GILLES LAPOUGE*
Por que em Istambul, grande cidade turca, um protesto
contra um projeto urbanístico transformou-se num maremoto que avança por
todo país e sacode o poderoso governo de Recep Tayyip Erdogan? A
efervescência das manifestações na Turquia parece similar às revoltas da
Primavera Árabe que, há dois anos, derrubaram os regimes ditatoriais no
Egito, Líbia e Tunísia. Mas não há nenhuma relação, salvo a coragem dos
manifestantes. Na verdade, a Primavera Árabe foi totalmente o oposto do
que ocorre na Turquia.
Erdogan é um dirigente brilhante e eficaz. Em dez anos, conseguiu
elevar o PIB turco e transformar seu país numa das grandes potências da
região. E contrariamente aos tiranos egípcio, líbio ou tunisiano, o
premiê Erdogan, chefe do partido AKP (Partido da Justiça e do
Desenvolvimento) conquistou o poder de maneira "regular", por meio de
eleições democráticas repetidas.
Portanto, é preciso buscar outros motivos para a revolta em Istambul.
O primeiro é a "embriaguez do sucesso". Erdogan, por força das
vitórias, tornou-se um governante autoritário, brusco, arrogante e
solitário. Ele edita leis sobre tudo. Cerceia as liberdades. Este homem,
elevado ao pódio por eleições irrepreensíveis, comporta-se como um
autocrata.
Além disso, Erdogan, com esse poder opressivo, impõe uma visão do
mundo singular que, percebemos hoje, é insuportável para uma parte da
população.
E qual é essa visão de mundo? Retornemos aos projetos urbanísticos
que foram a centelha da agitação. De início, os cidadãos protestaram
contra o corte de 600 árvores do Parque Gezi, ao lado da Praça Taksim,
no centro de Istambul. Nada insólito. No mundo inteiro, os homens
compreenderam que a natureza deve ser reverenciada, protegida e as
árvores são um capital precioso.
A derrubada das árvores, na verdade, faz parte de um vasto projeto
urbanístico iniciado há anos com o objetivo de transformar Istambul (17
milhões de habitantes), modificar seu espírito e sentido. Por trás do
projeto urbano, observamos o mesmo alvo: a Turquia nascida em 1924,
criação de Mustafá Kemal Ataturk, que aboliu o "Califado" (o Império
Otomano), substituiu a caligrafia árabe pelo alfabeto ocidental, tirou o
véu das mulheres, aboliu a poligamia e transformou a Turquia num Estado
laico.
Um exemplo: o partido de Erdogan decidiu acabar com o Parque Gezi
para ali erigir uma caserna "otomana", em homenagem aos oficiais
islamistas radicais que, em 1909, se revoltaram em nome da sharia (lei
islâmica) contra alguns projetos governamentais dos Jovens Turcos, e
foram esmagados a tiros de canhão.
Um outro projeto de Erdogan: em 2012 ele anunciou a construção da
Camlica nas colinas de Istambul, uma mesquita enorme, a maior do mundo,
que será visível de qualquer parte da enorme cidade.
Meta histórica. Todos esses projetos, e há muitos outros, sinalizam o
desejo de assegurar a conquista islâmica de Istambul. Sem dúvida,
Erdogan olha ainda mais longe. Retornemos a Kemal Ataturk. No seu desejo
de pôr fim ao Império Otomano, Ataturk transportou a capital que na
época era Istambul (antes chamada Bizâncio e depois Constantinopla) para
uma outra cidade, Ancara (que significa Agora).
Ao que parece, Erdogan tem o sonho (irrealizável, pelo menos agora)
de dar a Istambul a posição que ocupava à época do Império Otomano, ou
seja, de capital. Em primeiro lugar porque ele nasceu em Istambul, num
bairro miserável da cidade, e depois para fechar o período aberto por
Ataturk, da Turquia secular.
É um sonho coerente com um homem que multiplica as decisões
favoráveis ao islamismo, como a limitação na venda de bebidas
alcoólicas, mesmo o lendário raki, a reintrodução do "véu" para as
mulheres, compreendendo mesmo as mulheres próximas do poder, ou a volta
do delito de anátema, do qual foi acusado, por exemplo, o pianista Fazil
Say.
Neste sentido, os distúrbios presentes inscrevem-se no tempo da
"História". Quando chegou ao poder, em 2003, Erdogan representava uma
forma sedutora de islamismo: moderado, conservador, compatível com a
democracia e defensor do liberalismo econômico. Oferecia, assim, uma
alternativa para o islamismo arcaico que se propagava por todo o lado.
Erdogan garantia ainda que sua intenção era integrar a Turquia, mesmo
"islâmica conservadora", na União Europeia.
A Europa rejeitou as demandas dos turcos. O então presidente francês,
Nicolas Sarkozy, lutou duramente contra a incorporação da Turquia na
União Europeia. Como devemos julgar hoje o combate de Sarkozy? Terá sido
clarividente e profeta, compreendendo que o islamismo, mesmo moderado e
liberal, é irreconciliável com os valores da Europa? Ou, pelo
contrário, se ao fechar brutalmente a porta da Europa no nariz de
Erdogan, o ex-presidente da França o rechaçou para as margens mais
duras, mais cruéis e mais inquietantes do islamismo?
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TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO.
* GILLES LAPOUGE É CORRESPONDENTE EM PARIS.
Fonte: Estadão on line, 04/06/2013
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