Marcelo Gleiser*
Um dos aspectos mais extraordinários da ciência é como ela nos permite ampliar nossa visão do real
Costumamos achar que sabemos o que é o mundo real, esse que vemos à
nossa volta. Basta abrir os olhos, apurar os ouvidos, e temos esse
retrato do que é a realidade, baseado na nossa percepção sensorial. Mas
será que é só isso? Será que o que vemos e ouvimos pode ser chamado de
realidade? Um dos aspectos mais extraordinários da ciência é como ela
nos permite ampliar nossa visão do real. E um dos aspectos mais
paradoxais é que quanto mais aprendemos sobre o mundo, menos clara nos é
a natureza da realidade.
Platão, na Grécia Antiga, já antecipara o problema. Em sua alegoria da
caverna, ele imagina um grupo de "escravos" acorrentados em uma caverna
desde o nascimento. A percepção da realidade deles se restringe à parede
da caverna, que é tudo que podem ver. Para eles, o que aparece na
parede é o mundo real. Sem que os presos soubessem, atrás deles um grupo
de filósofos fizera uma fogueira que lançava luz na parede. Em frente
ao fogo, os filósofos seguravam objetos e os escravos viam as sombras
projetadas na parede, achando que os objetos eram reais. Obviamente, a
projeção não correspondia ao objeto: por exemplo, uma bola aparecia como
um círculo. O ponto de Platão é que nossa percepção sensorial cria uma
noção falsa do real. Como disse a raposa ao Pequeno Príncipe, "o
essencial é invisível aos olhos".
Na história da física, o que chamamos de realidade também muda. Antes de
Copérnico, o Cosmo tinha a Terra no centro e o Sol e planetas girando à
sua volta. O Universo era fechado na forma de uma esfera e Deus e sua
corte habitavam a esfera mais externa. Quando Newton propôs sua teoria
da gravitação, percebeu que o Cosmo não poderia ser finito. Apenas um
Cosmo infinito, onde as estrelas estavam separadas e equilibradas
(precariamente), seria estável. De repente, a realidade muda e o homem
se vê num Universo infinito, envolto em trevas. Qual o lugar do homem
nesse novo Universo? Para complicar, as ideias de Newton levaram a um
determinismo radical em que o futuro poderia ser calculado, ao menos em
princípio, a partir do presente. Se isso fosse verdade, não haveria mais
o livre arbítrio; todas as ações estariam predeterminadas pela precisa
maquinaria cósmica. A liberdade que achamos ter seria uma ilusão.
Felizmente, esse determinismo não durou muito. No início do século 20, a
física quântica pôs fim à noção de que podemos usar a física como
oráculo. O princípio de incerteza de Heisenberg mostrou que não podemos
medir a posição e a velocidade de uma partícula conjuntamente, o que
torna a determinação precisa de seu futuro impossível.
Ademais, o mundo quântico nos mostra que a própria natureza da realidade
é elusiva: não vemos um elétron ou um fóton, sua existência é medida
com detectores, aferida indiretamente. O mundo do muito pequeno, que
tanto define nossas vidas através das tecnologias digitais que usamos, é
um mundo inacessível aos sentidos. Não podemos nem mesmo atribuir
existência a uma partícula antes de a detectarmos: a realidade é
definida pelo modo como interagimos com ela.
Isso cria um novo modo de ver o mundo: sempre existirão aspectos da
realidade que são desconhecidos. Mas o surpreendente é que existem
outros que são inacessíveis.
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