Luiz Fernando Dias Duarte*
Plenário do Senado, com crucifixo ao fundo (no detalhe).
Estudo mostra a indissociação e influência do catolicismo
na criação do
regime secular moderno no Brasil, onde a religião e a ordem pública
vivem hoje constantes conflitos.
(foto: Agência Senado)
O antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte trata, na coluna
deste mês, das intensas e delicadas relações entre a religião e a ordem
civil moderna, ora na forma de uma parceria constitutiva, ora na forma
de grave e ameaçadora oposição.
O mundo contemporâneo é constantemente sacudido por dramas e
polêmicas envolvendo a relação entre a religião e a ordem civil,
pública, moderna.
O paradigma iluminista concebeu a condição política moderna como
distante da esfera dos valores religiosos, independente de seus ditames;
por força das resistências muito acirradas que a maior parte das forças
religiosas institucionalizadas no mundo europeu antepôs a essa nova
ordem.
Por outro lado, essa ordem emergira a partir de processos ideológicos
internos à própria dinâmica religiosa do Ocidente, como se ressalta
hoje de modo cada vez mais frequente, sublinhando a raiz cristã do que
se conhece como um universalismo, um humanismo e um secularismo.
A intrínseca valorização da interioridade e integridade do fiel,
garantida pela graça divina, e sua relativa liberdade na gestão dos
rumos terrenos com vistas à salvação é um dos diversos pontos de
ancoragem do ideário republicano moderno no mais profundo imaginário
cristão.
Também na história da nação brasileira a questão vem sendo estudada, e
uma recente tese, do antropólogo Eduardo Dullo, dispõe-se a compreender
como dimensões importantes do catolicismo aqui desenvolvido se
mobilizaram para produzir efeitos de valorização da pessoa humana que
redundaram numa acrescida secularização.
Como diz o autor: “a criação de um regime secular moderno no Brasil é
não somente indissociável do cristianismo anteriormente existente e do
que se consolidou ao longo da segunda metade do século XX como é,
centralmente, uma secularidade que pode ser lida como efeito
– ainda que não desejado ou não esperado – de diversas ações cristãs, e
sobretudo de um determinado segmento católico, em sua busca pela
'mundanização' do cristianismo”.
O ponto de partida para sua análise foi a figura notável do educador
Paulo Freire (1921-1997), personagem crucial da história brasileira
durante toda sua vida adulta, mesmo quando exilado pela ditadura
militar.
Raízes religiosas
Quando Freire assumiu seu primeiro cargo público, em 1946, como
diretor do Departamento de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco e
iniciou o seu trabalho de alfabetização popular, já se nutria de uma
longa tradição de interesse social da Igreja Católica brasileira,
trabalhada pela romanização de finais do século 19, desafiada pela perda
dos privilégios imperiais com o advento do regime republicano, e
reanimada pelo movimento da Ação Católica, criada em 1935 pelo Cardeal
Sebastião Leme (1882-1942) e dirigida pelo intelectual e publicista
Alceu Amoroso Lima (1893-1983).
Quando Freire assumiu seu primeiro cargo público
e iniciou o
seu trabalho de alfabetização popular,
já se nutria de uma longa
tradição de interesse
social da Igreja Católica brasileira
O processo de consolidação de uma esfera pública relativamente
autônoma no Brasil devia contribuições também a outros movimentos
religiosos, como o espiritismo kardecista e o protestantismo histórico,
liberado dos entraves ao seu culto pela república. Mas o maciço
pertencimento da população ao catolicismo, pelo menos nominalmente,
fazia depender de maneira muito mais viva da ação da Igreja qualquer
avanço na direção de uma ordem civil estabilizada.
As contradições sempre foram muitas – e, no próprio corpo da Igreja,
intensas forças conservadoras se contrapuseram às dinâmicas
modernizantes e resistiram até mesmo aos ventos liberalizantes oficiais
que sopraram do Concílio Vaticano II (1961-1965).
As categorias de “consciência” e “conscientização” balizam a
contribuição de Paulo Freire ao conhecimento e superação do que ele
mesmo descreveu, em sua tese ‘Educação e Atualidade Brasileira’, de
1959, como uma “antinomia fundamental” entre a “emergência do povo na
vida pública” e a fraqueza das “disposições mentais” decorrente da
inexperiência democrática nacional.
Donde a necessidade de uma verdadeira reforma moral, em que o seu
método de alfabetização se desenhava como uma primeira fórmula do que
veio a propor mais tarde como uma “pedagogia do oprimido”. A essa
altura, sua disposição de valorização da pessoa humana se articulava com
a teoria marxista, de libertação coletiva das forças políticas e
econômicas que se antepunham ao reino da liberdade e da autonomia.
Os desenvolvimentos da obra e da ação de Freire foram, nesse sentido,
indissociáveis da formação do que se veio a chamar de Teologia da
Libertação, exponencialmente defendida no quadro brasileiro por teólogos
como Rubem Alves e os irmãos Clodovis e Leonardo Boff.
Eduardo Dullo chama a esse movimento maior, que incluiu também, nos
anos 1970, um Teatro do Oprimido (do teatrólogo brasileiro Augusto Boal)
e uma Psicoterapia do Oprimido (do psicólogo argentino Alfredo
Moffatt), de “paradigma da libertação”, para distingui-lo das fórmulas
políticas que se aglutinaram nas décadas seguintes em torno de um
“paradigma da inclusão”, articulado com as políticas neoliberais e com
uma nova e generalizada ênfase na prosperidade individual. Seu trabalho
dialoga assim com os que vêm analisando a ação das religiosidades
cristãs pentecostais e carismáticas, e, dentro delas, particularmente o
que se chama hoje de Teologia da Prosperidade.
Valores e contradições
O complexo mundo pentecostal brasileiro contemporâneo tem colocado
muita lenha na fogueira das relações entre a religião e a ordem civil.
Por um lado, vem se reconhecendo o papel de empoderamento que cumpre
junto às classes populares brasileiras, chamadas, nessas denominações, a
um protagonismo moral e público intensificado.
O complexo mundo pentecostal brasileiro contemporâneo
tem colocado muita
lenha na fogueira
das relações entre a religião e a ordem civil
Por outro lado, têm se tornado notórias as ações políticas de alguns
de seus segmentos de defesa de valores morais extremamente
conservadores, exemplarmente denunciados como antagônicos à liberdade e à
autonomia prezadas pelo ideário republicano moderno.
Essas contradições não são exclusivas do quadro brasileiro. São mesmo
de primeira linha nos EUA, nação em que a religião nunca esteve ausente
do quadro da vida pública e civil, ainda que de formas muito
peculiares. O acirramento de um fundamentalismo no cenário religioso
estadunidense, ou seja, de defesa de posições morais e políticas
derivadas de uma leitura literal dos textos sagrados, vem ecoando os
desenvolvimentos homólogos emergentes no mundo islâmico ou hinduísta,
para grande inquietação dos defensores da ordem civil secular longamente
burilada na tradição ocidental.
Esperemos que, assim como o secularismo moderno, com sua radical
valorização da liberdade e da igualdade da humanidade, proveio de
antigas raízes religiosas, assim também as renovadas religiosidades
contemporâneas possam plasmar uma ainda mais alargada – e não
amesquinhada – compreensão dos sentidos do mundo.
------------------------
Luiz Fernando Dias DuarteMuseu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Luiz Fernando Dias DuarteMuseu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sugestões de leitura
Casanova, José. Public religions in the modern world. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1994.
Duarte, Luiz F. D.; Barsted, L.; Taulois, M. R.; Garcia, M. H. ‘Vicissitudes e limites da conversão à cidadania nas classes populares brasileiras’. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 8, 1993.
Dullo, Carlos Eduardo V. ‘A produção de subjetividades democráticas e a formação do secular no Brasil a partir da Pedagogia de Paulo Freire’. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, 2013.
Lima, Diana. “‘Trabalho’, ‘mudança de vida’ e ‘prosperidade’ entre fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus”. Religião e Sociedade, vol.27, no.1, julho 2007.
Milbank, John. Teologia e Teoria Social. Para além da razão secular. São Paulo: Loyola, 1995.
Paiva, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980.
Duarte, Luiz F. D.; Barsted, L.; Taulois, M. R.; Garcia, M. H. ‘Vicissitudes e limites da conversão à cidadania nas classes populares brasileiras’. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 8, 1993.
Dullo, Carlos Eduardo V. ‘A produção de subjetividades democráticas e a formação do secular no Brasil a partir da Pedagogia de Paulo Freire’. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, 2013.
Lima, Diana. “‘Trabalho’, ‘mudança de vida’ e ‘prosperidade’ entre fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus”. Religião e Sociedade, vol.27, no.1, julho 2007.
Milbank, John. Teologia e Teoria Social. Para além da razão secular. São Paulo: Loyola, 1995.
Paiva, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980.
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo/religiao-e-ordem-civil
Nenhum comentário:
Postar um comentário