quarta-feira, 3 de julho de 2013

Invocar a metáfora, provocar os afetos!

Perspetivas
Inchoatio fidei est in affectione (Tomás de Aquino)

Pode a metáfora ser fonte de sentido relacionando logos diferenciáveis? Segundo Paul Ricoeur «o sentido metafórico produz uma ‘aproximação’ entre significados que antes eram estranhos entre eles». A metáfora permite ir além da simplificada coincidência moderna da verdade com a ratio positivista. A propensão metafórica dá-nos a ver algo como se efetivamente acontecesse. Metáfora e conceito interpelam-se mutuamente na construção da realidade e da identidade humana. A construção da realidade dá-se na interação entre mente-corpo-espírito como lugar privilegiado para a manifestação do mistério e do inefável, não como efusão externalista ao sujeito, mas como seu princípio fundativo ontologicamente prévio. É assinalável a consideração do neurocientista António Damásio quando afirma que “dar um pendor natural à mente consciente e plantá-la firmemente no cérebro não minimiza o papel da cultura na formação dos seres humanos, não reduz a dignidade humana e não representa o fim do mistério e da perplexidade”. Também a grande patrística considerava a zona interior do humano o ponto fundamental para a relação com o Mistério (Gregório de Nissa, Cassiano, Agostinho). Na “mente se revela uma grande tempestade de pensamentos que tolhe a justa decisão” (Atanásio), neste caso a decisão de crer. 

São curiosas as críticas à sociedade emotiva e fruitiva mas o facto é que o nível das respostas/propostas não parecem estar à altura das descrições mais ou menos sociológicas intra e extra eclesiais. Tem razão Brueggemann quando afirma que “a cultura dominante é uma cultura exausta e é quase impossível estimulá-la e reforçá-la seriamente para torná-la capaz de acolher novas promessas da parte de Deus”. Nesse sentido, e não sem prejuízo grave, dificilmente nos damos conta que há toda uma zona do humano que continua por explorar devido a pressupostos antropológicos pouco clarificados ou abordados somente numa perspetiva apologética de assentimento a uma objetividade revelada. É notável a afirmação de S. Tomás: inchoatio fidei est in affectione (o início da fé está na afeição/no afeto). Contemporaneamente, Lonergan diria que a “fé é o conhecimento nascido do amor religioso, existe, portanto, um conhecimento nascido do amor”. Neste ponto a posição de Damásio volta a encontrar eco, salvo as devidas distâncias, para o qual “os sentimentos orientam os esforços conscientes e deliberados da autoconservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à maneira como a autopreservação se deve realizar. Os sentimentos abrem a porta a uma nova possibilidade: o controlo voluntário daquilo que até então era automático”. As emoções e os sentimentos no seu nível primário não são de ordem arbitrária e irracional mas contêm uma racionalidade, um logos intrínseco, uma intencionalidade que se cristaliza linguisticamente e culturalmente, na decisão e no comportamento (importância dos marcadores sinápticos/neurões-espelho como processo cumulativo das diversas experiências e da alargar os afetos ao nível da interação social e empática entre os atores sociais). Doutro modo, o diz o poeta dinamarquês prémio Nobel da Literatura Tomas Tranströmer: 

Trago em mim os meus rostos anteriores,
como a árvore tem os anéis da sua idade.
O que eu sou é a soma de todos esses rostos.
O espelho só vê o meu rosto mais recente,
mas eu conheço todos os anteriores

Poderá ser evocativo o sempre contemporâneo quadro Lição de Anatomia de Dr. Tulp (1632), do pintor flamengo Rembrandt (1606-1669). Uma metáfora do logos afectivo que subtrai o olhar à simplificação de uma linguagem de contra-posição do género crer para ver ou ver para crer? Esta metáfora parece expressar linguagens aparentemente distintas: emotiva e racional, realista e idealista, especulativa e prática, afectiva e inafectiva. Rembrandt não pinta apenas um possível diálogo entre ciência/teologia, crer/saber, visível/invisível. Seria igualmente evocativo o quadro de Caravaggio sobre a incredulidade de Tomé. Mas a nosso ver, a metáfora provocativa de Rembrandt é mais subtil, e coloca de algum modo em perspectiva o tema que nos propomos abordar. Um outro modelo elucidativo deste diálogo em torno do humano seria o soberbo filme Decálogo I do realizador poláco Krzysztof Kieślowski com a análise antropológica que lhe está subjacente. 

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Há no quadro de Rembrandt um realismo crítico e uma fenomenologia transcendental, qual condição de possibilidade aprioríca que des-vela o Ser e o abre ao sentido da existência. O pintor flamengo imagina uma narrativa capaz de poetizar (fazer) a diferença do «humano-que-é-comum» (Sequeri), apresentando-o como mistério a ser desvelado, como acto de auto-conhecimento segundo o famoso adágio délfico «conhece-te a ti mesmo». Ao quadro de Rembrandt subjaz um significado denotativo/conotativo porque o «o corpo que nós somos, mas que não somos a sua origem, é a nossa inscrição originária no sentido da vida […] corpo que me faz comum a cada homem e ao mesmo tempo me personaliza» (Manicardi). Na produção do significado e do sentido da corporeidade originária tudo conta: o olhar, o sentir, o respirar, o tocar, o amar, o pensar, o querer, o confiar, o crer, o experimentar. O acesso à interioridade é mediado pelos afetos enquanto modo de conhecer, não-arbitrário, não-subjectivístico. O processo generativo implica as emoções, os afetos e as relações intra e inter humanas: a consciência do Outro no sentimento de si, ou o sentimento do Outro na consciência de si. Em certa medida «o conhecimento do outro e do estrangeiro produz sofrimento que acompanha todo a modificação de si. Sofrendo pela presença do outro e do estrangeiro aprende-se, tal como alude o jogo de palavras em língua grega: páthein e máthein» (Moltmann).

Nem sempre a rigidez do discurso científico e teológico deixa espaço para este jogo e para a metáfora evocativa que acende a luz pática da fé (lumen gratiae/lumen fidei) na mente humana. Será impossível conjugar o amor intellectualis Dei  spinosianocom o affectus/effectus amor Dei cristão? Rembrandt coloca o discurso científico/teológico, razão/ afeição, intellectus/affectus fidei (não está o início da fé na afeição como afirmara Tomás de Aquino?) em relação, na procura da verdade que existe no íntimo da existência humana. A admiração, o estupor, diante do mistério humano, indica a presença do Mistério que se faz presente na humana corporeidade. É verdade que a metáfora não se dá sem o conceito, o significado e o significante, que se revela no «corpo falante desde sempre já falado no ventre materno» (Chauvet). Mas o sentimento /emoção da percepção que a metáfora provoca em nós revela a transparência afectiva do logos. Por detrás do estético, da obra enquanto tal, está toda uma ressonância noético-afectiva que revela à consciência humana a luminosidade do conceito, do pensamento, da ideia. Por isso, no quadro de Rembrandt, não existe só racionalidade mas pathos/affectus dramático, mistério e desejo, que abre ao humano um horizonte de confiança, correspondente arquétipo da originária experiência humana, que se situa sempre no desejo de conhecer.

Com esta metáfora in-vocativa e pro-vocativa, Rembrandt propõe uma síntese da história do pensamento e da cultura ocidental moderna. Uma hermenêutica interpretativa do mundo do seu tempo ao nível das ciências da natureza e da nova compreensão biológica do Homem, da Natureza e do Mundo. Esta metáfora permite-nos elaborar um exercício hermenêutico sobre Lebenswelt actual do sujeito humano, como «‘ser-no-mundo’». Ocultamento do mundo objectivamente manipulável e desvelamento do mundo da vida, não manipulável» (Ricoeur). Cientes desta necessidade des-velativa do saber, precisamos de reflectir e colocar os pressupostos teológico-antropológicos da originária estrutura consciente crente e da sua pro-afeição ontológica (consciência afectiva da alteridade). A teologia cristã não pode deixar de percorrer esse caminho de pensamento afectivo/afectado, de saber e de crer, que leva à descoberta da verdade última das coisas presente na realidade des-velada. Na verdade a partir da imaginação humana podemos aceder à consciência de uma época segundo o qual «as pessoas pensam, sentem e agem» (G. Sans). O “espírito” de uma época com as suas emergências, expectativas e contrariedades, ritos, normas, símbolos e o seu ethos

É nesse sentido que nos move e comove a pergunta primordial sobre as condições de possibilidade do acto crente cons-ciente à luz das disposições actuais do ser humano. Pode, na verdade, a ordem dos afetos, enquanto quadro constitutivo da consciência, elevar as emoções e os sentimentos a um nível meta-biológico? Que entidades podem realizar essa valorização? É possível consciência/sentimento de si sem a consciência/sentimento do outro? É ‘Deus que vem à ideia’ (E. Lévinas) auto-comunicando-se livremente na história relacional dos humanos ou é a mente humana que produz essa ideia com base em emoções/sentimentos configurados culturalmente? Mas será que «tudo isto nos [falará] da inteligência dos afetos e do timbre e do carácter emotivo da nossa inteligência, da graciosa necessidade de viver em relações assinaladas por uma segura e sustentável afabilidade e fiabilidade, isto é no espaço de uma afinidade electiva entre Deus e o homem e entre nós seres humanos» (E. Salmann)? Não é a «fé garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem» (Hb 11,1)?

O drama da existência do homem contemporâneo não é o de ver/desejar Deus mas de já não O sentir como espírito incarnado e presente na história. Este não-sentir gera a anafetividade anamnésica que nos afecta negativamente a todos. Recuperar a linguagem da consciência crente por via da metáfora, é tornar o conceito menos conotativo mas mais denotativo. A metáfora torna o real inteligível. Como no quadro de Rembrandt, a metáfora potencia a articulação de diversas linguagens que possibilitam a inteligência humana de aceder à verdade e à consciência epocal. Gerar pequenos mundos de vida, comunidades de sentido, segundo a narrativa para-bólica e sim-bólica de Jesus de Nazaré, abrindo a consciência humana à sua origem instituidora de sentido: à consciência crente/fiducial. Isto é imaginar um cristianismo secular plausível sem nostalgia do passado nem medo do presente mas pleno de confiança na justiça/verdade do Reino de Deus. Só um cristianismo convertido à humildade sapiencial da Palavra terá a credibilidade profética necessária diante dos sistemas contemporâneos de desumanização (política, económica ou religiosa). «O Senhor é o Espírito e onde está o Espírito do Senhor, existe liberdade» (2 Cor 3,17). Nesta abertura teológico-eclesial teremos muito aprender com as novas linguagens da autenticidade como proposta fiducial para uma pastoral mistagógica da cultura contemporânea.
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João Paulo Costa
© SNPC | 01.07.13
Fonte:  http://www.snpcultura.org/invocar_a_metafora_provocar_os_afetos.html

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