Boris Pahor*
Se partirmos do pressuposto de que Deus, como ser divino, vê o
futuro e aceita o mal que os seres humanos fazem, eu excluo que ele seja
sumamente bom. Não pode ser bom um Deus que não renuncia criar um mundo
assim. E se não pode renunciar a isso ele não é a suma autoridade, não é
Deus
Para poder expressar plenamente o meu pensamento sobre a religião –
eu sou religioso, mas não crente – devo necessariamente ir aos poucos e
fazer, por assim dizer, uma espécie de prefácio sobre os anos juvenis
marcados pelo fascismo bandido, anárquico, destrutivo que alguns
chamaram apropriadamente de antieslavo. Antes de se afirmar como força
governativa, o fascismo se manifestou, de fato, em toda a sua
intolerância em Venezia Giulia, onde deu vazão ao seu chauvinismo, incendiando as casas de cultura eslovenas e croatas na Istria,
destruindo bibliotecas e escritórios. E espalhando um clima de terror
anarcoide, até chegar a atirar nas igrejas onde o sacerdote pronunciava o
sermão em esloveno.
Mas, acima de tudo, eu fui marcado pela impossibilidade de aprender e
de estudar na minha língua nativa, o esloveno, o que até os primeiros
anos de escola fundamental, sob o Império Austro-Húngaro, era algo possível. Retomando o título do livro do amigo Sergio Salvi, Le lingue tagliate, era como se eu tivesse sido privado da minha língua e forçado a usar outra.
Por causa dessa violência sofrida, subitamente me transformei em um
péssimo estudante, certamente não porque eu não compreendia as aulas,
mas por um sentimento de apatia, devido em parte à distração, em parte à
indiferença com o que me estava sendo ensinado em um idioma estranho
para mim. Foi assim que a minha mãe, que era uma mulher muito piedosa,
ouviu uma amiga que aconselhava a me mandar para o seminário para fazer
com que eu entrasse na maturidade. (...)
Eu comecei a me dar conta de que o estudo da teologia me afastava da
vida normal, que eu não tinha como conhecer, que se revelava a mim
através da leitura de obras literárias clássicas eslovenas que, de
tempos em tempos, eu conseguia pegar emprestadas. (...)
Eu estudei a matéria por dois anos, mas continuava sendo marcado pela
dúvida com relação à fé. (...) No fim, eu decidi abandonar a teologia e
fui então considerado apto aos trabalhos: fui chamado às armas e acabei
no regimento que me foi atribuído na Líbia. (...)
Tendo voltado a Trieste depois do dia 8 de setembro
de 1943, tornei-me militar foragido por não ter cumprido a ordem de me
apresentar ao comando alemão e me uni à luta clandestina antinazista. Eu
era sargento. Obviamente, a Gestapo levou isso conta:
acabava-se em um campo de concentração se não se aceitava combater ao
seu lado, mas no meu caso foi um texto antinazista encontrado na minha
casa pela milícia eslovena colaboracionista, que tinha um quartel em
Trieste, que me abriu as portas do campo de concentração.
Foi no campo de Struthof-Natzweiler, nos Vosges,
que ficou vivo em mim o fator religioso. O campo era feito de terraços.
Na parte mais baixa, estava o forno crematório que estava sempre ativo,
durante o dia com o cheiro insistente, de noite com a chama sempre
presente acima do tubo metálico que servia de chaminé. Uma noite,
reunidos nos terraços, tive a impressão de que estávamos enfileirados em
uma pirâmide entre os montes devotados ao nada. Eu rezei. Foram três
Ave-Marias em esloveno, acompanhadas do compromisso de ir ao santuário
da montanha dedicado a Nossa Senhora de Svete Višarje (o Monte Santo de Lussari, Luschariberg em alemão, de 1.700 metros de altura), aonde, quando estudante, íamos escondidos para estudar a nossa história e literatura.
Foi a única vez que eu rezei, porque depois, graças a uma infecção na mão, eu pude entrar em contato com o médico Jean Lareyberette, com o qual eu tive um diálogo em francês. Graças a isso, o doutor me indicou ao doutor Poulsen,
e eu me tornei o seu intérprete, condição que me permitia passar por
cima da convocação às varandas esculpidas na parede da montanha a 1.800
metros, com a neve e com a chuva. (...)
No entanto, foi o fato de ter visto os inúmeros esqueletos de Natzweiler, Dachau, Dora, Harzungen e Bergen Belsen
que me fez refletir sobre a onipotência e a bondade de Deus. Foi ali
que eu disse a mim mesmo – como depois encontrei escrito em Hans Jonas, o filósofo judeu que se interroga sobre o conceito de Deus depois de Auschwitz
– que o mal, a bondade absoluta e o sumo poder não podem estar juntos,
um deles tem que ceder: ou o sumo poder, ou a suma bondade.
Um católico se salvaria dizendo que Deus criou o ser humano livre,
portanto responsável pelo mal que faz. Concordo, digo eu, mas se
partirmos do pressuposto de que Deus, como ser divino, vê o futuro e
aceita o mal que os seres humanos fazem – a terra que tremerá e os fará
morrer aos milhares, as pestes que ceifarão vítimas aos milhares, o
câncer que matará de todas as formas pelas quais poderá se manifestar –
eu excluo que ele seja sumamente bom. Não pode ser bom um Deus que não
renuncia criar um mundo assim. E se não pode renunciar a isso ele não é a
suma autoridade, não é Deus]
Então, eu concluo com Einstein: se Deus é uma
divindade que não se interessa pelo mundo, ou, melhor, que não criou o
mundo porque ele não tinha a faculdade para isso, nem sentia a
necessidade disso – como diz Lucrécio ou como, antes dele, pensavam Heráclito e Parmênides, e mais tarde Spinoza –, então ele não tem nem inteligência nem vontade. Para citar Santo Agostinho: Sine intelligentia creatorem ou lumen superrationale.
Fiquei com Spinoza, com Deus sive natura, com Spinoza explicado excelentemente por Giuseppe Renzi,
Spinoza honesto e corajoso que coloca os humanos diante da verdade,
isto é, afirmando que eles estão sozinhos e devem encontrar a forma de
viver em sociedade. Sim, comecei a me ocupar também do nosso destino
depois de voltar vivo dos campos de concentração. Ousei colocar em
dúvida o ensinamento recebido, que, quando jovem, eu aceitava como
verdade indiscutível quando, ao invés, ela era, como eu descobri,
totalmente discutível. (...)
A minha posição é análoga à do amigo Stéphane Hessel, caro amigo infelizmente falecido. Quando perguntaram ao grande escritor Mario Rigoni Stern
o que era para ele a religião, ele respondeu: "Deter-me em silêncio no
bosque". Era o que eu fazia quando caminhava entre as árvores no caminho
que sobe ao planalto cársico. Agora sou mais modesto e, de manhã, me
recolho diante da infinita expansão do mar.
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* A opinião é do escritor esloveno-italiano Boris Pahor, indicado ao Prêmio Nobel de Literatura e vencedor do Prêmio Prešeren, o mais importante no campo cultural esloveno. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 30-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 04/07/2013
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