Inchoatio fidei est in affectione (Tomás de Aquino)
Pode a metáfora ser fonte de sentido relacionando logos
diferenciáveis? Segundo Paul Ricoeur «o sentido metafórico produz uma
‘aproximação’ entre significados que antes eram estranhos entre eles». A
metáfora permite ir além da simplificada coincidência moderna da
verdade com a ratio positivista. A propensão metafórica dá-nos a ver algo como se efetivamente
acontecesse. Metáfora e conceito interpelam-se mutuamente na
construção da realidade e da identidade humana. A construção da
realidade dá-se na interação entre mente-corpo-espírito como lugar
privilegiado para a manifestação do mistério e do inefável, não como
efusão externalista ao sujeito, mas como seu princípio fundativo
ontologicamente prévio. É assinalável a consideração do neurocientista
António Damásio quando afirma que “dar um pendor natural à mente
consciente e plantá-la firmemente no cérebro não minimiza o papel da
cultura na formação dos seres humanos, não reduz a dignidade humana e
não representa o fim do mistério e da perplexidade”. Também a grande
patrística considerava a zona interior do humano o ponto fundamental
para a relação com o Mistério (Gregório de Nissa, Cassiano, Agostinho).
Na “mente se revela uma grande tempestade de pensamentos que tolhe a
justa decisão” (Atanásio), neste caso a decisão de crer.
São curiosas as críticas à sociedade emotiva e
fruitiva mas o facto é que o nível das respostas/propostas não parecem
estar à altura das descrições mais ou menos sociológicas intra e extra
eclesiais. Tem razão Brueggemann quando afirma que “a cultura
dominante é uma cultura exausta e é quase impossível estimulá-la e
reforçá-la seriamente para torná-la capaz de acolher novas promessas da
parte de Deus”. Nesse sentido, e não sem prejuízo grave, dificilmente
nos damos conta que há toda uma zona do humano que continua por
explorar devido a pressupostos antropológicos pouco clarificados ou
abordados somente numa perspetiva apologética de assentimento a uma
objetividade revelada. É notável a afirmação de S. Tomás: inchoatio fidei est in affectione
(o início da fé está na afeição/no afeto). Contemporaneamente,
Lonergan diria que a “fé é o conhecimento nascido do amor religioso,
existe, portanto, um conhecimento nascido do amor”. Neste ponto a
posição de Damásio volta a encontrar eco, salvo as devidas distâncias,
para o qual “os sentimentos orientam os esforços conscientes e
deliberados da autoconservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem
respeito à maneira como a autopreservação se deve realizar. Os
sentimentos abrem a porta a uma nova possibilidade: o controlo
voluntário daquilo que até então era automático”. As emoções e os
sentimentos no seu nível primário não são de ordem arbitrária e
irracional mas contêm uma racionalidade, um logos intrínseco,
uma intencionalidade que se cristaliza linguisticamente e
culturalmente, na decisão e no comportamento (importância dos
marcadores sinápticos/neurões-espelho como processo cumulativo das
diversas experiências e da alargar os afetos ao nível da interação
social e empática entre os atores sociais). Doutro modo, o diz o poeta
dinamarquês prémio Nobel da Literatura Tomas Tranströmer:
Trago em mim os meus rostos anteriores,
como a árvore tem os anéis da sua idade.
O que eu sou é a soma de todos esses rostos.
O espelho só vê o meu rosto mais recente,
mas eu conheço todos os anteriores
como a árvore tem os anéis da sua idade.
O que eu sou é a soma de todos esses rostos.
O espelho só vê o meu rosto mais recente,
mas eu conheço todos os anteriores
Poderá ser evocativo o sempre contemporâneo quadro Lição de Anatomia de Dr. Tulp (1632), do pintor flamengo Rembrandt (1606-1669). Uma metáfora do logos afectivo que subtrai o olhar à simplificação de uma linguagem de contra-posição do género crer para ver ou ver para crer? Esta metáfora parece expressar linguagens aparentemente
distintas: emotiva e racional, realista e idealista, especulativa e
prática, afectiva e inafectiva. Rembrandt não pinta apenas um possível
diálogo entre ciência/teologia, crer/saber, visível/invisível. Seria
igualmente evocativo o quadro de Caravaggio sobre a incredulidade de
Tomé. Mas a nosso ver, a metáfora provocativa de Rembrandt é mais
subtil, e coloca de algum modo em perspectiva o tema que nos propomos
abordar. Um outro modelo elucidativo deste diálogo em torno do humano
seria o soberbo filme Decálogo I do realizador poláco Krzysztof Kieślowski com a análise antropológica que lhe está subjacente.
Há no quadro de Rembrandt um realismo crítico e
uma fenomenologia transcendental, qual condição de possibilidade
aprioríca que des-vela o Ser e o abre ao sentido da existência.
O pintor flamengo imagina uma narrativa capaz de poetizar (fazer) a
diferença do «humano-que-é-comum» (Sequeri), apresentando-o como
mistério a ser desvelado, como acto de auto-conhecimento segundo o
famoso adágio délfico «conhece-te a ti mesmo». Ao quadro de
Rembrandt subjaz um significado denotativo/conotativo porque o «o corpo
que nós somos, mas que não somos a sua origem, é a nossa inscrição
originária no sentido da vida […] corpo que me faz comum a cada homem e
ao mesmo tempo me personaliza» (Manicardi). Na produção do significado e
do sentido da corporeidade originária tudo conta: o olhar, o sentir, o
respirar, o tocar, o amar, o pensar, o querer, o confiar, o crer, o
experimentar. O acesso à interioridade é mediado pelos afetos enquanto
modo de conhecer, não-arbitrário, não-subjectivístico. O processo
generativo implica as emoções, os afetos e as relações intra e inter
humanas: a consciência do Outro no sentimento de si, ou o sentimento
do Outro na consciência de si. Em certa medida «o conhecimento do outro
e do estrangeiro produz sofrimento que acompanha todo a modificação de
si. Sofrendo pela presença do outro e do estrangeiro aprende-se, tal
como alude o jogo de palavras em língua grega: páthein e máthein» (Moltmann).
Nem sempre a rigidez do discurso científico e
teológico deixa espaço para este jogo e para a metáfora evocativa que
acende a luz pática da fé (lumen gratiae/lumen fidei) na mente humana. Será impossível conjugar o amor intellectualis Dei spinosianocom o affectus/effectus amor Dei cristão? Rembrandt coloca o discurso científico/teológico, razão/ afeição, intellectus/affectus fidei
(não está o início da fé na afeição como afirmara Tomás de Aquino?) em
relação, na procura da verdade que existe no íntimo da existência
humana. A admiração, o estupor, diante do mistério humano, indica a
presença do Mistério que se faz presente na humana corporeidade. É
verdade que a metáfora não se dá sem o conceito, o significado e o
significante, que se revela no «corpo falante desde sempre já falado no
ventre materno» (Chauvet). Mas o sentimento /emoção da percepção que a
metáfora provoca em nós revela a transparência afectiva do logos.
Por detrás do estético, da obra enquanto tal, está toda uma
ressonância noético-afectiva que revela à consciência humana a
luminosidade do conceito, do pensamento, da ideia. Por isso, no quadro
de Rembrandt, não existe só racionalidade mas pathos/affectus dramático,
mistério e desejo, que abre ao humano um horizonte de confiança,
correspondente arquétipo da originária experiência humana, que se situa
sempre no desejo de conhecer.
Com esta metáfora in-vocativa e pro-vocativa,
Rembrandt propõe uma síntese da história do pensamento e da cultura
ocidental moderna. Uma hermenêutica interpretativa do mundo do seu
tempo ao nível das ciências da natureza e da nova compreensão biológica
do Homem, da Natureza e do Mundo. Esta metáfora permite-nos elaborar um
exercício hermenêutico sobre Lebenswelt actual do sujeito
humano, como «‘ser-no-mundo’». Ocultamento do mundo objectivamente
manipulável e desvelamento do mundo da vida, não manipulável» (Ricoeur).
Cientes desta necessidade des-velativa do saber, precisamos
de reflectir e colocar os pressupostos teológico-antropológicos da
originária estrutura consciente crente e da sua pro-afeição ontológica (consciência afectiva da alteridade). A teologia cristã não pode deixar de percorrer esse caminho de pensamento afectivo/afectado, de saber e de crer, que leva à descoberta da verdade última das coisas presente na realidade des-velada.
Na verdade a partir da imaginação humana podemos aceder à consciência
de uma época segundo o qual «as pessoas pensam, sentem e agem» (G.
Sans). O “espírito” de uma época com as suas emergências, expectativas e
contrariedades, ritos, normas, símbolos e o seu ethos.
É nesse sentido que nos move e comove a pergunta primordial sobre as condições de possibilidade do acto crente cons-ciente à luz das disposições actuais do ser humano. Pode, na verdade, a ordem dos afetos,
enquanto quadro constitutivo da consciência, elevar as emoções e os
sentimentos a um nível meta-biológico? Que entidades podem realizar
essa valorização? É possível consciência/sentimento de si sem a consciência/sentimento do outro? É ‘Deus que vem à ideia’ (E. Lévinas) auto-comunicando-se
livremente na história relacional dos humanos ou é a mente humana que
produz essa ideia com base em emoções/sentimentos configurados
culturalmente? Mas será que «tudo isto nos [falará] da inteligência dos
afetos e do timbre e do carácter emotivo da nossa inteligência, da
graciosa necessidade de viver em relações assinaladas por uma segura e
sustentável afabilidade e fiabilidade, isto é no espaço de uma
afinidade electiva entre Deus e o homem e entre nós seres humanos» (E.
Salmann)? Não é a «fé garantia das coisas que se esperam e certeza
daquelas que não se vêem» (Hb 11,1)?
O drama da existência do homem contemporâneo não é o de ver/desejar Deus mas de já não O sentir como
espírito incarnado e presente na história. Este não-sentir gera a
anafetividade anamnésica que nos afecta negativamente a todos. Recuperar
a linguagem da consciência crente por via da metáfora, é tornar o
conceito menos conotativo mas mais denotativo. A metáfora torna o real
inteligível. Como no quadro de Rembrandt, a metáfora potencia a
articulação de diversas linguagens que possibilitam a inteligência
humana de aceder à verdade e à consciência epocal. Gerar pequenos
mundos de vida, comunidades de sentido, segundo a narrativa para-bólica e sim-bólica
de Jesus de Nazaré, abrindo a consciência humana à sua origem
instituidora de sentido: à consciência crente/fiducial. Isto é imaginar
um cristianismo secular plausível sem nostalgia do passado nem medo do
presente mas pleno de confiança na justiça/verdade do Reino de Deus. Só
um cristianismo convertido à humildade sapiencial da Palavra terá a
credibilidade profética necessária diante dos sistemas contemporâneos
de desumanização (política, económica ou religiosa). «O Senhor é o
Espírito e onde está o Espírito do Senhor, existe liberdade» (2 Cor
3,17). Nesta abertura teológico-eclesial teremos muito aprender com as
novas linguagens da autenticidade como proposta fiducial para uma
pastoral mistagógica da cultura contemporânea.
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João Paulo Costa
Fonte: http://www.snpcultura.org/invocar_a_metafora_provocar_os_afetos.html
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