma visão do mundo singular que, percebemos hoje, é insuportável para uma parte da população. 

E qual é essa visão de mundo? Retornemos aos projetos urbanísticos que foram a centelha da agitação. De início, os cidadãos protestaram contra o corte de 600 árvores do Parque Gezi, ao lado da Praça Taksim, no centro de Istambul. Nada insólito. No mundo inteiro, os homens compreenderam que a natureza deve ser reverenciada, protegida e as árvores são um capital precioso. 

A derrubada das árvores, na verdade, faz parte de um vasto projeto urbanístico iniciado há anos com o objetivo de transformar Istambul (17 milhões de habitantes), modificar seu espírito e sentido. Por trás do projeto urbano, observamos o mesmo alvo: a Turquia nascida em 1924, criação de Mustafá Kemal Ataturk, que aboliu o "Califado" (o Império Otomano), substituiu a caligrafia árabe pelo alfabeto ocidental, tirou o véu das mulheres, aboliu a poligamia e transformou a Turquia num Estado laico. 

Um exemplo: o partido de Erdogan decidiu acabar com o Parque Gezi para ali erigir uma caserna "otomana", em homenagem aos oficiais islamistas radicais que, em 1909, se revoltaram em nome da sharia (lei islâmica) contra alguns projetos governamentais dos Jovens Turcos, e foram esmagados a tiros de canhão. 

Um outro projeto de Erdogan: em 2012 ele anunciou a construção da Camlica nas colinas de Istambul, uma mesquita enorme, a maior do mundo, que será visível de qualquer parte da enorme cidade. 

Meta histórica. Todos esses projetos, e há muitos outros, sinalizam o desejo de assegurar a conquista islâmica de Istambul. Sem dúvida, Erdogan olha ainda mais longe. Retornemos a Kemal Ataturk. No seu desejo de pôr fim ao Império Otomano, Ataturk transportou a capital que na época era Istambul (antes chamada Bizâncio e depois Constantinopla) para uma outra cidade, Ancara (que significa Agora). 

Ao que parece, Erdogan tem o sonho (irrealizável, pelo menos agora) de dar a Istambul a posição que ocupava à época do Império Otomano, ou seja, de capital. Em primeiro lugar porque ele nasceu em Istambul, num bairro miserável da cidade, e depois para fechar o período aberto por Ataturk, da Turquia secular. 

É um sonho coerente com um homem que multiplica as decisões favoráveis ao islamismo, como a limitação na venda de bebidas alcoólicas, mesmo o lendário raki, a reintrodução do "véu" para as mulheres, compreendendo mesmo as mulheres próximas do poder, ou a volta do delito de anátema, do qual foi acusado, por exemplo, o pianista Fazil Say. 

Neste sentido, os distúrbios presentes inscrevem-se no tempo da "História". Quando chegou ao poder, em 2003, Erdogan representava uma forma sedutora de islamismo: moderado, conservador, compatível com a democracia e defensor do liberalismo econômico. Oferecia, assim, uma alternativa para o islamismo arcaico que se propagava por todo o lado. Erdogan garantia ainda que sua intenção era integrar a Turquia, mesmo "islâmica conservadora", na União Europeia. 

A Europa rejeitou as demandas dos turcos. O então presidente francês, Nicolas Sarkozy, lutou duramente contra a incorporação da Turquia na União Europeia. Como devemos julgar hoje o combate de Sarkozy? Terá sido clarividente e profeta, compreendendo que o islamismo, mesmo moderado e liberal, é irreconciliável com os valores da Europa? Ou, pelo contrário, se ao fechar brutalmente a porta da Europa no nariz de Erdogan, o ex-presidente da França o rechaçou para as margens mais duras, mais cruéis e mais inquietantes do islamismo? 
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TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO.
* GILLES LAPOUGE É CORRESPONDENTE EM PARIS.
Fonte: Estadão on line, 04/06/2013
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