quarta-feira, 31 de maio de 2017

Lucia Avelar: "O movimento feminista no Brasil é o mais organizado da América Latina"

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Lucia Avelar 
 
Em meados da década de 2000, a América do Sul observou um fenômeno interessante e inédito. Em um continente marcado pela desigualdade de gênero e pela sub-representação das mulheres na política, pela primeira vez, três mulheres foram alçadas à presidência em seus países. A Argentina elegeu Cristina Kirchiner, o Chile, Michelle Bachelet e, o Brasil, Dilma Rousseff.

Para Lucia Avelar, pós-doutora em Ciência Política pela universidade de Yale, não se tratou de uma coincidência, mas de um percurso histórico trilhado pelas mulheres e pelo movimento feminista nesses países. Do insight, nasceu o livro 50 anos de feminismo - Argentina, Brasil e Chile (Edusp), que se debruça sobre a comparação das transformações de gênero nos países que atravessaram períodos autoritários e elegeram mulheres para a presidência.

A entrevista é de Tory Oliveira, publicada por CartaCapital, 31-05-2017.

Eis a entrevista.

Como surgiu o interesse de debruçar-se sobre a história do movimento feminista na Argentina, no Brasil e no Chile?
 Em um certo momento, mais ou menos entre 2012 e 2014, havia na América do Sul nesses países três mulheres presidentes, a Cristina Kirchner na Argentina, a Dilma no Brasil e a Michelle Bachelet no Chile. Não nos parecia uma coincidência, havia fatores históricos que levaram a esse fato que era a Cristina, a Dilma e a Bachelet governarem concomitantemente.

Escolhemos o marco de 50 anos porque, na verdade, houve um movimento da juventude urbana, não só no Brasil, que antecederam, de algum modo, as ditaduras latino-americanas. Quando elas se instalaram, essa juventude aderiu aos movimentos contra o regime e, as mulheres, aderiram primeiro como pessoas que encontraram movimentos políticos, especialmente os de esquerda. Nessa experiência, depois, com golpe, elas foram para a clandestinidade, tiveram experiência com os colegas homens nesses movimentos. O que elas concluíram, depois de serem presas, exiladas e torturadas, é a existência, sim, de uma hierarquia de gênero mesmo nesses espaços de esquerda.

Quais foram as consequências dessa conclusão?
Elas tomaram a consciência de que alguma coisa precisaria ser mudada na relação homem-mulher. Algumas delas foram para o exterior, principalmente para a Europa, onde estudaram. A Europa foi decisiva para criar um conhecimento sobre as relações de gênero. Quando elas voltaram, viram que os nossos movimentos de mulheres e feministas ainda tinham muito o que fazer.

Quando elas voltaram ao Brasil, deram o passo, importantíssimo, da transição entre uma militância política e feminista. Aí vem toda a história. Foi um momento de ebulição enorme, entre o final dos anos 70 e os 80, de uma transformação cultural, de uma visão de mundo mesmo, das mulheres e de seu papel na sociedade, na política, na família e nas mídias. Porque em tudo havia uma hierarquia: os homens nos cargos de poder e as mulheres no operacional. Assim era no Judiciário, nos sindicatos e até em áreas mais abertas, como a universidade, não havia mulheres reitoras.

Acho que esse livro mostra uma história de conquistas e do quanto nós conseguimos caminhar e ainda que há muito por fazer. Por exemplo, no dia do lançamento do livro, uma alegria enorme que tivemos foi ver muitos jovens, muitos. Muitas mulheres jovens, mas também homens que hoje já têm uma visão das relações de gênero muito diferente e que estão mais incorporados culturalmente nessa mudança que é estrutural.

Nas novas gerações, o acesso ao feminismo vem por meio da Internet e do Facebook, e se tem a impressão de que são coisas novas, mas muitas discussões datam de anos atrás.
A Internet é poderosa a curto prazo, mas são os livros que trazem toda a história, que a contextualizam. Acho que uma coisa não substitui a outra. Quem só lê pela Internet fica muito no aqui e agora.

Quais são as principais semelhanças que podemos apontar entre os movimentos feministas dos três países? Quais as particularidades de cada país?
Em primeiro lugar, é surpreendente, mas os movimentos feministas no Brasil conseguiram se estruturar e se organizar de um modo muito mais completo do que na Argentina e no Chile.

As mulheres que começaram lá atrás, na década de 1960 e 1970, via partidos políticos e que depois foram para o feminismo, já tinham uma experiência de organização política.

Quando se completou a transição democrática, e aí há uma particularidade importantíssima, que só o Brasil, dos três países, teve uma nova Constituição. Nela, muitas conquistas foram escritas. Por exemplo, o Brasil organizado em movimentos de direitos humanos teve uma presença muito grande na Assembleia Constituinte, com lobbies fortíssimos junto aos deputados e senadores e, com isso, houve uma inovação muito grande nos capítulos da Constituição de 1988.

Pessoalmente, eu me lembro de muitos deputados conservadores revoltadíssimos, dizendo que aquilo era absurdo, que a Constituição era absurda, que não fazia jus ao Brasil. A verdade é que os grupos organizados tiveram uma vitória muito grande em 1988.

Como o movimento se formou na Argentina?
Essa é uma diferença super importante. A Argentina já havia feito, no início dos anos 90, em um momento muito especial, conseguiram passar do voto proporcional de lista aberta para a fechada e os movimentos de mulheres conseguiram introduzir aquela cota de gênero real, em que nas listas de candidatos que vão concorrer, a cada três nomes, aparecesse um nome de mulher.

Essa é a diferença na Argentina. Mas, segundo depoimentos de lideranças de mulheres argentinas, elas ficam muito atrás na institucionalização de movimentos, nos diálogos dos movimentos de mulheres com o estado, com a entrada desses movimentos nos ministérios ou nas prefeituras.

Lá não se consegue ir do regional para o local, como acontece, por exemplo, na Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. As brasileiras tem um contato direto com os movimentos e levam os movimentos organizados para o plano nacional. Uma coisa, como tivemos no passado, conferências nacionais de mulheres, o Chile e a Argentina nunca tiveram.

Aquilo era para fazer uma agenda da prioridade de atendimento que o estado deveria dar nas políticas públicas para as mulheres. Isso foi uma conquista. A implementação dessas políticas públicas é outra história, mas isso ficou. Foi um capítulo que a gente escreveu.

Na Argentina, muito longe disso, elas nunca tiveram redes, mesmo com a Cristina Kirchner. Os movimentos reclamavam muito dela. Diziam que o Néstor parecia mais aberto do que ela [às demandas das mulheres].

Como foi o governo de Bachelet no Chile?
No caso da Bachelet, é preciso fazer uma distinção enorme entre o primeiro e o segundo mandato. No primeiro, ela realmente fez arranjos institucionais, incorporando lideranças feministas e as políticas avançaram muito, por exemplo, creche e a previdência. No Chile a Previdência é um caso seríssimo, onde estão fazendo o movimento contrário ao brasileiro. É uma história linda, na verdade.
Elas caminharam por um lado, nós conseguimos avançar, depois nós retrocedemos e agora elas estão avançando. Tudo isso estamos contando no livro. E o incentivo que a Bachelet deu na representação política das mulheres, é porque o Chile vai tão mal na representação formal quanto o Brasil, enquanto a Argentina está lá na frente, com 40% de representação. Nós e o Chile ficamos nos 10%.

Foram avanços importantes, mas no segundo mandato da Bachelet houve uma série de constrangimentos, da comunidade financeira internacional inclusive, e ela retrocedeu na política pública para mulheres.

É essa a comparação que pensamos. Como os avanços das políticas para as mulheres, por conta desses movimentos de décadas e décadas, tem que ser contextualizados historicamente. Não dá para falar numa chave única. É preciso realmente contextualizar.

Você chegou a citar que é “surpreendente” observar como o movimento de mulheres no Brasil é bem organizado. Por que temos a impressão de que aqui temos menos organização do que na Argentina, por exemplo?
Acho que é a organização do ponto de vista hierárquico. Como é que você transmite os interesses do local ao nacional? Por exemplo, na Argentina, existe uma questão que eu discuti muito com as colegas e pedi para me explicarem: por que vocês estão sempre na rua protestando? Nós, os brasileiros, só protestamos muito recentemente. Eles não, qualquer coisa estavam nas praças. E no Brasil não, nunca houve grandes movimentos de massa, o primeiro foi o pelas Diretas Já, no final da década de 1980. Enquanto isso a Argentina já tinha feito milhares de manifestações.

Então, há uma diferença entre o que se dá no Brasil e os movimentos de massa na Argentina, que acontecem e depois recuam, onde não há uma continuidade de trabalho que levem os interesses às mais diferentes entradas que estado oferece, de acordo com a disponibilidade do governo de plantão, claro.

Onde estavam essas entradas no estado brasileiro nos governos Lula e Dilma?
Era muito interessante, porque havia uma cooperação horizontal da máquina estatal, por exemplo, havia no MDS secretarias que cooperavam com a Secretaria de Políticas para Mulheres. No Ministério do Desenvolvimento Agrário, as trabalhadoras agrícolas também fazia essa rede horizontal para propor uma política favorável a cada tipo de movimento. Isso você não teve na Argentina e teve muito pouco no Chile. Acho que só no México há alguma coisa parecida conosco.

Como você vê essa nova geração de feministas na América do Sul?
Elas estão recebendo um bom caminho, digamos assim. O mundo digital para elas já é fonte de mobilização, de um lado. A questão, por exemplo, do feminismo incorporar também os movimentos LGBT. Essa manifestação pública, que vai e depois se dissolve, e volta para as suas organizações locais ou regionais, isso é uma herança que estamos deixando para as novas gerações de feministas no Brasil.

No caso do Chile, por exemplo, o que está acontecendo é que os mesmos movimentos feministas não incorporaram, por exemplo, as mulheres indígenas. Essa temática da interseccionalidade, os movimentos feministas chilenos agora que estão se abrindo para essa realidade.

A Argentina se gaba de ter representação provincial e, com isso, elas conseguiram algumas coisas importantes. Por exemplo, se a Kirchner não fazia grandes coisas, foi ela que fez a legislação mais avançada para os LGBTs. A juventude está repensando. No nosso livro, há um artigo da Flavia Rios sobre mulher negra no Brasil. Aqui, essa realidade da invisibilidade da mulher negra na história dos movimentos está sendo resgatada.

No Brasil, no Chile e na Argentina há um histórico de marginalização das mulheres na esfera política. No entanto, a Argentina hoje apresenta índices altos de representatividade institucional, em comparação com o Brasil. É possível tirar lições do contexto argentino?
Eu não tenho muitas esperanças. Nós já tivemos algumas oportunidades históricas para mudar a legislação eleitoral e sempre saímos sempre piores do que entramos. Acho que o clube do bolinha partidário oligárquico que rege o Brasil é muito forte. É forte demais. A organização regional da política, no centro, é muito difícil de mudar. Acho que, sem dúvidas se olharmos a representação da Câmara e no Senado, vemos que é o mesmo tipo de representação, que sobreviveu a vários regimes políticos, sobreviveram ao café com leite, à ditadura e continuam firmes e fortes.

Um dado que eu tive outro dia sobre jovens deputados no Brasil é que a maioria é filho de famílias de políticos. Acho que vale a pena aprofundar o estudo dessa continuidade oligárquica no Brasil e, com isso, a gente consegue compreender melhor a dificuldade das mulheres de ter uma representação maior. É um clube fechado.

Raramente há lideranças autênticas, a não ser que ela arraste muitos votos como no passado ocorreu com a Marta Suplicy. Mas isso já acabou, e não vejo hoje boas lideranças que se imponham aos quadros partidários. Há uma renovação muito pequena na Câmara de Vereadores, no âmbito local, em algumas regiões brasileiras, há um aumento na representação de mulheres, mas no plano estadual e nacional a coisa continua bem fechada.

Como você analisa a visibilidade do movimento feminista hoje no Brasil?
A nossa intenção, quando se organizou a pesquisa, era de que o debate feminista, sobre questões de gênero e sobre as políticas públicas para mulheres ganhasse mais visibilidade nas mídias. Porque nunca falam da gente. O percurso histórico que conversamos não existe na grande mídia, é como se não tivesse existido. Quando falamos entre nós, parece que é mentira, mas é falta de pesquisa. A nossa esperança é que ganhemos mais visibilidade, mais legitimidade e que a nova geração de jovens venha junto.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/568207-o-movimento-feminista-no-brasil-e-o-mais-organizado-da-america-latina 31/05/2017
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terça-feira, 30 de maio de 2017

Boff: “O poder de mobilização da esquerda não é efetivo para oferecer um projeto alternativo”

O teólogo e escritor Leonardo Boff em 2014
O teólogo e escritor Leonardo Boff em 2014 Folhapress

O teólogo diz que a esquerda tem de renovar a linguagem e as formas de se dirigir ao povo. Defensor de Lula, afirma que está convencido da sua retidão.


Carla Jiménez
 
Nos anos 1980, o então sacerdote Leonardo Boff escrevia artigos para o EL PAÍS nos quais defendia a Teologia da Libertação, a corrente cristã que nasceu na América Latina, e que tinha como preceito a opção pelos pobres. “Indiscutivelmente, os primeiros destinatários da pregação de Jesus foram historicamente pobres, os cegos, os dominados, os oprimidos, leprosos... A partir deles, dirigiu-se aos demais. Se não temos a esses como ponto de partida, corremos o risco do reducionismo e do elitismo”. Seus textos incomodaram o Vaticano que o proibiu de continuar escrevendo no jornal espanhol. Era o “silêncio obsequioso” ao qual foi submetido em 1985. Sua voz estava ganhando cada vez mais alcance, e se tornava uma provocação para a própria Igreja enquanto instituição.

O planeta precisou girar 28 vezes ao redor do sol – e a Igreja perder milhões de fieis ao redor do mundo – desde que foi silenciado até que a Santa Sé admitisse que a filosofia defendida pelo brasileiro tinha o propósito mais elementar para seus fieis. Em 2013, ao indicar seu representante máximo, Jorge Mário Bergoglio, o papa Francisco, da escola jesuíta, a Igreja assumiria o discurso com a opção pelos mais vulneráveis. Boff, no entanto, pagou um preço por pregar para além do discurso conservador da Igreja dos anos 80. Foi expulso do sacerdócio pelo que viria a tornar-se o papa Bento XVI. Como disse na época da sua expulsão, Boff “mudou de trincheira, mas não trocou a sua batalha”.

Hoje, o teólogo, doutor em Teologia pela Universidade de Munique, não deixa de ser uma voz dissonante da maioria e continua pagando a fatura dessa exposição, ainda que viva “no meio do mato num local de difícil acesso”, no Estado do Rio, como escreveu ele por email à reportagem. Em abril deste ano, viu-se implicado numa polêmica ao republicar um artigo do EL PAÍS em seu blogue. O texto discorria sobre o choque de realidade que a delação da Odebrecht trazia, e criticava as elites criminosas do Brasil. Em certo trecho, o artigo mencionava Lula como alguém que ajudou a criminalizar as bandeiras da esquerda (uma vez que seu partido estava envolvido em denúncias de corrupção). Por ter compartilhado o texto, houve a interpretação de que o teólogo endossava seu conteúdo e sinalizava assim um rompimento com Lula, a quem sempre apoiou politicamente. A notícia correu como rastilho de pólvora na imprensa. Boff chegou a ser acusado de traidor por alguns blogues e se viu achincalhado nas redes sociais. Rechaçou a ilação logo depois. Nesta entrevista, ele fala sobre Lula, a política, e sobre a dificuldade de entrosamento da sociedade. Respondeu a todas as perguntas por email, apesar da insistência da reportagem em fazer a entrevista ao vivo. O questionário foi respondido no dia 22 de maio, ou seja, antes dos protestos em Brasília.

Pergunta. A sociedade brasileira vê-se fragmentada neste momento depois de um tsunami político que parece começar em 2013. Na sua avaliação, em que ponto nos perdemos como sociedade para expor nosso pior lado nas relações sociais? Era uma ilusão que o país já esteve mais unido?
Resposta. Nós nunca fomos uma sociedade no sentido moderno, pois nunca saímos da situação colonial e neocolonial a que fomos submetidos desde a chegada dos europeus em nossas terras. Somos sócios menores e agregados ao projeto das grandes potências que dominam o mundo. Nunca pudemos elaborar um projeto autônomo e soberano de país.

P. As denúncias feitas pelo dono da JBS, que implicam o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, podem reunificar as pessoas depois da polarização que varreu o país?
R. Creio que o efeito negativo maior recai sobre a figura de Temer, claramente cúmplice de corrupção comprovadas por gravação, a ponto de lhe tirar qualquer legitimidade e autoridade moral para estar à frente do governo. Não creio que vai reunificar as pessoas, pois os que deram o golpe querem levar seu projeto neoliberal extremamente radical até o fim. E continuarão a apoiá-lo.

P. O senhor sempre foi bastante crítico ao Governo Temer, a quem chama “golpista”. Qual é sua concepção de golpe?
R. O impeachment está na lógica da dominação das oligarquias. Elas usaram não mais o Exército como em 1964 mas o parlamento para afastar um governo que poderia ameaçar seus privilégios. Armaram um golpe que juridicamente, segundo os melhores juristas do país, era insustentável. A decisão havia sido previamente tomada de modo que os fautores do golpe sequer iam às sessões para escutar os especialistas e argumentação dos defensores de Dilma. Foi um golpe de classe com base parlamentar, com o apoio da mídia mais conservadora e até reacionária e de setores da Justiça, até no mais alto escalão, que temem a ascensão dos milhões de pobres na vida social minimamente digna. A nossa democracia é de baixíssima intensidade. Se medirmos a democracia pelos critérios dos direitos humanos, da participação popular, da defesa das grandes maioria negras, da justiça social, essa democracia é antes uma farsa que uma realidade sustentável.

P. Não era hora de grandes lideranças, incluindo representantes da igreja, se coordenarem para garantir um mínimo de estabilidade até 2018?
R. Creio que está ocorrendo esse processo. Mas ele é inicial porque há um vazio de lideranças, com capacidade de convocação geral. Possivelmente a situação obrigará essa articulação, especialmente, se Temer insistir em permanecer no poder. Ele será tirado por uma dupla combinação: pressão popular e condenação pelo STF dos crimes a que é acusado. Aí perderá o mandato. O que vier depois é um enigma.

P. O Brasil viveu a era do PT por 13 anos que trouxe ganhos hoje bastante questionados. Do seu ponto de vista, o PT deixou mais desilusão do que um legado?
Conheço Lula há mais de 30 anos. Para mim é impensável que tenha se beneficiado pessoalmente de dinheiros da Petrobras ou de qualquer outra fonte.
R. Os dois governos do PT foram os únicos na história do Brasil que deram centralidade aos pobres, fazendo políticas sociais que ao todo incluíram na cidadania cerca de 36 milhões de pessoas. E principalmente lhe deram dignidade, valor humano que funda a autoestima e o sentido da vida. A política de cotas e o PROUNI permitiu que os pobres tivessem acesso à universidade que antes lhes era negado. Hoje há favelados negros que são médicos, engenheiros e até diplomatas. Isso era impensável antes. Tal avanço daqueles do andar de baixo, assustou a oligarquia e também a classe média que viu seus lugares de privilégio serem ocupados por esses novos cidadãos. Essa ascensão está na base do ódio de classe que vem do andar de cima, não dos pobres beneficiados. Esse legado não pode ser perdido, pois significou uma diminuição da desigualdade, uma humanização nas relações sociais e um limite à voracidade selvagem de nosso tipo de capitalismo que nunca foi civilizado e mantém níveis de acumulação dos mais altos do mundo, sem qualquer sentido de solidariedade para com seus semelhantes.

P. O senhor republicou um artigo do EL PAÍS em seu blogue em que havia uma menção negativa a Lula, citando que ele feriu de morte a esquerda e ajudava a criminalizar bandeiras sociais. O fato foi explorado, e foi dito que o senhor havia rompido com Lula, algo que desmentiu na sequência. O senhor não está de acordo com a ideia de que ele feriu a esquerda e criminalizou as bandeiras sociais?
R. Considerei o artigo, em grande parte objetivo. Mas como prezo a democracia e a diversidade de opiniões publiquei junto a crítica feita a Lula. Não concordo com esta crítica porque ela não é verdadeira. Lula sempre defendeu as bandeiras sociais e jamais criminalizou os movimentos sociais. Dizer que feriu de morte a esquerda não faz sentido, pois a esquerda estava no seu governo e a esquerda na sociedade fazia críticas à certas políticas de Lula mas sempre preservando o acerto de seu projeto social. Isso fica claro com a posição do MST: criticava duramente o governo Lula por não fazer a reforma agrária, mas jamais entregaram Lula à direita. Ele sempre foi visto como o representante legítimo dos marginalizados, sem terra e sem teto.

P. Qual é a sua posição sobre o Lula hoje?
R. Conheço Lula há mais de 30 anos. Para mim é impensável que tenha se beneficiado pessoalmente de dinheiros da Petrobras ou de qualquer outra fonte. O caixa dois, convenhamos, era o hábito político de todos os partidos com a exceção de alguns pequenos que se orientam por uma ética transparente (PSOL e outros menores). Lula não teve contas fora, os dados e testemunhos todos apontam que o famoso apartamento triplex no Guarujá não é dele e as reformas de um sítio, cujo dono é outra pessoa, são irrisórias em termos financeiros, quando comparamos os milhões e milhões que foram desviados e foram parar nas mãos da grande maioria dos políticos que eram corruptos ou se deixaram corromper. Estou convencido da retidão de Lula e considero perversa a perseguição que a justiça parcial move contra ele.
O caixa dois, convenhamos, era o hábito político de todos os partidos com a exceção de alguns pequenos.
P. O senhor acredita que ele é vítima e que o partido dele, que segundo as investigações recebeu dinheiro desviado por executivos da Petrobras, é inocente?
R. A estratégia das oligarquias e seus aliados, com o apoio hoje reconhecido dos organismos de segurança norte-americano é desestabilizar, a nível mundial e também no Brasil, todos os governos progressistas que tenham uma orientação social e destruir a figura de Lula – e se, possível, tornar inviável o PT. Todos devem alinhar-se às estratégias estabelecidas pelo Império (um só mundo e um só império; full spectrum dominance: cobrir todos os espaços; desestabilizar governos que não se alinham a estas estratégias centrais). O espaço no Atlântico Sul estava descoberto e dominado pelo Brasil com imensas reservas de petróleo e gás. Há ainda o momento da nova guerra fria entre USA e a China que está penetrando poderosamente na América Latina. Atacar as políticas brasileiras implica também atacar os BRICS do qual o Brasil faz parte e indiretamente seu rival maior, a China.

P. O juiz Sergio Moro, durante o depoimento de Lula, perguntou a ele por que não mandou investigar o PT quando soube de desvios. Não faria sentido?
R. Esse pergunta estava fora do objeto do julgamento que era o apartamento triplex. Lula foi correto ao dizer que quem cometeu malfeitos e desvios deviam ser julgados e punidos.

P. Como avaliou o depoimento dele ao juiz Moro?
R. Sincero e verdadeiro. Foi hábil ao trazer o juiz Moro para o seu campo, deixando-o quase como um aprendiz que se sentia humilhado, pois muitas vezes, fugia do campo estritamente técnico da acusação do apartamento, para o campo político, o que não era objeto de indagação. Mas percebia-se a má vontade do juiz.

P. O senhor já escreveu críticas à Lava Jato. Qual a sua avaliação? Não vê idealismo nos procuradores por uma justiça que chegue aos poderosos, uma deficiência nossa?
R. Sempre defendi a Lava Jato como combate à corrupção. Minha crítica era sobre a parcialidade dos julgamentos. Praticamente se restringia ao PT poupando especialmente o PSDB. Vejo os procuradores tomados pela vaidade dos holofotes dando a impressão de serem os verdadeiros mandatários do país e os únicos a proporem combate à corrupção. Esta está entranhada nas estruturas do Estado e de toda a sociedade. Não temos corrupção pontual. Estamos assentados sobre um modo de ser, de viver, de realizar o jogo político no qual a corrupção é um dado naturalizado. Enquanto não houver uma profunda reforma política, realmente democrática, persistirá a lógica da corrupção.
O Papa Francisco articula a ternura de um São Francisco com a determinação de um jesuíta; Ele une ternura e vigor. Vai sobreviver aos opositores pois estes não estão com a verdade.
P. A esquerda tem sido criticada por seus integrantes por não assumir o timão dos protestos de rua, deixando para a direita esse papel. Ela ficou “PT-dependente”?
R. A esquerda brasileira nunca teve muito enraizamento popular, apenas em algum dos sindicatos das grandes indústrias. Seu poder de mobilização é mais metafórico (bandeiras vermelhas e slogans) do que efetivo em termos de apresentar um projeto alternativo para o país. Ela sempre foi uma força auxiliar de grupos progressistas, mesmo neoliberais, mas que lhe permitiam uma presença no aparelho de Estado por causa de um presidencialismo de coalizão partidária. A esquerda precisa se renovar, no paradigma social, na linguagem, nas formas de se dirigir ao povo e especialmente se apresentar como um centro de reflexão séria sobre qual Brasil finalmente queremos. Falta pensamento e sobre movimentação.

P. Aqui como no mundo partidos de esquerda são criticados por não ter um plano consistente para a economia. Onde estão errando?
R. Não se trata de erro mas de profunda desigualdade na correlação de forças. Hoje há uma dominação completa da ordem do capital que gerou a cultura do capital que se impôs a todos, também aos da esquerda (troca de celular, de computador, de tênis, de roupas, de modos de consumo). O nosso impasse e também a nossa desgraça é termos que viver dentro de um sistema que só sobrevive à condição de que o dinheiro produza mais dinheiro, não para melhorar a vida, mas para aumentar de forma ilimitada. É o império do capitalismo especulativo e materialmente improdutivo. E não existe nenhum projeto alternativo com suficiente força de se contrapor eficazmente a esta forma avançada de capitalismo rentista. Talvez somente após uma grave crise ecológico-social que desequilibre o sistema-Terra e o sistema-vida, poderá vir um sistema mais justo socialmente, mais amigo da vida e com um consumo solidário e sóbrio no quadro de uma governança global.

P. O apoio à greve geral (no dia 28 de abril) e o rechaço à reforma da Previdência mostra que, apesar do despeito político, a população tem ciência de que benefícios e direitos essenciais estão sendo perdidos?
R. Grande parte da população é anestesiada pela mídia, especialmente pela Rede Globo como todos os seus meios, entre outros meios situados em São Paulo, como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo. Estes veículos são os instrumentos ideológicos das elites e dos endinheirados do país que nunca se deram bem com a democracia e que querem continuar com a política do patrimonialismo pelo qual Estado e as empresas privadas fazem projetos milionários sobre os quais incidem vantagens monetárias ou postos de mando na administração. Os negócios viraram negociatas que estão na base da corrupção generalizada no país na forma de propinas ou supervalorização dos projetos.

P. Durante a greve diversas escolas católicas foram firmes na posição de apoiar a reivindicação de seus professores. Há muito tempo não se viam escolas tomando posições que ganham dimensão política. Há uma mudança de postura?
R. As escolas católicas sempre deram alto valor à retidão, à transparência, ao amor à verdade. Quer dizer, sempre inseriram a ética e até a espiritualidade na formação de seus estudantes. A corrupção generalizada estava em contradição com tudo o que ensinavam em suas escolas. Então foi coerente entrarem nas manifestações contra a corrupção.

P. Nesse sentido, a CNBB se coloca irredutível na reprovação das reformas de Temer. É um alinhamento com o papa Francisco?
R. A CNBB sempre teve uma política social progressista, desde que foi fundado em 1950. Por um tempo, antes de se tornar objeto de críticas do Vaticano, a teologia corrente da CNBB era a teologia da libertação, cujo eixo estruturador é a opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da justiça social. Então é natural que se ponha do lado dos vulneráveis e atingidos pelas medidas que tiram direitos do povo e dos pobres. O Papa Francisco não está na origem desta opção, mas ela a apoiou e reforçou.

P. Houve críticas ao papa porque ele estaria tomando uma posição política ao negar o convite de vir ao país este ano. É política a posição do Papa?
R. A Igreja sempre faz política pois é uma força presente na sociedade. Mas precisamos qualificar esta política. Geralmente, a política oficial era equilibrista e apenas doutrinária, o que favorecia, no fundo, o status quo dominante. O Papa Francisco tem um lado: está do lado dos pobres, dos refugiados, das vítimas do sistema que coloca todos os valores em termos monetários e adora a acumulação. Chama este sistema de anti-vida e assassino, o verdadeiro terrorismo contra a humanidade. Assim se expressou no avião, regressando da Polônia. Esta é a posição correta e que está na linha da Tradição de Jesus que chamou “benaventurados os pobres” e advertiu os ricos “ai de vós ricos que já tendes vossa consolação”. O fato de por três vezes se encontrar com os movimentos sociais populares do mundo inteiro, mostra seu interesse de ouvir das próprias vítimas o sofrimento que padecem e ouvir deles quem produz este sofrimento. Aqui há uma atitude extremamente humanitária e ética em favor dos mais penalizados deste mundo.

P. Há críticas a ele sobre a falta de mudanças efetivas na igreja, como abrir a participação efetiva de mulheres no sacerdócio ou reconhecimento efetivo de direitos iguais aos homossexuais.
R. A grande transformação se dá na própria figura do Papa, talvez o líder mais importante no mundo, seja no âmbito religioso seja no campo político. Não é fácil reformar uma instituição, a cúria romana, que possui hábitos e vícios de mais de mil anos. Mas ele mostrou outra forma de ser papa, totalmente despojado dos sinais profanos de poder, não mais no estilo faraônico que se impôs na cristandade europeia, agora crepuscular e decadente. Apenas 25% na Europa são católicos. Os restantes vivem na periferia do mundo. O Papa Francisco introduziu o pensamento libertador destas novas igrejas e isso tem escandalizado os europeus mais conservadores. Mas se considerarmos suas atitudes nunca foram de condenação dos homoafetivos, abriu espaço para uma pastoral nova para os casais em segundas núpcias, permitindo-lhe o acesso à eucaristia. Mas mais que tudo introduziu a concepção de uma igreja aberta a todos, um hospital de campanha, que dá mais valor ao encontro com as pessoas que às doutrinas, e coloca os pobres antes das disciplinas. Colocou no centro de sua mensagem a beleza, a ternura, a compaixão e a misericórdia. Talvez a afirmação teológica mais importante para mim tenha sido esta: Deus não conhece uma condenação eterna. Por isso, não devemos assustar o povo cristão, com o inferno como se fez durante quase todo a história da Igreja. Haverá justiça no sentido de que o malfeitor e o pecador terão que reconhecer a perversidade de seus atos, mas a última palavra terá a misericórdia. Caso contrário, com o inferno, Deu seria um perdedor. Deus sempre triunfa sobre qualquer força do negativo da história.

P. Ele sobreviverá às investidas conservadoras da Igreja? Teme um sucessor conservador?
R. O Papa Francisco articula a ternura de um São Francisco com a determinação de um jesuíta; Ele une ternura e vigor. Vai sobreviver a seus opositores pois estes não estão com a verdade, apenas se empenham em manter o status quo que os beneficia em seus privilégios. Eles quase nunca se referem aos pobres e às injustiças sociais no mundo. A meu ver, esse Papa vai fundar uma nova genealogia de Papas que virão da periferia, onde estão as Igrejas mais vivas, que crescem, se encarnam nas diferentes culturas e produzem uma teologia aderente à realidade.

P. O senhor disse numa entrevista na Argentina que estamos num voo cego no mundo e não sabemos onde vamos parar. Perdeu a esperança de uma humanidade mais consciente?
R. Eu creio que estamos no centro de uma crise sistêmica que afeta todas as nossas formas de habitar a Casa Comum. Assim como está não podemos continuar porque podemos produzir um colapso da Terra. Esse tipo de mundo tem que acabar para dar lugar a um outro mais biocentrado onde a solidariedade, o cuidado e a responsabilidade comum garantirão a sustentabilidade de toda vida e de nossa civilização. As dores atuais não são de um moribundo nas vascas da morte, mas de um parto de uma nova criatura que espero que nasça mais humana, mais amiga da vida e mais espiritual.

P. Ódio tornou-se um 'ativo' à venda atualmente por meio de marketing político incluindo as notícias falsas. O amor está perdendo essa batalha?
R. Nas palavras de Paulo Freire, vivemos no Brasil numa sociedade malvada onde é difícil o amor. Isso se deve principalmente à profunda desigualdade social, que significa injustiça social. Essa situação é estrutural, onde 0,05% da população (71.440 supermilionários) controlam mais da metade de nosso PIB. Se um Estado é injusto, ele não pode gozar de paz nem produzirá relações humanas fundadas na solidariedade e no amor.

P. Como regenerar a empatia com o outro? Ou o Brasil nunca se preocupou em exercitar esse sentimento?
R. O povo brasileiro é em sua maioria generoso e cordial. Violenta e repressiva é a elite brasileira. Sempre que ocorre algum avanço na base popular em termos de consciência de direitos e de busca de maior participação política, ocorre um golpe das oligarquias que colocam o povo no seu lugar, quer dizer, na marginalidade. Se não houver uma transformação nas estruturas econômicas e sociais que gerem um maior equilíbrio, jamais teremos paz social.

P. Tem alguma esperança de que uma certa ética se imponha no país, depois de fatos tão graves vindo à tona, que mostram um sistema político doente?
R. Tenho esperança que dentro do sistema imperante, injusto e anti-popular vai continuar a corrupção mas será mais difícil de escondê-la. Só será superado o hábito corruptor no dia em que se fizer uma real reforma política com uma distribuição diferente do poder e com um Estado que não aceite mais o patrimonialismo.

R. Nenhuma mudança, a meu ver, em nenhum lugar do mundo, vem de cima. De cima sempre vem mais do mesmo. É a lógica do poder que somente se mantém acumulando mais poder ou se aliando a outros poderes. As mudanças vem de baixo, daqueles que tem outro projeto de sociedade e acumulam suficiente poder social a ponto de se impor ao poder dominante. Aí haverá uma troca de sujeito de poder com capacidade de impor novas regras do jogo político, mais democrático, participativo e ético.
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Fonte:  http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/26/politica/1495833522_994721.html

Os terroristas têm uma distorção do juízo moral. Está confirmado

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 Os grupos de terrorismo paramilitar da Colômbia representam organizações de direita REUTERS/Jose Miguel Gomez

Cientistas submeteram 66 terroristas paramilitares da Colômbia a vários testes e comparam os resultados com um grupo de homicidas e com outro de não criminosos.

Dito assim parece tudo menos surpreendente. Uma equipa de investigadores da área das neurociências e psicologia avaliou um grupo de terroristas paramilitares da Colômbia e concluiu que têm o juízo moral distorcido. Submetidos a vários testes, estes terroristas que estiveram presos e revelaram que consideram, por exemplo, que fazer mal a alguém com um propósito é mais admissível do que ferir alguém acidentalmente. Para eles, concluem os autores o artigo publicado na revista Nature Human Behaviour, “os fins justificam os meios”.

A conclusão de que os terroristas têm um julgamento moral distorcido parece algo óbvia para o comum dos mortais, sobretudo nos dias que correm. Porém, essa é apenas a diferença mais evidente e significativa da investigação que comparou um grupo de terroristas com pessoas que nunca praticaram um acto criminoso e mesmo com homicidas condenados, e que envolveu outras variáveis. O estudo que se baseou em vários testes realizados a 66 terroristas paramilitares da Colômbia que cumpriram pena de prisão (em média cada um deles causou 33 vítimas mortais), avaliou também as capacidades intelectuais e motoras, o comportamento agressivo e o reconhecimento emocional, entre outros traços.

Segundo este estudo, o que separa estes terroristas e um grupo de 13 assassinos condenados e um outro grupo de 66 pessoas (das mesmas idades, formação académica e género) que nunca cometeram um acto criminoso é claramente o a diferença no que chama de “cognição moral”. Perante cenários que exigiam que julgassem uma determinada acção praticada, com uma intenção ou de forma acidental, e das suas consequências, os terroristas mostraram que estão focados sobretudo nos resultados. “Para eles, os fins justificam os meios”, referem os autores do estudo.

Entre muitas outras comparações feitas no estudo, os autores notam que o grupo de não criminosos considerou que fazer mal a alguém de forma acidental era mais admissível do que um dano intencional, com um propósito. A diferença de “pontuação” dada a estas situações foi a mesma no grupo dos terroristas mas de forma inversa, mostrando que consideravam “um dano intencional como mais permissível do que um acidental”, refere o artigo. Os resultados sugerem que a distorção da cognição moral será mesmo um traço distintivo, um marcador, da mentalidade de um terrorista.

Os testes revelaram outras diferenças. Por exemplo, nas escalas que servem para avaliar a agressividade, os terroristas conseguiram valores mais elevados em todos os parâmetros e sobretudo na agressividade proactiva. No que se refere aos testes sobre o reconhecimento emocional, os resultados também mostram diferenças: com os terroristas a obter valores mais baixos em todas as emoções a que foram expostos, desde o medo, a raiva, a tristeza, surpresa e a repugnância. Porém, sublinha-se, os investigadores concluíram que é a diferença na cognição moral que mais claramente distingue o grupo de terroristas dos outros grupos.

No que se refere a outras variáveis avaliadas, como a inteligência verbal e fluida (que serve para resolver problemas imediatos), memória verbal e espacial, controlo da inibição verbal ou conflito de instruções, entre outras, a “classificação” obtida pelo grupo dos terroristas e do grupo de controlo foi muito semelhante.

Os investigadores asseguram que os terroristas paramilitares avaliados neste estudo não sofrem de qualquer perturbação psiquiátrica ou neurológica nem são consumidores de drogas ou álcool, factores que teriam uma influência nos resultados. Por outro lado, o tempo de cumprimento de pena também foi tido em conta para perceber se este poderia ter afectado o juízo moral destas pessoas. “Não encontrámos nenhuma associação significativa entre o padrão moral específico revelado pelos terroristas e o tempo que passaram na prisão”, referem os autores.

A equipa estudou elementos de grupos de terrorismo paramilitar da Colômbia que representam organizações de direita inicialmente formadas para responder aos movimentos das guerrilhas. “As suas práticas violentas aumentaram de forma tão abrupta que a Colômbia tem hoje dos mais altos níveis de terrorismo em todo o mundo”, refere o artigo, que adianta ainda que a Amnistia Internacional estima que, nas últimas duas décadas, pelo menos 70 mil pessoas foram mortas por terroristas neste país. Milhares de pessoas desapareceram, foram raptadas e torturadas. Porquê? Em nome de quê? “Paradoxalmente, os terroristas justificam as suas acções por imperativos morais. De facto, eles invocam a necessidade de uma ‘limpeza social’, matando milhares de toxicodependentes, criminosos, prostitutas, homossexuais e sem-abrigo em nome de uma campanha de ‘purificação moral’.”

E os terroristas que matam a Europa?

O que separa estes terroristas dos autores dos atentados que temos tido na Europa? “Não nos parece que o terrorismo paramilitar e outras formas de terrorismo sejam diferentes no que diz respeito ao recurso a práticas desumanizantes, ao abuso de inocentes e à consequente condenação moral que merecem. No entanto, pode haver diferenças nas origens e traços psicológicos de diferentes formas de terrorismo”, referem ao PÚBLICO, por email, Agustín Ibáñez e Adolfo Garcia, dois dos principais autores do estudo.

Mas, notam, há diferenças. Na população que estudaram a religião não é relevante, por exemplo. E mesmo a questão ideológica apenas terá um impacto parcial. “Grande parte dos ex-combatentes na Colômbia aderiu a grupos paramilitares por razões económicas, uma vez que lhes era pago um salário. Apenas aproximadamente 13% dos ex-combatentes tinha uma motivação ideológica para se juntarem ao grupo paramilitar”, explicam os investigadores. Assim, os actos terroristas dificilmente terão sido praticados apenas por convicções ideológicas. “Consistentemente, as teorias das ciências sociais sugerem que ideologia e acção estão ligadas às vezes, mas nem sempre. Muitos terroristas não são ideólogos ou crentes profundos de uma doutrina extremista”, explicam os autores do artigo.

Mas, para além desses factores, Agustín Ibáñez e Adolfo Garcia defendem que, se olharmos com mais detalhe para todo o contexto, o conflito colombiano parece ser único. “A luta tripartida entre militares, paramilitares e guerrilheiros, a mistura de posições políticas liberais e conservadoras envolvidas no conflito, e a mistura da população civil, bem como narcotraficantes nesses conflitos fizeram do cenário colombiano um fenómeno único e muito complexo”, argumentam.

Porém, apesar da especificidade colombiana e quando questionados pelo PÚBLICO sobre o mais recente ataque na Europa, ocorrido na última segunda-feira em Manchester (Reino Unido), os investigadores não hesitam em considerar que esta acção confirma as conclusões do estudo que fizeram: para os terroristas, os fins justificam os meios.

Mas, adiantam, “se este padrão anormal de cognição moral pode ser observado entre outros grupos terroristas (ISIS e Al-Queda) é uma questão empírica e ainda sem resposta”.

Quando somos confrontados com vítimas inocentes tão jovens (crianças e adolescentes foram mortas e feridas em Manchester), será caso para nos questionarmos se os terroristas (estes ou outros) têm limites. “Claro que pessoalmente percebemos que não têm limites para alcançar os seus objectivos. Porém, como cientistas não nos sentimos autorizados a dar opiniões sobre os traços psicológicos destes terroristas, simplesmente porque não temos acesso a dados sobre os seus perfis cognitivos, afectivos e sociais. No entanto, as suas acções parecem claramente organizadas e delimitadas, sugerindo que são capazes de ir demasiado longe para cumprir os seus objectivos”, respondem. 

A equipa internacional que elaborou o estudo reúne neurocientistas, psicólogos e outros especialistas de várias instituições na Argentina (Fundação Ineco, Universidade Favaloro e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), na Colômbia (Universidade Autónoma do Caribe, Universidade dos Andes e Universidade ICESI), no Chile (Universidade Adolfo Ibáñez) e nos EUA (Boston College).

O próximo passo da investigação ainda não é na direcção dos terroristas islâmicos ou outros, mas vai manter-se em terreno colombiano. “Estamos agora a estudar as vítimas do conflito armado. Além disso, estamos a começar a avaliar crianças sob condições violentas na guerrilha. Por outro lado, também estamos a estudar os perfis sociais e cognitivos dos paramilitares, comparando-os com pessoas da guerrilha. Por fim, também lançámos (em colaboração com agências nacionais da Colômbia) alguns programas de intervenção em populações desmobilizadas e ex-combatentes, com base nos quais estamos a realizar estudos longitudinais.” Assim, na Colômbia, há várias frentes de ataque científico que pretendem explorar e desmascarar o inimigo terrorista. É uma forma de luta.
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Fonte:  https://www.publico.pt/2017/05/27/ciencia/noticia/os-terroristas-tem-uma-distorcao-do-juizo-moral-esta-confirmado-1773563

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Preocupação com tempo de prisões temporárias é do STF, diz Jardim

BRASÍLIA, DF, BRASIL, 02.06.2016. O ministro da Transparência, Torquato Jardim, dá entrevista sobre o aumento dos servidores e pauta de votações na Câmara, no Palácio do Planalto. (FOTO Alan Marques/ Folhapress) PODER
DANIELA LIMA
Alçado ao Ministério da Justiça no auge da tensão entre o presidente Michel Temer e os operadores da Lava Jato em Brasília, Torquato Jardim não esconde a que veio. Horas após sua indicação, em entrevista à Folha, disse que "vai avaliar" mudanças no comando da Polícia Federal. 

O novo ministro também defendeu que outras associações do Ministério Público Federal, além da ANPR (Associação Nacional de Procuradores da República), façam listas para disputar o comando da PGR (Procuradoria-Geral da República), hoje nas mãos de Rodrigo Janot. 

Torquato falou à reportagem neste domingo (28), por telefone, de dentro da van com a comitiva presidencial após viagem para vistoriar áreas de enchentes em Alagoas. Prometeu ouvir Michel Temer em tudo. 

Ele é ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), corte que julga daqui oito dias ação que pode levar à cassação do presidente. Em resposta enviada por sua assessoria, disse que o julgamento "será técnico". 

*
O sr. assume o Ministério da Justiça no momento de maior tensão na relação entre Michel Temer e a PGR. Como pretende atuar?
Torquato Jardim - Primeiro eu vou ouvir o presidente, saber a avaliação que ele faz desse quadro e descobrir qual será o papel do ministro da Justiça. De minha parte, sempre tive uma relação muito boa com a Procuradoria-Geral da República, um diálogo muito franco, já no Ministério da Transparência. Tenho amigos, ex-alunos e ex-professores lá. O diálogo é sempre o melhor caminho. 

O sr. pretende mexer no comando da Polícia Federal?
Eu vou avaliar. Vou ouvir a recomendação do presidente, de outras personalidades que conhecem o assunto, fazer o meu próprio juízo de valor e decidir. Não vou me precipitar nem antecipar nada. 

Que avaliação o sr. faz hoje do trabalho da PF?
Eu não tenho nenhuma avaliação. 

Como o sr. recebe as críticas de entidades, como a associação de delegados da PF, à sua nomeação?
Não li nada, não sei.
Divulgaram nota dizendo receber as notícias de troca no ministério com preocupação.
Estou em Maceió, vim com o presidente vistoriar a área de enchentes. Não li nada. Preciso conhecer as notas para poder falar. 

O sr. foi nomeado para melhorar a interlocução do governo com os tribunais superiores?
Historicamente o Ministério da Justiça sempre foi o canal de comunicação do Executivo com o Judiciário. De modo que esse papel dentre todos os que tenho que desempenhar é o que menos me preocupa. Tenho 40 anos de experiência, advoguei em todos os tribunais. Fui assessor do STF, ministro do TSE. Eu conheço a lógica da magistratura. 

Mesmo em meio à essa grave crise política?
O que interessa, em primeiro lugar, é a economia. A crise não é política –a mídia transformou em crise política–, mas econômica. 

Em segundo lugar, a parceria do Executivo com o Congresso está intocada. Serão votadas todas as reformas, trabalhista, da Previdência, o financiamento das dívidas dos municípios. 

Isso passando, a agenda econômica avança. A questão é econômica e essa é uma área que está muito bem conduzida. 

Há um temor de que o sr. esteja sendo nomeado para interferir na Lava Jato?
Em absoluto. Não tem nada a ver com isso. 

O sr. já fez diversas críticas à operação. Sobre as prisões provisórias, por exemplo.
Lancei dúvidas clássicas de um advogado. As prisões são legais, isso é certo. O que me preocupa é a fundamentação correta e precisa do tempo de prisão temporária, quanto ela deve se alongar. E essa preocupação não é só minha. É do Supremo [Tribunal Federal]. Mais de um ministro já falou sobre isso. 

Como o sr. espera que se desenrole a disputa pela sucessão de Rodrigo Janot no comando da PGR?
Temos oito colegas que se candidataram, vão fazer debates, percorrerão o Brasil e receberão votos para compor a lista [tríplice, encaminhada ao presidente]. Diante disso, nós vamos estudar a melhor solução. Não sei também se outros ramos do Ministério Público não farão listas para o comando da PGR. 

O Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar? Eles farão listas? O que se tem hoje é o processo feito por uma associação. 

O sr. espera que outras entidades apresentem nomes para esse processo, é isso?
É provável. Há movimentos nesse sentido. 

E isso seria bom?
Sim. Muito salutar. Quanto mais pessoas mais pessoas interessadas em participar, melhor. 

O sr. não teme tratar desses assuntos em meio a uma crise tão aguda entre o governo e o Judiciário?
Eu discordo das premissas da sua pergunta. Não conheço tensão entre o Executivo e o Judiciário.
É a primeira vez que temos um presidente alvo de inquérito no STF.
Então vamos esperar a decisão do Supremo. 

Como jurista, a situação de Michel Temer não o preocupa?
Não, não. 

O sr. vê risco de o presidente não conseguir concluir o mandato?
De jeito nenhum. A questão é econômica, não é política. Se passam as reformas no Congresso, nas próximas quatro ou cinco semanas, tudo será resolvido. 

O sr. foi ministro do TSE. A corte está sob forte pressão. Temer será cassado?
O julgamento no TSE será técnico. Os ministros decidirão com base no que está nos autos. Tem a acusação e a defesa, a inicial e a contestação, como em qualquer ação. No mais, é especulação. A inicial é referente à 2014 e o que será observado são os fatos e provas que ali estão. 

Como foi o convite?
Tranquilo. Eu e o presidente nos conhecemos há mais de 30 anos. Ele disse da necessidade de uma otimização administrativa no ministério. Em seguida, fez o convite para que o [Osmar] Serraglio vá para a Transparência. 

Ele é mestre em direito público, professor... Tem a formação básica [pausa]... Tem a formação clássica para ocupar o ministério. E eu recebo essa responsabilidade com muita tranquilidade. Sei que a tarefa é enorme, mas nada me assusta.
-
Raio-x
 
Nascimento
12 de dezembro de 1949 

Formação
Advogado, pós-graduado na Universidade de Michigan 

Cargos ocupados
Ministro do Tribunal Superior Eleitoral
(1988-1996), presidente
do Instituto Brasileiro
de Direito Eleitoral
(2002-2008) e ministro
da Transparência (2016-2017) 
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 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1888277-preocupacao-com-tempo-de-prisoes-temporarias-e-do-stf-diz-jardim.shtml

Idiotas da tecnologia se julgam livres porque trabalham usando WhatsApp


Luiz Felipe Pondé*
 

A primeira vez que ouvi a expressão "cansaço dos materiais", de um amigo engenheiro, me pareceu muito peculiar, uma vez que significa que pontes, cimento, prédios, ferros se cansam. Se eles, que são indestrutíveis, se cansam, que dirá nós. 

Achei, com o tempo, que se tratava de uma expressão de rara elegância. Até os átomos ficam de saco cheio de viver na função de ser átomo. Uma ponte cansa de ser ponte, um prédio de ser prédio, uma viga de ferro de ser viga de ferro. Pareceu-me ser este cansaço indício de que exista um Deus. E que os materiais foram feitos também à sua imagem e semelhança. E que não haveria um Deus mais sincero do que um Deus cansado do que criou. 

Somos um mundo fadado ao cansaço, mas sem direito a ele. O imperativo do sucesso é a prova de que nosso mundo está condenado. O simples fato de que o normal, esperado e necessário, é o crescimento econômico eterno já nos devia fazer duvidar do que fazemos todo dia. 

Você é uma daquelas pessoas que pensam ter resolvido esse problema só porque tem tempo de ir a pé para o trabalho? Ou come sem pressa de manhã porque esse hábito em nada vai alterar sua capacidade de consumo? Bem, se você for uma dessas pessoas, ou é rica ou não tem qualquer possibilidade de sobreviver (e nesse caso não estaria me lendo nesse exato instante, estaria passando fome em algum lugar), ou vive só com muito pouco e jamais deixará de ser só porque faz parte da cultura single (hoje em dia o marketing dá nomes em inglês para justificar seus custos, tipo "cozinhar em casa" virou "comida comfort"), ou seu pai paga pra você não ter pressa de manhã e você fará duas pós-graduações, uma em Nova York e outra em Barcelona. 

Não há saída dessa economia non-stop. Quer saber por que não há saída? É fácil descobrir. Venha comigo. Quem pode abrir mão de wi-fi, cultura mobile, Airbnb, aviões cada vez mais seguros, direitos civis cada vez mais definidos, hospitais cada vez mais equipados, exames laboratoriais cada vez mais precisos, Netflix, gente fácil pra fazer sexo sem encher o saco depois, bikes cada vez mais leves, crianças cada vez mais caras e da cidade de Gonçalves como paradigma de gente bacana, tolerante e cool (esse tipo de gente custa muito caro)? 

Ninguém abrirá mão dessas coisas, e muitas outras —a lista é interminável e cansativa, então não vou insistir nela. 

Nunca houve na Terra uma geração de jovens mais cansada e sem futuro. Claro que falam muito deles como estrelas high-tech. Uma mistura de high-tech com sensibilidade vegana. Pais babam quando bebês colocam os dedinhos na tela do iPhone 7 e sorriem. Como são inteligentes esses pequenos! 

Ouço constantemente de jovens que eles são narcisistas, intolerantes com pessoas reais (e tolerantes com rúculas, baleias e crianças na África), ansiosos e arrogantes porque nós lhes legamos um mundo em chamas. Um mercado de trabalho incerto os acompanha há algum tempo. Alguns idiotas da tecnologia acham que o Chatbot fará um mundo melhor graças a sua brilhante inteligência artificial. O novo gozo é com o "algoritmo", mas o que ele vai fazer mesmo é destruir empregos na velocidade da luz. Esses idiotas da tecnologia se julgam mais livres porque trabalham pelo WhatsApp em casa no domingo. 

Mas como escapar dessa economia frenética, se o Waze e o Uber são formas de algoritmo, e se sem esses dois as pessoas bacanas não existem? E temos que criar algoritmos cada vez melhores e mais rápidos e mais precisos para termos mais gente superbacana. 

Todos os que afirmam ser possível escapar desse frenesi da produção têm um neurônio a menos. Faça um teste e liste o que você considera essencial pra sua vida. Sem mentir, tá? Se pegar um celular na mão, desista de qualquer utopia, você já perdeu a partida porque esse seu celular "cool", provavelmente, depende de salários baixos em algum elo da cadeia produtiva, do contrário ele seria ainda mais caro do que é. 

A China venceu. Você compra roupa "cool" feita por mão de obra quase escrava sem culpa porque no Facebook xinga o Trump e acha o Haddad um grande estadista. 
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/05/1888206-idiotas-da-tecnologia-se-julgam-livres-porque-trabalham-usando-whatsapp.shtml

sábado, 27 de maio de 2017

Dinheiro compra tudo

Paulo Nogueira Batista Jr.*
 Imagem relacionada
 
“O dinheiro compra tudo – até amor verdadeiro”, dizia Nelson Rodrigues. Se compra até amor verdadeiro, por que não haveria de comprar políticos, funcionários, economistas, juristas, jornalistas, advogados, atletas, cartolas, o diabo?

Lembro a frase do nosso grande cronista a propósito da situação atual do Brasil. Os últimos acontecimentos desencadearam nova e intensa rodada de turbulência. A economia vinha dando os primeiros sinais de vida, depois de anos de recessão profunda, mas, com o novo choque político, a tênue recuperação fica seriamente ameaçada. Mais grave: a estabilidade social e política do país corre risco. Estamos flertando com o caos.

Muitos brasileiros que há um ano, um ano e pouco, marchavam pela Avenida Atlântica, pela Avenida Paulista ou por outras avenidas país afora, de verde e amarelo, exaltados, em protesto contra a corrupção, com o proclamado intuito de “passar o país a limpo”, agora se dizem surpresos, estarrecidos, enojados.

Surpresa? Ora, ora. Sinto dizer, mas que desfecho poderia ter um movimento que tinha um pato, sim, um pato, como símbolo? Era um prenúncio.

Ingenuidade, sem dúvida. Mas há muito cinismo também. Ou ninguém sabia, nem sequer desconfiava, que a corrupção é um problema sistêmico? Ela está profundamente entranhada, há várias décadas, no funcionamento do sistema político brasileiro – e nunca se fez um esforço verdadeiro de ir às raízes da questão. Sucessivos escândalos e ondas de punições nunca levaram a uma mudança fundamental.

Tivemos o impeachment do presidente Collor, por acusações de corrupção. Poucos anos depois, houve um escândalo que abalou o Congresso e ceifou várias carreiras políticas. Lembro-me de um deputado que num lance extraordinário, quase lírico, explicou da seguinte forma o seu patrimônio: mais de 200 bilhetes premiados na loteria esportiva! Perdeu o mandato e desapareceu.

O leitor conhece o Conselheiro Acácio, aquele personagem do Eça que se dedicava a proclamar o óbvio com grande solenidade? Se permitem uma homenagem ao Conselheiro, direi que o cerne do problema, que parece tão intratável, está no nexo dinheiro-política. Mais especificamente, na falta de interesse real dos que praticam a política e dos que detêm o dinheiro em quebrar – ou pelo menos disciplinar – esse nexo.

Não quero generalizar, nem ser injusto com pessoas que lutam contra a corrente. Mas os políticos, ou muitos deles, se acostumaram a operar dentro do sistema atual. Os donos do dinheiro, por sua vez, teriam algum interesse prático em mudá-lo? O que se conhece como democracia – e não só no Brasil – é muito mais plutocracia do que qualquer outra coisa. Por mil canais legais, cinzentos ou até abertamente ilegais, o dinheiro dá as cartas. Distorce e manipula informações. Determina as decisões políticas e a alocação dos recursos públicos. Compra, compra e compra.

Para os que não têm dinheiro, o jogo é, obviamente, muito desigual. As chances de se fazer ouvir e até de formar opinião são limitadas ou inexistentes.

E quando, mesmo assim, o povo vota “errado”? Bem, o tapetão está aí para isso mesmo.
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O autor é vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, sediado em Xangai, mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.
 *Economista
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9801834.xml&template=3898.dwt&edition=31248&section=70 27/05/2017
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CASAS


Lya Luft* 
 
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Começo um novo livro, que chamo A Casa Inventada, deixando de lado por um tempo – de acordo com minha editora Record – o outro, que se chamaria Os Sentimentos Humanos, ou A Casa de Pandora. Pois estava empacado há semanas, me deixando aflita. O vento sopra quando quer, digo sempre, e não adianta lutar com ele: acaba nos derrubando e cobrindo de pó. Então, começando a montar a casa, que no meu livro será a vida, a casa da vida que um pouco inventamos, um pouco nos é imposta, leio na ZH de quinta o artigo do David Coimbra sobre casas. Bonito, comovente, tenso e sério como ele sabe fazer. Leiam: vale a pena.

E assim continuo aqui falando um pouco em casas: as que nos recebem quando nascemos, as que criamos para e com nossos filhos, caso os tenhamos, casas que podem ser no chão ou no alto de um edifício. Casa sendo “lar”, isto é, refúgio. Lá onde, apesar de discordâncias, brigas e chatices, nos sentimos abrigados. Esse é o meu lugar, assim como, no Exterior, pensamos no nosso país (pobre país, aliás...) como “meu lugar, minha gente”.

Talvez nem todos sintam isso, mas eu, conhecido bicho da minha toca e mulher da minha caverna, em todas as vezes em que estive em países civilizados, lindos, cultos, a trabalho ou a passeio, tratada a pão de ló, tive permanentemente essa sensação de que meu lugar seria, mesmo mesmo, aqui no Brasil. Esculhambado, colorido, hoje dolorido e preocupante, mas minha gente, minha fala, meu clima, minha alma, meu aconchego. Certamente não sou uma “pessoa do mundo”, antes uma espécie de caipira gaúcha, embora nutrida com idioma, livros, uns poucos costumes e comidas do país de origem de meus antepassados – que cá vieram há quase duzentos anos, portanto estamos bastante “amaciados” como brasileiros. Apesar do respeito e admiração pelo espírito de trabalho, ordem, beleza natural e maravilhas culturais, a terra de origem não é a minha casa.
 
"Em todas as vezes em que estive em países civilizados, lindos, cultos, a trabalho ou a passeio, tratada a pão de ló, tive permanentemente essa sensação de que meu lugar seria, mesmo mesmo, aqui no Brasil. Esculhambado, colorido, hoje dolorido e preocupante, mas minha gente, minha fala, meu clima, minha alma, meu aconchego."

Aliás, há muitas décadas luto contra uma “frau” enérgica, prática, que se põe à minha frente mesmo agora, mãos nos quadris, quando no meio da tarde estou sonhando acordada na minha poltrona da sala, vendo – sem realmente enxergar – a bela paisagem, ou as nuvens, fora: “O quêêê? A essa hora de pernas pra cima sem fazer nada?”.

Na verdade, já não me impressiona muito essa outra Lya, que às vezes assume a forma da mãe, avós, tias, no mínimo sempre de tricô ou livro na mão na hora de “não fazer nada”. Para mim, isso que Freud chamava “atenção flutuante” é hora de trabalho: quando as coisas se forjam e formam dentro de mim, lá nas areiazinhas meio inconscientes do fundo do aquário. De modo que estou nesses dias, semanas, meses talvez, inventando uma casa: com porta de espiar, corredor de espelhos, sala da família, porão das aflições, pátio cotidiano, jardim das crianças e um canto dos deuses...

Só eles sabem o que vai sair disso, mas eu vou em frente: neste computador, ou diante dessa janela, inventando como quem solta fumacinhas de um cigarro arcaico. Porque em tempos remotos, confesso, até eu fumei... “Você fuma de frescura”, diziam os amigos. Logo deixei sem sofrimento o cigarro, a frescura, o perigo de doença, o acúmulo de rugas, o cheiro que hoje me enjoa. Aliás, na minha casa inventada será proibido fumar. (Mas a nuvenzinha, essa era bem simpática.)
---------
* Escritora.
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9801848.xml&template=3916.dwt&edition=31248&section=70 27/05/2017
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Peter Burke: “Você não sabe mais que seus ancestrais”


Peter Burke,historiador (Foto: Jeremy Sutton-Hibbert/Getty Images)

 O inglês Peter Burke. Ele marcou a história do conhecimento contemporâneo

O historiador fala de como a busca por conhecimento hoje é utilitária. E que ainda não sabemos se a internet é pró-democracia ou se é um mecanismo de controle

O professor inglês Peter Burke, doutor por Oxford, é um dos maiores estudiosos do que se convencionou chamar de história da cultura. Mais que um ramo de estudo, trata-se de um método. Nele, busca-se compreender uma sociedade e seu tempo por meio de símbolos e valores – e não em virtude de aspectos estritamente políticos ou econômicos. É dessa perspectiva que Burke explora, em seu novo livro, o papel do conhecimento em nossas vidas. Em O que é a história do conhecimento? (editora Unesp), recém-­lançado no Brasil, Burke defende que, a despeito da quantidade de informação que a humanidade acumula, o indivíduo de hoje não sabe mais que seus ancestrais – “sabe apenas coisas diferentes”, afirma. Burke diz ainda que só os historiadores do futuro estarão aptos a responder se a “internet é uma força pró-democracia ou uma ferramenta para que governo e empresas nos controlem”.

ÉPOCA – Como separar a história do conhecimento da história da cultura?
Peter Burke –
A história do conhecimento é uma parte substancial da história da cultura, não limitada ao mundo acadêmico, apesar de eu me concentrar nele. Há muitos conhecimentos. Alguns são necessários para pintar quadros, tocar instrumentos, escrever poemas, encenar. Em outras palavras, há conhecimentos para contribuir e também para apreciar o que chamamos de cultura. Esses conhecimentos não são os mesmos em toda parte do mundo. A história da arte, por exemplo, não diz muito sobre o saber necessário para produzir arte – a história da cultura é maior que a história do conhecimento.

ÉPOCA – Em qual momento a academia se interessou pela sabedoria popular, o conhecimento do boca a boca e do fazer manual?
Burke –
Isso ocorreu no começo do século XIX, quando o folclore se tornou um conteúdo organizado, estudado dentro das universidades. Mas é importante lembrar que, na história humana, o conhecimento acadêmico é relativamente recente – na Grécia Antiga e na China, ele ocorreu somente 2 mil ou 3 mil anos antes que no Ocidente. O conhecimento popular é muito mais antigo. Então, tem havido um longo processo de emprestar, testar e formalizar informações e saberes do folclore para o mundo dos “doutores profissionais”.

ÉPOCA – Os conhecimentos feminino e masculino sempre foram tratados de forma distinta?
Burke –
No domínio do conhecimento popular, há uma especialização entre os conhecimentos femininos – cozinhar, bordar, costurar – e os saberes masculinos – caçar, pescar, plantar. São conhecimentos separados, que são de alguma forma equivalentes. No mundo acadêmico, no entanto, as mulheres foram excluídas do conhecimento até o final do século XIX. Hoje, elas ainda permanecem como minoria nas instituições acadêmicas. A presença feminina tem crescido, mas ainda é muito inferior à masculina.

ÉPOCA – Ainda há preconceito de intelectuais em relação ao conhecimento popular?
Burke –
Acredito que as opiniões variam, não somente entre os intelectuais, mas também em relação aos diferentes tipos de conhecimento popular. Muitas pessoas de classe média apreciam arte popular e folclore. Algumas acreditam em curas folclóricas, por exemplo, entre outras formas de medicina alternativa. É certo que intelectuais de esquerda levam mais a sério o conhecimento popular do que os de direita.

ÉPOCA – Que tipos de conhecimentos populares são mais bem-aceitos e quais sofrem ou sofreram mais preconceito?
Burke –
Penso que a maioria de nós não encara pessoas que deixaram a escola aos 16 anos como tolas. Elas decidem diariamente, inúmeras vezes, de forma tão racional quanto nós fazemos. Quando o assunto são questões sobrenaturais, elas normalmente não têm muito senso crítico. Acreditam em extraterrestres. Talvez esse seja um preconceito meu. Ao menos, é um preconceito confesso.

ÉPOCA – Há quem chame a fase em que vivemos de era do conhecimento. O senhor concorda com isso?
Burke –
Há mais ênfase no conhecimento agora, levando em conta que há um número maior de profissões que requerem conhecimento no lugar de força física. Acho que o termo correto seria economia do conhecimento. Pode parecer preciosismo, mas fico pouco à vontade com a ideia de que a sociedade do conhecimento começou no fim do século XX, como se as pessoas que viveram antes fossem ignorantes. Conhecimentos têm sido necessários para nossa sobrevivência desde o começo da história da humanidade. Hoje, a humanidade pode saber bem mais do que já soube em outra era, mas esse não é o caso dos indivíduos. Os indivíduos de hoje não sabem mais, sabem apenas coisas diferentes do que outros souberam no passado.

ÉPOCA – Em séculos passados, quem detinha algumas fontes de informação – livros, manuscritos – detinha o próprio conhecimento. Atualmente, a informação está por todo lugar. Como distinguir a informação do conhecimento nos dias de hoje?
Burke –
Informação é algo relativamente cru. Conhecimento, em relação à informação, é algo cozido, que teve tempo de ser processado. Processar significa verificar, classificar, sistematizar. Sabedoria é o produto final disso tudo. O conhecimento armazenado em livros e manuscritos já foi a forma mais prestigiada de saber. Naquela fase, havia uma forma de conhecimento dominante, e todos os outros ficavam subordinados a ela. Hoje, vivemos num sistema de conhecimento policêntrico.

ÉPOCA – A quantidade de informações a que temos acesso gera consequências negativas?
Burke –
Quanto mais informação disponível, mais difícil é encontrar e selecionar o que alguém quer ou precisa. Por isso, a sensação de estarmos afogados em informação. É um problema desta época que não existia no passado. E não é um problema banal.

ÉPOCA – Em seu livro, o senhor fala da mudança de uma fase em que a sociedade dava valor ao “saber o porquê” para a presente, em que se dá valor ao “saber como”. Do que se trata?
Burke –
“Saber o porquê” é um atalho para o que chamo de conhecimento acadêmico. “Saber como” é um atalho que uso para designar habilidades como saber dirigir, saber negociar, saber ganhar dinheiro. Hoje, os interesses estão mais voltados para “saber como”. Isso ocorre porque a busca pelo conhecimento [o acadêmico, inclusive] está mais calcada na funcionalidade. O conhecimento se transforma em ferramenta para a vida prática de forma muito mais ágil do que foi no passado.

ÉPOCA – O senhor diz que o que importa saber muda de acordo com a época. Pode explicar que impacto isso tem na formação da história do conhecimento?
Burke –
Se estou escrevendo a história do conhecimento da Idade Média, preciso falar muito sobre teologia e não me importarei com o estudo da natureza. Para escrever a história do século XX, preciso fazer exatamente o oposto. O que parece importante em um período pode ser pouco importante em outro.

ÉPOCA – No futuro, de que forma os historiadores do conhecimento deverão olhar para nossa era?
Burke –
Eles certamente se concentrarão na revolução digital. Certamente conseguirão responder à pergunta com que nos debatemos hoje: a internet é uma força pró-democracia ou uma ferramenta para que governo e empresas nos controlem? É uma questão essencial para entendermos o momento presente e só poderá ser respondida no futuro. Eles certamente notarão o aumento do interesse em alguns pontos e o declínio de interesse em outros. Meu palpite é que o conhecimento baseado nos clássicos da literatura deverá ser menos essencial para uma boa educação do que foi para mim, quando eu era um estudante.
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Reportagem FLÁVIA YURI OSHIMA16/05/2017 
Fonte:  http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2017/05/peter-burke-voce-nao-sabe-mais-que-seus-ancestrais.html