quinta-feira, 4 de julho de 2013

Francisco infringe a fronteira entre o sagrado e o profano

 Jorge Costadoat*
                                                                                                          Fonte: http://goo.gl/JGkBS 

“Este Papa [Francisco] está realizando ações que provocam raiva naqueles que não entendem que o dogma da encarnação leva a descobrir Deus em um homem comum e normal, e que a salvação, em sentido estrito, é humanização”*
O papa Francisco convidou uma criança com síndrome de down (na foto, junto com o Papa) para subir no papamóvel. É um gesto simpático. A quem poderia incomodar? A ninguém. Entretanto, uma vez que já realizou vários gestos deste tipo, muitos estão inquietos. Um Pontífice pode abandonar o seu papel, o tempo todo? Um dia o viram retirando o lixo da residência Santa Marta. Não está indo longe demais? Após alguns meses de sua eleição, há católicos embaraçados, irritados ou preocupados.

Algo assim não é normal em um chefe de Estado. No caso do Santo Padre, a alguns entusiasma e a outros enfurece. Por quê? Minha hipótese é esta: Francisco infringe a fronteira entre o sagrado e o profano. Faz isto provocativamente? Não sabemos. Sobre as suas intenções, ninguém pode dizer nada. Todavia, sim, é claro que faz coisas que não se faz, assim como quando Jesus curava no sábado.

Façamos memória. Jesus foi morto pelos romanos por interesses dos chefes de seu próprio povo. No alto da cruz um letreiro dizia, em gozação, “O rei dos judeus”. Neste caso, tratou-se da aplicação da pena capital de parte dos romanos, a única autoridade que possuía o “ius gladii”. Fariseus, escribas e saduceus os romanos ver que as expectativas messiânicas que Jesus despertava eram perigosas para a estabilidade social e política da Palestina. Não precisaram invocar como causa o que realmente era insuportável para eles: a desautorização que Jesus fazia da religiosidade da época e, em especial, deles, pois interpretava a Lei e se comportava no que diz respeito ao Templo com uma liberdade inaudita. Jesus, em suas atuações, subordinou a Lei e o Templo à obediência a Deus, que em todos os casos, e sempre, consistiu na libertação de pessoas concretas.

Este foi, em seu núcleo, o conteúdo do reino que Jesus quis inaugurar como vontade de Deus, que ele considerou seu Pai. Este Pai não se encontrava de forma melhor nos lugares e tempos “sagrados” do que nos vales, montanhas e entre as ondas do mar da Galileia, de manhã ou à tarde. Ao invés de se apresentar como o guardião da diferença entre o sagrado e o profano, Jesus a saltou, ridicularizou-a muitas vezes, e a aniquilou para sempre, com sua morte na cruz.

Assim foi a compreensão da Igreja primitiva. No rasgar-se do véu do Templo, no momento da morte de Jesus, ela viu o cumprimento irreversível da encarnação. O Deus que entrou na história como uma criança indefesa e que foi retirada desta mesma história com violência, deixa-se reconhecer nos fatos humanos, especialmente ali onde a humanidade mais se assemelha com sua crucificação. O “pecado” que o Sinédrio não tolerou em Jesus poderia se chamar “secularidade”. Jesus devotou toda a religião de Israel ao amor secular. Ao amor assim, simplesmente, poderíamos dizer, sem a articulação religiosa, como o do bom samaritano.

Francisco desconcerta pessoas que preferem um pontífice hierático. O sacerdote, pensam, deve representar a santidade de Deus. Outros, estou entre estes, pensam que ele deve representar a “humanidade” de Deus. Melhor dito, acreditam que a verdadeira santidade, a do Filho de Deus encarnado, manifesta-se na grande humanidade e humildade de Jesus. E que, pelo contrário, a santidade não bem compreendida faz acreditar que em Cristo o divino neutraliza o humano. O problema é que, de um Cristo que simula humanidade, resultam pessoas que simulam divindade.

É estranho, portanto, que Francisco possa desconcertar um cristão. É notório que seus gestos tão simples, na contramão do maneirismo eclesiástico, perturbem aqueles que deveriam vê-los como completamente naturais. O naturalmente pagão é a divinização da autoridade. O cristianismo, ao contrário, reconhece aos que praticam a justiça e a clemência. A investidura pontifícia não basta. É, inclusive, ambígua, pois induz à papolatria. E a papolatria sim é um pecado, ou uma besteira.

Como outro exemplo, tomemos o episódio de Francisco brincando com o solidéu, colocando e o retirando da cabeça de uma menininha. Para alguns, o gesto parece lindo. Encaixa-se exatamente com a alegria de Jesus. Para outros, ao contrário, não deve parecer positivo que o Papa brinque com a vestimenta sagrada. O solidéu é essa espécie de gorrinho redondo e roxo que os bispos usam. Apenas o Papa usa o solidéu branco. Quando o prelado celebra a missa, deve retirá-lo no momento da oração eucarística, simbolizando respeito a Deus, como alguém que tira o chapéu para saudar alguém.

O que Francisco procura simbolizar com este outro uso que faz do solidéu? Estaria querendo dizer para a menininha que algum dia ela poderá ser Papa? Não acredito nisso. Estaria talvez querendo dizer para ela e todos os demais “eu, que sou o Papa, quero que me sintam próximo e confiável”? Os demais sinais apontam que sim. Penso também que esta interpretação, por sua vez, pode se apresentar como muito ruim para algumas pessoas. Ao brincar desta maneira com o solidéu, alguém pode pensar que o Papa atravessa jocosamente a fronteira do proibido. Francisco não coloca a mitra quando é preciso colocá-la. Francisco lava os pés de uma muçulmana na prisão, durante a Semana Santa. Francisco cumprimenta com beijo a presidente da Argentina, etc. Frequentemente, quebra o protocolo. Qual é o limite? Poderia celebrar, certo dia, a eucaristia sem túnica, apenas com a estola?
Estes gestos totalmente intencionais do Papa podem provocar inquietação, incômodo ou fúria em qualquer um dos cristãos. Nenhum destes sentimentos é culpável. Os sentimentos são inocentes. Ninguém é culpado de sentir isto ou aquilo, nem tampouco de ter esta ou aquela cultura ou sensibilidade religiosa. Deve se ter presente, isto sim, que o fanatismo religioso, que combina o zelo por Deus com a ira psicológica, é perigoso.

Este Papa está realizando ações que provocam raiva naqueles que não entendem que o dogma da encarnação leva a descobrir Deus em um homem comum e normal, e que a salvação, em sentido estrito, é humanização. A encarnação é um mistério difícil de compreender para a mentalidade dos próprios crentes, mas não se atinar para o seu conceito não é inofensivo. Há concepções do sacro, do santo e da salvação desumanas e desumanizantes.

Francisco deixará alguma vez de usar o papamóvel? Ainda necessita dele. No momento, caso nos convide a subir nele e aceitarmos, estaremos mais próximos de compreender quem é e quem não é o Deus de Jesus.
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* Escreve o teólogo Jorge Costadoat,jesuíta, diretor do Centro Teológico Manuel Larraín, no Chile, em artigo publicado por Religión Digital, 03-07-2013. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU on line, 04/07/2013
 

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