quinta-feira, 25 de maio de 2017

Deborah Levy: ""Eu não acho que alguém possa perceber os motivos de um autor sem conhecer algo de seu desenvolvimento anterior".

A escritora britânica nascida na África do Sul Deborah Levy, que virá à próxima Flip

GERAINT LEWIS/WRITER PICTURES? ASSOCIATED PRESS. A escritora britânica nascida na África do Sul, Deborah Levy 

Escritora confirmada para a Flip dá resposta feminista a Orwell

SYLVIA COLOMBO

Em 1946, George Orwell (1903-1950) dizia, em seu ensaio "Why I Write" (por que escrevo): "Eu não acho que alguém possa perceber os motivos de um autor sem conhecer algo de seu desenvolvimento anterior". E acrescentava: "Antes mesmo que ele comece a escrever, terá adquirido uma atitude emocional da qual nunca escapará completamente".

A primeira coisa que a britânica Deborah Levy, 58, apresenta sobre sua atitude emocional antes de iniciar o ensaio memorialístico "Coisas que Eu Não Quero Saber", que apresentará na Festa Literária Internacional de Paraty, é que ela vivia uma "primavera em que a vida estava muito difícil", e na qual ela "chorava nas escadas rolantes das estações de trem."

E é assim, armada de uma "leve autoironia que busca a empatia do leitor, mas mantendo certa formalidade", como explicou à Folha, que Levy constrói a voz condutora dos quatro capítulos que compõem o livro, a sair pela editora Autêntica.

Em cada um, a autora propõe uma "virada modernizadora e feminista" às quatro razões apresentadas por Orwell para justificar o ato de escrever: puro egoísmo, entusiasmo estético, impulso histórico e proposta política.

Por telefone, de Londres, Levy conta que pela primeira vez em sua trajetória —que já passeou pelo teatro, a ficção e a poesia— quis investigar mais a fundo suas memórias mais antigas da infância passada na África do Sul e da adolescência e parte da vida adulta, já no Reino Unido.

Nascida em Johannesburgo, filha de um ativista de direitos humanos em tempos de apartheid, Levy conta que seu espanto com relação ao sistema começou na escola.

"Eu via crianças brancas como eu jogarem pedras nas crianças negras que vinham revirar o lixo da escola. Os negros nos eram apresentados como 'o perigo', mas eu percebia claramente que os brancos é que eram perigosos."

Como filha de alguém ligado à luta política por uma mudança na sociedade, Levy conta que "para falar desse assunto, tinha que encontrar o meu modo de olhar, e este era o de uma criança, portanto mostro como se vivia o apartheid no dia a dia."

Discorre, então, sobre as memórias que tinha de sua babá, Zama, que tinha de despedir-se de sua filha, Thandiwe, e enviá-la ao bairro dos negros, para poder trabalhar.

Para não desanimar a criança, Zama se mostrava alegre, dizendo que a viagem de ônibus até o subúrbio seria boa "porque ela poderia mostrar os sapatos novos à avó".

Tendo crescido numa casa em que "se respirava a discussão sobre os direitos humanos", Levy conta que a cena lhe partia o coração.

"Que uma mãe negra tivesse de se separar de sua filha para cuidar dos filhos de uma mulher branca; e que ainda por cima tinha de mostrar-se alegre para não machucar a criança, como que para esconder dela essa dura realidade, para mim isso era um retrato nítido do apartheid."

Seu pai foi prisioneiro político de 1964 a 1968, quando Levy era embalada, antes de dormir, pelas histórias que sua mãe contava, também para lhe dar esperanças.

"Creio que essa foi uma das razões que me levaram a, no futuro, eu querer contar histórias", diz Levy.
Mas apenas quando o pai foi solto, e a família, obrigada a deixar o país, mudando-se para a Inglaterra, isso começou a se tornar possível.

"Eu lia sobre os autores franceses, sobre Sartre e Simone de Beauvoir, e queria aquela vida deles, em cafés, discutindo a existência humana." Só que, na Londres na qual se instalara, não existia tal cultura de cafés intelectualizados, ao menos não para uma garota de 16 anos.

"Então fui buscar algo parecido a isso e ia a um bar onde motoristas de ônibus conversavam. Ali tanto eles como eu podíamos pagar por um café da manhã. E foi onde aprendi que, quando você está sozinha num lugar público, mas está escrevendo, as pessoas te deixam em paz. E eu gostei dessa sensação."

O ambiente ao redor, ainda que amigável, exalava uma tensão que não lhe passava despercebida. Eram anos de governo conservador e de muitas greves. Mas a tomada de consciência não se converteu então em escritura.

"Só o que eu conseguia escrever no meu guardanapo era a palavra 'Inglaterra'. Era um processo de começar a pertencer a este lugar", recorda. "Minha mãe dizia que vivíamos no exílio, que era temporário e que voltaríamos à África, mas comecei a me conectar com o que hoje é minha casa e tem outro nome. Naquela época, ele aparecia na minha letra de adolescente em guardanapos engordurados e dizia apenas: Inglaterra."

Vivendo até hoje no norte de Londres, Deborah Levy dedica-se quase exclusivamente à literatura. Mas a autora de "Nadando de Volta para Casa" (Rocco, 2014), livro indicado para o Man Booker Prize de 2012, confessa que seu "elemento natural é a água".

"Paro para nadar todos os dias. Levo maiô para onde for, mesmo no inverno", conta.

"Quando escrevemos é como estar num voo de 12 horas, por isso preciso me esticar e mover meu corpo por um tempo, todos os dias. Além disso, um escritor sempre se vê diante de entraves na escritura. E eu só consigo resolvê-los quando estou dentro da água e posso deixar que minha mente divague até encontrar uma saída para esses dilemas literários."
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Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1886968-escritora-confirmada-para-a-flip-da-resposta-feminista-a-orwell.shtml

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