O professor inglês Peter Burke,
doutor por Oxford, é um dos maiores estudiosos do que se convencionou
chamar de história da cultura. Mais que um ramo de estudo, trata-se de
um método. Nele, busca-se compreender uma sociedade e seu tempo por meio
de símbolos e valores – e não em virtude de aspectos estritamente
políticos ou econômicos. É dessa perspectiva que Burke explora, em seu
novo livro, o papel do conhecimento em nossas vidas. Em O que é a história do conhecimento?
(editora Unesp), recém-lançado no Brasil, Burke defende que, a
despeito da quantidade de informação que a humanidade acumula, o
indivíduo de hoje não sabe mais que seus ancestrais – “sabe apenas
coisas diferentes”, afirma. Burke diz ainda que só os historiadores do
futuro estarão aptos a responder se a “internet é uma força
pró-democracia ou uma ferramenta para que governo e empresas nos
controlem”.
ÉPOCA – Como separar a história do conhecimento da história da cultura?
Peter Burke – A história do conhecimento é uma parte substancial da história da cultura, não limitada ao mundo acadêmico, apesar de eu me concentrar nele. Há muitos conhecimentos. Alguns são necessários para pintar quadros, tocar instrumentos, escrever poemas, encenar. Em outras palavras, há conhecimentos para contribuir e também para apreciar o que chamamos de cultura. Esses conhecimentos não são os mesmos em toda parte do mundo. A história da arte, por exemplo, não diz muito sobre o saber necessário para produzir arte – a história da cultura é maior que a história do conhecimento.
ÉPOCA – Em qual momento a academia se interessou pela sabedoria popular, o conhecimento do boca a boca e do fazer manual?
Burke – Isso ocorreu no começo do século XIX, quando o folclore se tornou um conteúdo organizado, estudado dentro das universidades. Mas é importante lembrar que, na história humana, o conhecimento acadêmico é relativamente recente – na Grécia Antiga e na China, ele ocorreu somente 2 mil ou 3 mil anos antes que no Ocidente. O conhecimento popular é muito mais antigo. Então, tem havido um longo processo de emprestar, testar e formalizar informações e saberes do folclore para o mundo dos “doutores profissionais”.
ÉPOCA – Os conhecimentos feminino e masculino sempre foram tratados de forma distinta?
Burke – No domínio do conhecimento popular, há uma especialização entre os conhecimentos femininos – cozinhar, bordar, costurar – e os saberes masculinos – caçar, pescar, plantar. São conhecimentos separados, que são de alguma forma equivalentes. No mundo acadêmico, no entanto, as mulheres foram excluídas do conhecimento até o final do século XIX. Hoje, elas ainda permanecem como minoria nas instituições acadêmicas. A presença feminina tem crescido, mas ainda é muito inferior à masculina.
ÉPOCA – Ainda há preconceito de intelectuais em relação ao conhecimento popular?
Burke – Acredito que as opiniões variam, não somente entre os intelectuais, mas também em relação aos diferentes tipos de conhecimento popular. Muitas pessoas de classe média apreciam arte popular e folclore. Algumas acreditam em curas folclóricas, por exemplo, entre outras formas de medicina alternativa. É certo que intelectuais de esquerda levam mais a sério o conhecimento popular do que os de direita.
ÉPOCA – Que tipos de conhecimentos populares são mais bem-aceitos e quais sofrem ou sofreram mais preconceito?
Burke – Penso que a maioria de nós não encara pessoas que deixaram a escola aos 16 anos como tolas. Elas decidem diariamente, inúmeras vezes, de forma tão racional quanto nós fazemos. Quando o assunto são questões sobrenaturais, elas normalmente não têm muito senso crítico. Acreditam em extraterrestres. Talvez esse seja um preconceito meu. Ao menos, é um preconceito confesso.
ÉPOCA – Há quem chame a fase em que vivemos de era do conhecimento. O senhor concorda com isso?
Burke – Há mais ênfase no conhecimento agora, levando em conta que há um número maior de profissões que requerem conhecimento no lugar de força física. Acho que o termo correto seria economia do conhecimento. Pode parecer preciosismo, mas fico pouco à vontade com a ideia de que a sociedade do conhecimento começou no fim do século XX, como se as pessoas que viveram antes fossem ignorantes. Conhecimentos têm sido necessários para nossa sobrevivência desde o começo da história da humanidade. Hoje, a humanidade pode saber bem mais do que já soube em outra era, mas esse não é o caso dos indivíduos. Os indivíduos de hoje não sabem mais, sabem apenas coisas diferentes do que outros souberam no passado.
ÉPOCA – Em séculos passados, quem detinha algumas fontes de informação – livros, manuscritos – detinha o próprio conhecimento. Atualmente, a informação está por todo lugar. Como distinguir a informação do conhecimento nos dias de hoje?
Burke – Informação é algo relativamente cru. Conhecimento, em relação à informação, é algo cozido, que teve tempo de ser processado. Processar significa verificar, classificar, sistematizar. Sabedoria é o produto final disso tudo. O conhecimento armazenado em livros e manuscritos já foi a forma mais prestigiada de saber. Naquela fase, havia uma forma de conhecimento dominante, e todos os outros ficavam subordinados a ela. Hoje, vivemos num sistema de conhecimento policêntrico.
ÉPOCA – A quantidade de informações a que temos acesso gera consequências negativas?
Burke – Quanto mais informação disponível, mais difícil é encontrar e selecionar o que alguém quer ou precisa. Por isso, a sensação de estarmos afogados em informação. É um problema desta época que não existia no passado. E não é um problema banal.
ÉPOCA – Em seu livro, o senhor fala da mudança de uma fase em que a sociedade dava valor ao “saber o porquê” para a presente, em que se dá valor ao “saber como”. Do que se trata?
Burke – “Saber o porquê” é um atalho para o que chamo de conhecimento acadêmico. “Saber como” é um atalho que uso para designar habilidades como saber dirigir, saber negociar, saber ganhar dinheiro. Hoje, os interesses estão mais voltados para “saber como”. Isso ocorre porque a busca pelo conhecimento [o acadêmico, inclusive] está mais calcada na funcionalidade. O conhecimento se transforma em ferramenta para a vida prática de forma muito mais ágil do que foi no passado.
ÉPOCA – O senhor diz que o que importa saber muda de acordo com a época. Pode explicar que impacto isso tem na formação da história do conhecimento?
Burke – Se estou escrevendo a história do conhecimento da Idade Média, preciso falar muito sobre teologia e não me importarei com o estudo da natureza. Para escrever a história do século XX, preciso fazer exatamente o oposto. O que parece importante em um período pode ser pouco importante em outro.
ÉPOCA – No futuro, de que forma os historiadores do conhecimento deverão olhar para nossa era?
Burke – Eles certamente se concentrarão na revolução digital. Certamente conseguirão responder à pergunta com que nos debatemos hoje: a internet é uma força pró-democracia ou uma ferramenta para que governo e empresas nos controlem? É uma questão essencial para entendermos o momento presente e só poderá ser respondida no futuro. Eles certamente notarão o aumento do interesse em alguns pontos e o declínio de interesse em outros. Meu palpite é que o conhecimento baseado nos clássicos da literatura deverá ser menos essencial para uma boa educação do que foi para mim, quando eu era um estudante.
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Reportagem FLÁVIA YURI OSHIMA16/05/2017
Fonte: http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2017/05/peter-burke-voce-nao-sabe-mais-que-seus-ancestrais.html
ÉPOCA – Como separar a história do conhecimento da história da cultura?
Peter Burke – A história do conhecimento é uma parte substancial da história da cultura, não limitada ao mundo acadêmico, apesar de eu me concentrar nele. Há muitos conhecimentos. Alguns são necessários para pintar quadros, tocar instrumentos, escrever poemas, encenar. Em outras palavras, há conhecimentos para contribuir e também para apreciar o que chamamos de cultura. Esses conhecimentos não são os mesmos em toda parte do mundo. A história da arte, por exemplo, não diz muito sobre o saber necessário para produzir arte – a história da cultura é maior que a história do conhecimento.
ÉPOCA – Em qual momento a academia se interessou pela sabedoria popular, o conhecimento do boca a boca e do fazer manual?
Burke – Isso ocorreu no começo do século XIX, quando o folclore se tornou um conteúdo organizado, estudado dentro das universidades. Mas é importante lembrar que, na história humana, o conhecimento acadêmico é relativamente recente – na Grécia Antiga e na China, ele ocorreu somente 2 mil ou 3 mil anos antes que no Ocidente. O conhecimento popular é muito mais antigo. Então, tem havido um longo processo de emprestar, testar e formalizar informações e saberes do folclore para o mundo dos “doutores profissionais”.
ÉPOCA – Os conhecimentos feminino e masculino sempre foram tratados de forma distinta?
Burke – No domínio do conhecimento popular, há uma especialização entre os conhecimentos femininos – cozinhar, bordar, costurar – e os saberes masculinos – caçar, pescar, plantar. São conhecimentos separados, que são de alguma forma equivalentes. No mundo acadêmico, no entanto, as mulheres foram excluídas do conhecimento até o final do século XIX. Hoje, elas ainda permanecem como minoria nas instituições acadêmicas. A presença feminina tem crescido, mas ainda é muito inferior à masculina.
ÉPOCA – Ainda há preconceito de intelectuais em relação ao conhecimento popular?
Burke – Acredito que as opiniões variam, não somente entre os intelectuais, mas também em relação aos diferentes tipos de conhecimento popular. Muitas pessoas de classe média apreciam arte popular e folclore. Algumas acreditam em curas folclóricas, por exemplo, entre outras formas de medicina alternativa. É certo que intelectuais de esquerda levam mais a sério o conhecimento popular do que os de direita.
ÉPOCA – Que tipos de conhecimentos populares são mais bem-aceitos e quais sofrem ou sofreram mais preconceito?
Burke – Penso que a maioria de nós não encara pessoas que deixaram a escola aos 16 anos como tolas. Elas decidem diariamente, inúmeras vezes, de forma tão racional quanto nós fazemos. Quando o assunto são questões sobrenaturais, elas normalmente não têm muito senso crítico. Acreditam em extraterrestres. Talvez esse seja um preconceito meu. Ao menos, é um preconceito confesso.
ÉPOCA – Há quem chame a fase em que vivemos de era do conhecimento. O senhor concorda com isso?
Burke – Há mais ênfase no conhecimento agora, levando em conta que há um número maior de profissões que requerem conhecimento no lugar de força física. Acho que o termo correto seria economia do conhecimento. Pode parecer preciosismo, mas fico pouco à vontade com a ideia de que a sociedade do conhecimento começou no fim do século XX, como se as pessoas que viveram antes fossem ignorantes. Conhecimentos têm sido necessários para nossa sobrevivência desde o começo da história da humanidade. Hoje, a humanidade pode saber bem mais do que já soube em outra era, mas esse não é o caso dos indivíduos. Os indivíduos de hoje não sabem mais, sabem apenas coisas diferentes do que outros souberam no passado.
ÉPOCA – Em séculos passados, quem detinha algumas fontes de informação – livros, manuscritos – detinha o próprio conhecimento. Atualmente, a informação está por todo lugar. Como distinguir a informação do conhecimento nos dias de hoje?
Burke – Informação é algo relativamente cru. Conhecimento, em relação à informação, é algo cozido, que teve tempo de ser processado. Processar significa verificar, classificar, sistematizar. Sabedoria é o produto final disso tudo. O conhecimento armazenado em livros e manuscritos já foi a forma mais prestigiada de saber. Naquela fase, havia uma forma de conhecimento dominante, e todos os outros ficavam subordinados a ela. Hoje, vivemos num sistema de conhecimento policêntrico.
ÉPOCA – A quantidade de informações a que temos acesso gera consequências negativas?
Burke – Quanto mais informação disponível, mais difícil é encontrar e selecionar o que alguém quer ou precisa. Por isso, a sensação de estarmos afogados em informação. É um problema desta época que não existia no passado. E não é um problema banal.
ÉPOCA – Em seu livro, o senhor fala da mudança de uma fase em que a sociedade dava valor ao “saber o porquê” para a presente, em que se dá valor ao “saber como”. Do que se trata?
Burke – “Saber o porquê” é um atalho para o que chamo de conhecimento acadêmico. “Saber como” é um atalho que uso para designar habilidades como saber dirigir, saber negociar, saber ganhar dinheiro. Hoje, os interesses estão mais voltados para “saber como”. Isso ocorre porque a busca pelo conhecimento [o acadêmico, inclusive] está mais calcada na funcionalidade. O conhecimento se transforma em ferramenta para a vida prática de forma muito mais ágil do que foi no passado.
ÉPOCA – O senhor diz que o que importa saber muda de acordo com a época. Pode explicar que impacto isso tem na formação da história do conhecimento?
Burke – Se estou escrevendo a história do conhecimento da Idade Média, preciso falar muito sobre teologia e não me importarei com o estudo da natureza. Para escrever a história do século XX, preciso fazer exatamente o oposto. O que parece importante em um período pode ser pouco importante em outro.
ÉPOCA – No futuro, de que forma os historiadores do conhecimento deverão olhar para nossa era?
Burke – Eles certamente se concentrarão na revolução digital. Certamente conseguirão responder à pergunta com que nos debatemos hoje: a internet é uma força pró-democracia ou uma ferramenta para que governo e empresas nos controlem? É uma questão essencial para entendermos o momento presente e só poderá ser respondida no futuro. Eles certamente notarão o aumento do interesse em alguns pontos e o declínio de interesse em outros. Meu palpite é que o conhecimento baseado nos clássicos da literatura deverá ser menos essencial para uma boa educação do que foi para mim, quando eu era um estudante.
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Reportagem FLÁVIA YURI OSHIMA16/05/2017
Fonte: http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2017/05/peter-burke-voce-nao-sabe-mais-que-seus-ancestrais.html
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