Marilena Chaui*
"Os jovens manifestantes de classe média que vivem nos
condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo
inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a
expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e
carentes)?"
"os jovens manifestantes de classe média que, no dia em
que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na
expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que
também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então,
que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação
(isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política
corrupta, como é típico da classe média?"
Observações preliminares
O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas
no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo,
embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns
às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da
tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com
relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o
tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e
celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas
considerações mais gerais a título de conclusão.
O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do
transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento
Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é
composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação
especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a
redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano
dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática
democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da
explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.
O inferno urbano
Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua
perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e
por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país
(desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções
bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são
justas, mas a perplexidade, não, desde que voltemos nosso olhar para um
ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da
vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos
anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais?
Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
– explosão do uso do automóvel individual:
a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a
cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros
individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse
sistema é capaz de resolver o problema;
– explosão imobiliária com
os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers,
que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além
de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas
sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
– aumento da exclusão social e da desigualdade
com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes
especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias
carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de
trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como
aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais,
pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da
vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;
– o transporte coletivo
indecente, indigno e mortífero. No caso de São Paulo, sabe-se que o
programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato,
até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de
trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada;
além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos
constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das
operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de
responsabilidade do governo estadual.
No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um
cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os
ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto,
feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão
envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades
da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são
extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que
os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para
ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa;
não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas
inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna
quase inevitável para trajetos menores.
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses
privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e
empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer
responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.
2. As manifestações paulistanas
A tradição de lutas
Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades
brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as
péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do
quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e
incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no
início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de
madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a
palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o
caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por
que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.
Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe
(sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares
tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no
Brasil pelos seguintes motivos:
1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais;
2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade;
3. introdução da prática da democracia participativa como condição da
democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos.
Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e
movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham
mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como
mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:
1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto
industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se
vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de
luta;
2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;
3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea,
fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas
próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por
isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a
“teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do
“empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o
isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de
sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações
guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização
horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas,
diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram uma forma de
convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de
manifestantes nas ruas.
O pensamento mágico
A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da
celebração desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios
de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas
postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o
aproximam dos procedimentos da midia:
a. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma
maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte
público;
b. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem
futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um
movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa
da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de
massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos
jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se
tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o
caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações
permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de
auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os
poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
c. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra
na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este
opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e,
portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que
usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que
os receptores dos meios de comunicação de massa.
A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para
tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer
acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a
magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo
difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação
imediata do desejo, sem qualquer mediação;
d. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de
uma ação própria da sociedade de massa, portanto, indiferente à
determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se
apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência
de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que,
efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e
político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram
apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos,
crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da
corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL
é constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para
assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de
origem.
Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos
políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os
militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados,
e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da
massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a
violência que condenaram na polícia.
A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:
a. no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
b. no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e
excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de
oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a
qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a
corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação
não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e
cooptação;
c. a crítica ao PT:
de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e
crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se
transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e
escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha
sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos
manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma
análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos,
qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado,
e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da
ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos
manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição
republicana e democrática.
Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica
aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem
ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os
partidos são corruptos por essência.
Os meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio
das funções do espaço público, como se não fossem empresas
capitalistas movidas por interesses privados.
Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles
endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles
aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia
a respeito da ética.
De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem
midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos
valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se
trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente
públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas
privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas
enquanto instituições republicanas.
A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma
política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de
uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os
partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões
que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as
comportas para a corrupção.
Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e
por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática
inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção,
garantam a participação, a representação e o controle dos interesses
públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção
democrática.
Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam
de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro
distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por
enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura)
ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros
para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das
metas dos governantes eleitos.
Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor
para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma
parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é
corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não
teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e
b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no
que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição
ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações
institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação
de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu
partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações
fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.
Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma
invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos
manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da
corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar.
E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as
imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de
esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de
comemoração da vitória do MPL.
Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.
Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que
finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping
center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas
e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High
School Brasil, da Rede Globo).
Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações
explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento
político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes
executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder
legislativo nos três níveis.
Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas,
modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador
por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma
nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o
poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de
maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta,
algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos
riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita
conservadora e reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de
juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de
classe social, que, entretanto, é clara na composição social das
manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma
parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não
experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos
manifestantes.
Com isso, podemos fazer algumas indagações.
Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos
condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo
inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a
expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e
carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que
fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na
expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que
também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então,
que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação
(isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política
corrupta, como é típico da classe média?
Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a
respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um
lastro histórico.
Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das
manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será
possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta
algumas perguntas:
1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno
urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de
montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem
não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas
sociais?
2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim
de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana,
participativa?
4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual
e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem
produzir os meios de comunicação?
Lastro histórico: quando Luiza Erundina,
partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a
justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São
Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada
pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos
orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos
programas sociais prioritários de seu governo.
Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota.
Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos
os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias
privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a
sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam
necessários para o subsídio.
Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o
IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os
imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com
outros recursos da Prefeitura.
Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais
domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm
funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a
transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente
fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.
Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou:
comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das
empresas, nos “bairros nobres” foram feitas manifestações contra o
“totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade
“negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei.
A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma
de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política,
sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada.
Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não
basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que
tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão
social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes
econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o
campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar
agindo fora da política e contra ela.
Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos
manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia
política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil,
colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que
organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.
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* Marilena Chaui, filósofa e professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em artigo publicado por Viomundo, 27-06-2013.
Fonte: IHU on line, 05/07/2013
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