sábado, 6 de julho de 2013

Anotações sobre Humor

J Francisco Saraiva de Sousa

Os filósofos têm elaborado diversas teorias sobre o fenómeno do humor, das quais se destacam as teorias de Freud, Bergson e Plessner. Como já analisei a teoria de Plessner, vou concentrar-me nas interpretações de Freud e de Bergson. Freud e Bergson interpretam o humor como a apreensão de uma discrepância fundamental entre as exigências do superego e da libido, no caso de Freud, e entre o organismo vivo e o mundo mecânico, no caso de Bergson. Aquilo que me interessa nestas duas teorias do humor é o seu aspecto comum: ambas encaram o cómico como uma discrepância ou incongruência: «Uma situação é invariavelmente cómica quando pertence ao mesmo tempo a duas séries de acontecimentos inteiramente independentes e é capaz de ser interpretada em dois sentidos completamente diferentes ao mesmo tempo» (Bergson). Dado ser um conceito nuclear da antropologia filosófica, interpreto o humor como fenómeno especificamente humano, o que me permite enunciar diversas novas teses filosóficas que restringem a qualidade cómica às situações humanas. Eis as teses que proponho:

Tese 1: O Homem é o único ser capaz de se rir - e chorar! - de si mesmo, dos outros e de certas situações. (Daqui decorre que a qualidade cómica se refere sempre a situações humanas: os animais só são cómicos quando lhes atribuímos características humanas.)

Tese 2: A discrepância constitui o ingrediente fundamental de todas as piadas. Existem diversos tipos de discrepância - as incongruências propostas por Freud e Bergson - mas todos eles nos reconduzem à discrepância fundamental entre o homem e o cosmos. É esta discrepância antropocosmológica fundamental que faz do cómico um fenómeno especificamente humano. Daqui se segue nova tese.

Tese 3: O cómico reflecte o aprisionamento do espírito humano no mundo, sobretudo no mundo abandonado pelos deuses: «A alma é um estranho na terra» (Georg Trakl). Esta tese já é conhecida desde a Antiguidade Clássica. A concepção de ironia como a mais alta liberdade possível do homem num mundo sem Deus - exposta pelo Jovem-Lukács - relaciona-se com esta tese.

Tese 4: A distinção entre tragédia e comédia esquece que ambas são comentários sobre a finitude radical do homem: a noção existencial de homem como náufrago ou ser-sem-abrigo coaduna-se com esta tese filosófica.

Tese 5: Ao aceitarmos a última tese, somos forçados a encarar o cómico como uma dimensão objectiva da realidade humana: o humor mais não é do que o reconhecimento da cómica discrepância da condição humana.

Estas teses são suficientes para elaborar uma nova teoria filosófica do humor. Poderia acrescentar outras teses, talvez para mostrar que é muito difícil relativizar o humor, mas prefiro concluir enunciando uma tese que clarifica a teoria que tenho em mente.

Tese 6: A negação da metafísica conduziu ao triunfo da trivialidade: o humor que se faz actualmente perdeu a graça. Fechado em si mesmo e neste mundo intra-empírico, o homem tornou-se incapaz de encontrar o seu próprio caminho de fuga. O mundo trivial em que vivemos deixou de ser engraçado. A perda de graça é proporcional à invasão do mundo pelo homem: o cansaço da humanidade de Nietzsche pode ser compreendido à luz desta nova perspectiva. 

Anexo. Um colega brasileiro criticou o meu recurso a uma teoria da natureza humana, acusando-me de ser liberal em vez de marxista. Os rótulos não me incomodam: aqui direi apenas que o conceito de natureza humana me permite compreender o homem do passado mais distante ou do presente mais próximo. Afinal, o homem de todos os tempos ri e chora. Ora, este facto fundamental mostra que há uma natureza humana fundamental que nos une a todos e que nos une aos nossos antepassados. Além disso, uma tal teoria veda-me o caminho dos disparates políticos. A Filosofia é um empreendimento teórico sério.
-----------------------
Fonte: http://cyberdemocracia.blogspot.fr/2013/07/05

Nenhum comentário:

Postar um comentário