João Ubaldo Ribeiro*

Uma vez uma repórter me entrevistou para uma matéria, que não sei nem
se saiu, sobre a esquisitíssima variedade de gente, à qual pertenço,
que não tem celular. Acho que ela foi embora sem se conformar. Os
meninos do futuro próximo, claro, receberão implantes de chips de
celulares e terão seus cérebros conectados ao wi-fi municipal, serviço
obrigatório para qualquer prefeitura. Diante desta perspectiva, é normal
que, num mundo em que, cada vez mais, as pessoas se tornam apêndices de
seus iPhones, tablets, óculos Google e similares, a moça estranhe um
maluco que persiste em não ter celular. Pelo menos eu lhe devia fornecer
alguma explicação ideológica ou psicológica, tais como pertencer a um
aguerrido grupo de budistas ativistas e ter delírio de perseguição ou
fobia por qualquer novidade eletrônica.
Que eu saiba, não é nada disso. Não tenho raiva nenhuma de aparelhos
eletrônicos, trabalho no computador até com certa proficiência e fui um
dos primeiros escritores brasileiros a usar um processador de texto, no
tempo em que nem internet havia e um HD de um (sic) megabyte, chamado de
"winchester", era considerado uma extravagância de milionários
americanos e talvez mentira de viajantes. De fato, nunca fui muito de
falar ao telefone e pode ser que tenha uns dois traumas de infância. O
telefone da família, quando moramos em Aracaju, ficava no corredor de
nosso casarão, ocupando bastante espaço. O aparelho era uma grande caixa
preta com manivela e, embaixo, duas pilhas dessas de lanterna, só que
enormes. Eu achava que aquilo ia explodir e preferia evitar usar o
telefone. Minha mãe, que era baiana (em Salvador, nessa época, já havia
telefones automáticos de quatro números!), adorava.
- Alô! Meia-três-um! - cantarolava ela, atendendo a uma chamada e dando o nosso número.
- Ih, lá vai mamãe - pensava eu, aguardando a explosão.
É possível, mas, de uns tempos para cá, olhando em torno, me convenci
de que a razão para eu não querer celular é que, até hoje, nunca
precisei, mas tenho certeza de que, no dia em que tiver um, não vou
conseguir passar sem ele dentro de poucos dias. Daí para ingressar sem
retorno num mundo - este, sim, muito louco - a que me recuso a
pertencer, o mundo dos viciados e dependentes dos celulares, é um passo a
que não quero arriscar-me. Acho que a gente nem nota mais as maluquices
que esse negócio gerou, desde a obsessão em conhecer cada um dos
milhares de aplicativos oferecidos e em ver sempre que mais está sendo
oferecido e que perspectivas se abrem nesse cipoal infinito, à
consolidação do que parece se delinear no futuro, a Era da
Promiscuidade. Acabou-se a intimidade, até o recato e o pudor são
valores do passado, e o celular deixa isto muito visível, se não for um
dos responsáveis principais.
No tempo do telefone fixo, procurava-se uma certa discrição, quando,
mesmo em casa, se conversava sobre um assunto íntimo ou sigiloso. Mas o
celular acabou com isso e hoje, em elevadores, salas de espera, filas,
ônibus, corredores de avião ou onde mais se aglomere gente, partilhamos
de segredos e confidências antes mantidos a sete chaves. Isso, no
Brasil, é ainda agravado por conexões péssimas, que obrigam os
interlocutores a gritar. Como na história (mudo os nomes, claro) do
Maurício, amante de uma jovem senhora sentada quase a meu lado, na sala
de espera do oculista. Maurício, um patente sem-vergonha, que não
somente falhara em sua promessa de largar a mulher, Aninha, para viver
com Eunice (a jovem amante), como paquerara com sucesso a irmã mais nova
de Eunice, a Clarice, aquela traíra de carinha inocente, o que tinha de
lourinha, tinha de falsa, procurando o homem da irmã até no escritório.
A reprovação da conduta solerte de Maurício e a solidariedade geral
podiam ser sentidas quase palpavelmente, pelo menos em todo o público
feminino da plateia. Entre os homens, creio ter percebido em alguns um
traçozinho de inveja do Maurício. Daqui a pouco, esse tipo de coisa se
estende a todo convívio social e a promiscuidade passa a ser normal, ou
até mesmo esperada.
À mesa dos botecos, por vezes quase sem fôlego, alguns tripulam
simultaneamente dois ou três celulares, ou um celular e um tablet. Um
problemazinho encontrado reflete-se em suas feições, subitamente
crispadas e ansiosas, quase em pânico. Franzem o rosto, mordem os
lábios, movimentam freneticamente os dedos pela tela e, afinal, uma luz
ilumina seu rosto, fim do tormento: ele está em linha, afinal, não fora
do ar, como temia. Outro dia, num aeroporto, uma moça, por sinal muito
bonitinha, sentou-se à minha frente e passou a falar no celular, sem
levar o aparelho ao ouvido, mas conversando como se estivesse diante de
uma pessoa. Falava, falava e, quando desligava, imediatamente fazia nova
ligação. Nas poucas vezes em que não conseguiu completar alguma e teve
que ficar sem falar por um minuto ou dois, dava para ver sua angústia,
parecia que ia perder o fôlego ou se atirar lá embaixo, devia ser
insuportável, coitadinha.
E tudo o que se faz agora é fotografado, gravado ou filmado. Não
bastam as câmeras de segurança que daqui a pouco estarão em toda parte.
Os celulares não perdoam nada e, mesmo à distância, podem documentar o
que alguém pense que está fazendo sem que ninguém veja ou saiba. Por
certas conversas que eu tenho ouvido, também já fazem parte do
equipamento sexual auxiliar - ou mesmo propulsor, quem sabe - de alguns.
Antigamente, fazer certas fotos ou, pior ainda, filmes, era difícil,
tinha-se que usar uma Polaroid ou coisa assim. Hoje a alta definição
está ao alcance de todos e esse documentarismo peralta entrou em voga, é
uma curtição especial. Claro, vai tudo parar na internet, é isso mesmo,
é o futuro. No futuro, só existirá a internet.
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* Escritor.
Fonte: Estadão on line, 17/11/2013
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