sexta-feira, 5 de julho de 2013

Quem atribui sentido ao que acontece em nossa volta?

José Luiz Quadros de Magalhães *

"O sistema jurídico que construímos não resolve os problemas, não resolve os conflitos. O sistema jurídico que construímos foi criado para conservar e reagir às mudanças não permitidas. A "democracia" majoritária fundada na ideia da vitória de um melhor argumento afasta os argumentos derrotados, oculta a diversidade e condena o derrotado ao ocultamento. O problema é que esta "democracia" não funciona sobre conflitos de argumentos uma vez que a busca da vitória de seu projeto, ideia, partido, interesse, argumento, não permite que se escute os argumentos dos outros. Não se escuta o outro para aprender com o outro e construir novos argumentos. O que ocorre é que quando escuto o outro, escuto com a finalidade de destruir o argumento do outro"

O filosofo esloveno Slavoj Zîzek nos alerta para o enorme poder que tem aqueles que podem construir o significado das palavras e dos fatos, e, lógico, chegar até um numero expressivo (gigantesco) de pessoas. Este é o papel da grande mídia: todo o tempo, este poder, concentrado nas mãos de poucos grupos econômicos, procura mostrar às pessoas, o significado do que ocorre, o significado de palavras (como democracia, direitos humanos, desenvolvimento), atribuindo sentidos e condicionando a percepção de um grande numero de pessoas sobre o que acontece no mundo. Enfim, a grande mídia pretende construir o nosso senso comum, mas, felizmente o seu poder tem limites, e hoje, as redes sociais e a mídia alternativa cuida de evitar o poder total sobre nossas compreensões. Não sejamos, entretanto, inocentes.

Tudo é muito bem controlado, cada vez mais. Os espaços alternativos são estreitamente vigiados, e hoje, as grandes empresas, que financiam parte do poder (em em alguns casos todo ele), podem saber tudo sobre nós. Com o aumento do dinheiro de plástico (cartões de débito e de crédito) as empresas e o estado podem saber o que fazemos, os filmes que assistimos, os livros que lemos, o que comemos e bebemos, quando e onde. Não é ficção, é real e de conhecimento de todos, que prestam um pouco de atenção no mundo.

Quero falar sobre as manifestações públicas que tomaram as ruas de diversas cidades do Brasil, da luta pela atribuição de sentidos pela mídia e pelo poder econômico, assim como por nós, todos, que participamos e que percebemos sua complexidade e diversidade, marcado, entretanto, por um sentimento comum: um enorme mal-estar com o que estamos vivendo pelo mundo afora. Há um mal-estar que não vai passar com o atendimento de nenhuma reivindicação pontual, e isto pode ser perigoso se não entendido. Precisamos pensar sobre o nosso mal-estar. Sobre o que há de comum no mal-estar de cada um, nas grandes cidades e nas pequenas; nos que praticam violência e aqueles que recusam a violência; na esquerda e na direita; entre jovens e não tão jovens; entre todos, o que há em comum neste mal-estar? Um processo de psicanálise coletiva, um encontro com nossa história (talvez, melhor, estória), a busca do recalcado, do encoberto, do que realmente está nos matando mas não somos capazes de entender, perceber, ou, muitas vezes, não temos coragem de dizer, as vezes mesmo de pensar, talvez porque fomos proibidos de pensar determinados pensamentos.

O movimento começa com uma reivindicação pontual: a luta pela redução dos valores das passagens de ônibus. Em uma cidade (em muitas cidades) onde as pessoas que trabalham são obrigadas a permanecer em ônibus durante horas, em um transito infernal, em uma sociedade com quase nenhuma solidariedade, muita competição e egoísmo, a vida pode ser um inferno. É claro que a passagem não é o problema, e o atendimento a esta reivindicação não irá atenuar o mal estar. Outras e outras reivindicações virão, mas a razão do mal-estar não será contemplada.

Como o mal-estar não passará, sem desocultar os seus reais motivos, outras reivindicações surgem, entre genéricas e especificas, as manifestações começam a revindicar a rejeição de emenda constitucional que retira poderes do Ministério Público; a crítica a grande mídia; melhoria na educação e saúde; e mais várias outras bandeiras que representam um incomodo imediato, de fácil identificação. Seria a ideia de "investimento" da psicanálise: o "investimento" em um incomodo aparente irá sempre ocultar o que realmente causa o mal-estar, que permanecerá encoberto até o momento em que tivermos coragem de investigar, descobrir e enfrentar o que está oculto em um lugar seguro, desconhecido. Estamos proibidos de pensar no que está oculto e nos mata sem sabermos.

A discussão e a luta por estas demandas imediatas, e a constatação recorrente de que o problema efetivamente não está ali, ameaça os interesses e a estabilidade de um sistema socioeconômico que se sustenta no ocultamento de suas reais razões. Daí, a reação dos que se beneficiam deste sistema. A indefinição e a pluralidade de pautas e reivindicações e a incapacidade de percepção da real causa do mal-estar, facilita o trabalho da reação.

O movimento difuso permite as infiltrações, não só de pessoas, mas principalmente de ideias, bandeiras, demandas. Começa a ação determinada de resignificação das manifestações, especialmente na cabeça daqueles, que insatisfeitos, manifestam, mas não sabem muito bem porque. Estas pessoas viram massa de manobra. A insatisfação difusa se expressa em uma raiva sem direção. Esta direção pode ser dada por quem tiver maior capacidade de fazê-lo. Massa de manobra, e não apenas, pois os que se recusam a ser utilizados como tal, não terão suas imagens mostradas na TV.

Estratégias antigas, fascistas, são reutilizadas: a divisão da população entre amigos e inimigos; a negação da diversidade, dos partidos políticos e a defesa da unidade fundada no nacionalismo (nazismo); de outro lado a simplificação do complexo quadro, na nomeação do inimigo e sua caracterização como não pessoa: vândalos ou mesmo terroristas. As pessoas são reduzidas e julgadas por um nome coletivo que lhes exclui a humanidade.

A questão é que precisamos descobrir este mal-estar, que desencadeou o processo, para evitar o seu uso por quem tem o poder para fazê-lo, e, para isto, no lugar de simplesmente apoiar isto ou aquilo, precisamos fazer as perguntas e buscar com coragem as respostas:

- A questão não é apenas condenar policiais infiltrados que incentivam a violência mas porque isto ainda é feito e porque ainda encontramos pessoas capazes de fazer isto.

- A questão não é apenas condenar o ativista de extrema-direita que queima e quebra, agride e odeia, mas saber o porquê de tanto ódio e porque este ódio ganhou esta direção.

- A questão não é apenas denunciar as práticas autoritárias, ilegais e inconstitucionais das policias do Rio, Minas e São Paulo (e outras mais), mas entender porque estas práticas ainda existem mesmo após 25 anos do fim da ditadura empresarial-militar que atrasou este país.

- A questão não é apenas constatar mas entender porque, em Minas Gerais, a polícia que deveria proteger o cidadão no seu direito de se expressar (um direito constitucional), agride e proíbe o exercício de direitos constitucionais, sabendo que esta violência só irá gerar manifestações mais violentas.

- A questão não é perceber tudo isto, mas entender porque, ainda hoje, pessoas são capazes de agir contra elas mesmas, contra os interesses de pessoas que ela ama, contra os interesses de pessoas que vivem como elas e que vem dos mesmos lugares, defendendo interesses que não são os seus, e pior são contra os seus.

- A questão não apenas perceber, mas entender porque que as pessoas, embora tenham mais capacidade de consumo hoje do que no passado, continuam infelizes, mergulhadas em um mal-estar crescente.

Se não formos capazes de entender os porquês (estes e muitos outros), dificilmente sairemos das armadilhas que o poder constrói para evitar que consigamos construir uma sociedade que tenha espaço para todos e cada um. A democracia é apenas tolerada por aqueles que têm privilégios a proteger. Toda vez que tentamos e tentarmos romper com estes privilégios, a democracia será rompida, com o apoio de muitos dos oprimidos. Precisamos entender como se reproduzem os "cães de guarda" do sistema. Aqueles que defendem os interesses que são contra eles mesmos.

O processo que se iniciou não tem volta. Não sabemos os resultados mas podemos influenciar nele. Fazemos parte deste processo. Mesmo que as manifestações diminuam, a insatisfação revelada continuará latente e se manifestará diariamente de várias formas (aliás como já vinha ocorrendo sem que as pessoas dessem o devido valor a estas manifestações). Podem dizer que mal-estar sempre haverá, mas não estou dizendo de qualquer mal-estar, estou me referindo a um mal-estar que Freud já chamara atenção: há um mal-estar na civilização ocidental, o sistema moderno está acabando e o que as pessoas colocaram no lugar não está claro, mas há sinais e tentativas de alternativas pelo mundo a fora e entre nós.

O sistema jurídico que construímos não resolve os problemas, não resolve os conflitos. O sistema jurídico que construímos foi criado para conservar e reagir às mudanças não permitidas. A "democracia" majoritária fundada na ideia da vitória de um melhor argumento afasta os argumentos derrotados, oculta a diversidade e condena o derrotado ao ocultamento. O problema é que esta "democracia" não funciona sobre conflitos de argumentos uma vez que a busca da vitória de seu projeto, ideia, partido, interesse, argumento, não permite que se escute os argumentos dos outros. Não se escuta o outro para aprender com o outro e construir novos argumentos. O que ocorre é que quando escuto o outro, escuto com a finalidade de destruir o argumento do outro.

Entretanto, o problema é que, nem mesmo isto ocorre. O parlamento se transformou em um mercado, em um espaço de negociações para realização de desejos variados e não para discussão de argumentos racionais. A "democracia" majoritária funciona sob a lógica do "roma locuta, causa finita", ou seja, quando o império fala a controvérsia acaba. E acaba não pela construção de um consenso, mas pela força do império, o que significa que o conflito, a causa continua latente. A maioria disse, a minoria acata, questão superada.

Superada? Claro que não. Superada no processo legislativo, no processo eleitoral, mas não no processo social, nos conflitos reais de poder e interesse. A mesma lógica se aplica ao judiciário. Os conflitos são levados até o judiciário, as partes argumentam, petição inicial, contestação, recurso, razões, contrarrazões, toda a lógica de desenvolvimento do processo judicial impede o consenso, incentiva a competição. Ao final, o "império" (o estado, o juiz) "diz" e, logo, a "causa" acabou. Acabou? Claro que não, o conflito permanece latente, as pessoas insatisfeitas, vencedores e vencidos não se satisfazem, mas para o processo judicial o conflito acabou, entretanto, na realidade não, ele permanece latente para explodir de insatisfação um dia. Da mesma forma esta sociedade emocional e não reflexiva, superficial, lida com seus problemas e incômodos. Se aumenta a criminalidade, no lugar de buscar entender as razões são buscadas simplesmente punições, como se a vida do nomeado "adolescente infrator" já não fosse uma punição constante. No lugar de enfrentar o problema para solucioná-lo, não, o que ocorre é aumentar o conflito com mais punição. Este mecanismo, esta postura se alastra: não pensamos em entender o conflito, em solucioná-lo, mas, atacá-lo, incentivando o conflito, aumentando o mal-estar.

A compreensão do mal-estar pode nos levar a inversão da proposta: "Causa locuta, Roma finita". Mas para isto precisamos entender o mal-estar e a partir de então construir uma causa comum. Isto é urgente.
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*   Professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Fonte: IHU on line, 05/07/2013
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