André Lara Resende*
Na tentativa de interpretar o protesto das ruas nas grandes cidades
brasileiras, há uma natural tentação de fazer um paralelo com os
movimentos similares nos países avançados, sobretudo da Europa, mas
também nos EUA - Occupy Wall Street - assim como com os da chamada
Primavera Árabe. As condições objetivas são, contudo, muito distintas. A
Primavera Árabe é um fenômeno de países totalitários, onde não há
representação democrática. Não é o caso do Brasil. Na Europa, sobretudo
nos países mediterrâneos periféricos mais atingidos pelos efeitos da
crise financeira de 2008, houve uma drástica piora das condições de
vida. O desemprego, especialmente entre os jovens, subiu para níveis
dramáticos. Mais uma vez, não é o caso do Brasil.
Nem os críticos mais radicais ousariam argumentar que o Brasil de
hoje não se enquadra nos moldes das democracias representativas do
século XX. Podem-se culpar os desacertos da política econômica nos
últimos seis anos. Embora devam ficar mais evidentes daqui para a
frente, os efeitos negativos da incompetência da política econômica só
muito recentemente se fizeram sentir. Fato é que, desde a estabilização
do processo inflacionário crônico, houve grandes avanços nas condições
econômicas de vida dos brasileiros. Nos últimos 20 anos, houve ganho
substancial de renda entre os mais pobres. Ao contrário do que ocorreu
em outras partes do mundo, até mesmo nos países avançados, a
distribuição de renda melhorou. O desemprego está em seu mínimo
histórico.
É verdade que a inflação, especialmente a de alimentos, que se faz
sentir mais intensamente pelos assalariados, está em alta. Por mais
consciente que se seja em relação aos riscos, políticos e econômicos, da
inflação, é difícil atribuir à inflação o papel de catalisadora do
movimento das ruas nas últimas semanas. Só agora a taxa de inflação
superou o teto da banda - excessivamente generosa, é verdade - da meta
do Banco Central.
Os dois elementos tradicionais da insatisfação popular - dificuldades
econômicas e falta de representação democrática - definitivamente não
estão presentes no Brasil de hoje. Inflação, desemprego, autoritarismo e
falta de liberdade de expressão não podem ser invocados para explicar a
explosão popular. O fenômeno é, portanto, novo. Procurar interpretá-lo
de acordo com os cânones do passado parece-me o caminho certo para não o
compreender.
O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado diante das
manifestações das últimas semanas. O paralelo se justifica, pois maio de
68 é o paradigma do movimento sem causas claras nem objetivos bem
definidos, uma combustão espontânea surpreendente, que ocorre em
condições políticas e econômicas relativamente favoráveis. Movimento
que, uma vez detonado, canaliza um sentimento de frustração difusa - um
"malaise"- com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em
geral.
A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é a
internet e as redes sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida
pública francesa, a insatisfação difusa poderia ter sido diagnosticada,
ao menos entre os universitários parisienses. No Brasil de hoje, a
irritação difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes
sociais. O movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar
transbordasse do virtual para a realidade das ruas. Tanto os
universitários franceses de 68, quanto os internautas do Brasil de hoje,
não representam exatamente o que se poderia chamar de as massas ou o
povão, mas funcionam igualmente como sensores e catalisadores de
frustrações comuns.
Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de hoje, que transbordou da internet para a realidade e levou a população às ruas?
Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais evidente, é uma
crise de representação. A sociedade não se reconhece nos poderes
constituídos - Executivo, Legislativo e Judiciário - em todas suas
esferas. O segundo é que o projeto do Estado brasileiro não corresponde
mais aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do governo, é
importante que se note, pois a questão transcende governos e oposições.
Este hiato entre o projeto do Estado e a sociedade explica em grande
parte a crise de representação.
O Estado brasileiro mantém-se preso a um projeto cuja formulação é do
início da segunda metade do século passado. Um projeto que combina uma
rede de proteção social com a industrialização forçada. A rede de
proteção social inspirou-se nas reformas das economias capitalistas da
Europa, entre as duas Grandes Guerras, reforçadas após a crise dos anos
1930. Foi introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização
do mercado de trabalho, baseado no modelo da Itália de Mussolini. A
industrialização forçada através da substituição de importações,
introduzida por Juscelino Kubitschek nos anos 1950, e reforçada pelo
regime militar nos anos 1970, tem raízes mais autóctones. Suas origens
intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950,
que defendia a ação direta do Estado, como empresário e planejador, para
acelerar a industrialização.
Não nos interessa aqui fazer a análise crítica do projeto
desenvolvimentista que, com altos e baixos, aos trancos e barrancos,
cumpriu seu papel e levou o país às portas da modernidade neste início
de século. Basta ressaltar que o desenvolvimentismo, em seus dois
pilares - a industrialização forçada e a rede de proteção social -
dependem da capacidade do Estado de extrair recursos da sociedade.
Recursos que devem ser utilizados para financiar o investimento público e
os benefícios da proteção social.
Diante da baixa taxa de poupança do setor privado e da precariedade
da estrutura tributária do Estado, a inflação transferiu os recursos da
sociedade para o Estado, até que nos anos 1980 viesse a se tornar
completamente disfuncional. Com a inflação estabilizada, a partir do
início dos anos 1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via
fiscal também os recursos que extraía através do imposto inflacionário. A
carga fiscal passou de menos de 15% da renda nacional, no início dos
anos 1950, para em torno de 25%, nas décadas de 1970 a 90, até saltar
para os atuais 36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem
hoje uma carga tributária comparável, ou mesmo superior, à das economias
mais avançadas.
O projeto do PT no governo revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do
nacional- desenvolvimentismo
Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o
Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue
entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe
menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional.
Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da
sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se
expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo,
para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro
de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo. Os sinais
dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e
analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e
inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e
frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.
O Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não
corresponde mais ao que deseja a sociedade. O modelo desenvolvimentista
do século passado tinha dois pilares. Primeiro, a convicção de que a
industrialização era o único caminho para escapar do subdesenvolvimento.
Países de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar alcançar
o estágio de desenvolvimento das economias industrializadas. Segundo, a
convicção de que o capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em
três dimensões: para estabilizar as crises cíclicas das economias de
mercado; para prover uma rede de proteção social; e, no caso dos países
subdesenvolvidos, para liderar o processo de industrialização acelerada.
As duas primeiras dimensões da ação do Estado são parte do consenso
formado depois da crise dos anos 1930. A terceira decorre do sucesso do
planejamento central soviético em transformar uma economia agrária,
semifeudal, numa potência industrial em poucas décadas. A proteção
tarifária do mercado interno, com o objetivo de proteger a indústria
nascente e promover a substituição de importações, completava o cardápio
com um toque de nacionalismo.
O nacional- desenvolvimentismo, fermentado nos anos 1950, teve sua
primeira formulação como plano de ação do governo na proposta de Roberto
Simonsen. Embora sempre combatido pelos defensores mais radicais do
liberalismo econômico, como Eugênio Gudin, autor de famosa polêmica com
Roberto Simonsen, e posteriormente por Roberto Campos, foi adotado tanto
pela esquerda, como pela direita. Seu período de maior sucesso foi
justamente o do "milagre econômico" do regime militar.
Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna definitivamente
disfuncional. As sucessivas e fracassadas tentativas de estabilização
passam a dominar o cenário econômico. Com a estabilização do real, a
partir da segunda metade da década de 1990, ainda com algum
constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimentismo já não
fazia sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia
estar em busca de novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da
expressão desse anseio de mudança.
Nos dois primeiros anos do governo Lula, a política econômica foi
essencialmente pautada pela necessidade de acalmar os mercados
financeiros, sempre conservadores, assustados com a perspectiva de uma
virada radical à esquerda. A partir daí, o PT passou a pôr em prática o
seu projeto. Um projeto muito diferente do que defendia enquanto
oposição. O projeto do PT no governo, frustrando as expectativas dos que
esperavam mudanças, muito mais do que o aparente continuísmo dos
primeiros anos do governo Lula, revelou-se flagrantemente retrógrado. É
essencialmente a volta do nacional-desenvolvimentismo, inspirado no
período em este que foi mais bem-sucedido: durante regime militar. A
crise internacional de 2008 serviu para que o governo abandonasse o
temor de desagradar aos mercados financeiros e, sob pretexto de fazer
política macroeconômica anticíclica, promovesse definitivamente a volta
do nacional-desenvolvimentismo estatal.
O PT acrescentou dois elementos novos em relação ao projeto
nacional-desenvolvimentista do regime militar: a ampliação da rede de
proteção social, com o Bolsa Família, e o loteamento do Estado. A
ampliação da rede de proteção social se justifica, tanto como uma
inciativa capaz de romper o impasse da pobreza absoluta, em que, apesar
dos avanços da economia, grande parte da população brasileira se via
aprisionada, quanto como forma de manter um mínimo de coerência com seu
discurso histórico. Já a lógica por trás do loteamento do Estado é
puramente pragmática. Ao contrário do regime militar, que não precisava
de alianças difusas, o PT utilizou o loteamento do Estado, em todas suas
instâncias, como moeda de troca para compor uma ampla base de
sustentação. Sem nenhum pudor ideológico, juntou o sindicalismo de suas
raízes com o fisiologismo do que já foi chamado de Centrão, atualmente
representado principalmente pelo PMDB, no qual se encontra toda sorte de
homens públicos, que, independentemente de suas origens, perderam suas
convicções ao longo da estrada e hoje são essencialmente cínicos.
Há ainda um terceiro elemento do projeto de poder do PT. Trata-se da
eleição de uma parte do empresariado como aliada estratégica. Tais
aliados têm acesso privilegiado ao crédito favorecido dos bancos
públicos e, sobretudo, à boa vontade do governo, para crescerem,
absorverem empresas em dificuldades, consolidarem suas posições
oligopolísticas no mercado interno e se aventurarem internacionalmente
como "campeões nacionais".
A combinação de um projeto anacrônico com o loteamento do Estado
entre o sindicalismo e o fisiologismo político, ao contrário do
pretendido, levou à sobrevalorização cambial e à desindustrialização. Só
foi possível sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto durou
a alta dos preços dos produtos primários, puxados pela demanda da
China. A ineficiência do Estado nas suas funções básicas - segurança,
infraestrutura, saúde e educação - agravou-se significativamente.
Ineficiência realçada pela redução da pobreza absoluta na população, que
aumentou a demanda por serviços de qualidade.
Loteado e inadimplente em suas funções essenciais, enquanto absorvia
parcela cada vez maior da renda nacional para sua própria operação, o
Estado passou a ser visto como um ilegítimo expropriador de recursos.
Não apenas incapaz de devolver à sociedade o mínimo que dele se espera,
mas também um criador de dificuldades. A combinação de uma excessiva
regulamentação de todas as esferas da vida, com a truculência e a
arrogância de seus agentes, consolidou o estranhamento da sociedade. Em
todas as suas esferas, o Estado deixou de ser percebido como um aliado,
representativo e prestador de serviço. Passou a ser visto como um
insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens para os
que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para
o resto da população. O contraste da realidade com o ufanismo da
propaganda oficial só agravou o estranhamento e consolidou o divórcio
entre a população e os que deveriam ser seus representantes e
servidores.
A insatisfação com a democracia representativa não é um fenômeno
exclusivamente brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda não estão
claras, mas é possível que o modelo de representação democrática,
constituído há dois séculos para sociedades menores e mais homogêneas,
tenha deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7 bilhões de
pessoas, e precise ser revisto. O debate público deslocou-se das
esferas tradicionais da política para a internet e as redes sociais.
Ameaçada pelo crescimento da internet e habituada ao seu papel de agente
da política tradicional, a mídia não percebeu que o debate havia se
deslocado.
No caso brasileiro, perplexa com sua aparente falta de repercussão e
pressionada financeiramente pela competição da internet, uma parte da
mídia desistiu do jornalismo de interesse público e passou a fazer um
jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que resistiram, cederam, em
maior ou menor escala, à lógica dos escândalos. Foram incapazes de
compreender a razão da sua falta de repercussão, pois não se deram conta
de que o público e o debate haviam se deslocado para a internet.
Surpreendida pelo movimento de protestos, num primeiro momento, a mídia
não foi capaz de avaliar a extensão da insatisfação. Transformou-se ela
própria em alvo da irritação popular. Em seguida, aderiu sem convencer,
sempre a reboque do debate e da mobilização através da internet. A favor
da mídia, diga-se que ninguém foi capaz de captar a insatisfação
latente antes da eclosão do movimento das ruas. As pesquisas apontavam,
até muito recentemente, grande apoio à presidente da República,
considerada praticamente imbatível, até mesmo por seus eventuais
adversários nas próximas eleições. Nenhuma liderança soube captar e
expressar o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento
novo: a internet viabiliza a mobilização antes que surjam as
lideranças. Tanto as possibilidades como os riscos são novos.
O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo das
economias capitalistas avançadas com o produtivismo soviético. Ambos
pressupõem que o crescimento material é o objetivo final da atividade
humana. Aí está a essência de seu caráter anacrônico. Os avanços da
informática permitiram a coleta de um volume extraordinário de
evidências sobre a psicologia e os componentes do bem-estar. A relação
entre renda e bem-estar só é claramente positiva até um nível
relativamente baixo de renda, capaz de atender às necessidades básicas
da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está associado ao que se
pode chamar de qualidade de vida, cujos elementos fundamentais são o
tempo com a família e os amigos, o sentido de comunidade e confiança nos
concidadãos, a saúde e a ausência de estresse emocional.
Os estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma forma ou
de outra, mais ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa
insaciabilidade de bens materiais advém do fato de que o bem-estar que
nos trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-estar, precisamos de
mais e novas aquisições. O consumismo material tem elementos parecidos
com o do uso de substâncias entorpecentes que causam dependência física e
psicológica.
No mundo todo, a população parece já ter intuído a exaustão do modelo
consumista do século XX, mas ainda não encontrou nas esferas da
política tradicional a capacidade de participar da formulação das
alternativas. Apegada a fórmulas feitas, a política continua pautada
pelos temas e objetivos de um mundo que não corresponde mais à realidade
de hoje. As grandes propostas totalizantes já não fazem sentido. O
nacionalismo, a obsessão com o crescimento material, a ênfase no consumo
supérfluo, os grandes embates ideológicos, temas que dominaram a
política nos últimos dois séculos, perderam importância. Hoje, o que
importa são questões concretas, relativas ao cotidiano, questões de
eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.
É significativo que os protestos no Brasil tenham começado com a
reivindicação do passe livre nos transportes públicos urbanos. A questão
da mobilidade nas grandes metrópoles é paradigmática da exaustão do
modelo produtivista-consumista. A indústria automobilística foi o pilar
da industrialização desenvolvimentista e o automóvel o símbolo supremo
da aspiração consumista. O inferno do trânsito nas grandes cidades, que
se agrava quanto mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a
expressão máxima da completa inviabilidade de prosseguir sem uma revisão
profunda de objetivos. Ao que parece, a sociedade intuiu a falência do
projeto do século passado antes que o Estado e aqueles que deveriam
representá-la - governo e oposição, Executivo, Legislativo e imprensa -
tenham se dado conta de que hoje trabalham com objetivos anacrônicos.
A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de
uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo
desenvolvimento, não mais baseado exclusivamente no crescimento do
consumo material, mas na qualidade de vida. Para isso, é preciso que
surjam lideranças capazes de exprimir, formular e executar o novo
desenvolvimento.
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* André Lara Resende é economista. Este texto será apresentado
na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o filósofo Marcos
Nobre, que ocorre neste sábado.
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