terça-feira, 6 de setembro de 2011

Mary Kaldor: “Vivemos a era da política do medo”

Mary Kaldor, professora da London School of Economics (Foto: 
Divulgação)

Os ataques de 11 de setembro acabaram com os acordos multilaterais e serviram para nos levar de volta à política da insegurança. Nesta entrevista exclusiva a ÉPOCA, a especialista em conflitos e organizações sociais Mary Kaldor(foto),professora da London School of Economics, diz que vivemos hoje um momento muito similar ao que ocorria na Guerra Fria. “Mas desta vez o inimigo não é um Estado, é o terrorismo. Vivemos um enfraquecimento da ONU e das organizações multilaterais e um recrudescimento do nacionalismo em muitos países europeus e mesmo nos Estados Unidos.”

A professora da London School of Economics compara a atual conjuntura internacional com o período da Guerra Fria. "Mas desta vez o inimigo não é um Estado, é o terrorismo."

ÉPOCA – Que condições fizeram o mundo chegar ao 11/9? O que foi gestado antes para que um acontecimento dessa dimensão viesse a ocorrer?
Mary Kaldor – Os anos 1990 foram um período repleto de esperanças. Acreditava-se que seria possível humanizar a globalização, e seria possível usar a máquina internacional para acabar com as guerras. As organizações multinacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a própria União Europeia, e as Organizações não-governamentais ganharam uma relevância poucas vezes vista antes. Mas a política de intervenção em países em crise continuou sendo a mesma: a intervenção militar, dos Estados Unidos ou da Otan. Todas as vezes que a comunidade internacional adotou essa postura intervencionista fez uma confusão generalizada, porque nunca esteve preparada para enfrentar os desafios impostos por essas sociedades. O que nos levou aos ataques de 11 de setembro foi um descontentamento crescente com a política de intervenção regional da comunidade internacional.

ÉPOCA – Muitos disseram que os atentados de 11/9 haviam mudado o mundo. Essa avaliação continua válida dez anos depois?
Kaldor – Sem dúvida. Os ataques de 11 de setembro serviram para nos levar de volta à política da insegurança. Vivemos a era da política do medo, algo muito similar ao que ocorria na Guerra Fria, mas dessa vez o inimigo não era um Estado, mas o terrorismo. O mundo mudou com isso. Vimos um enfraquecimento da ONU e das organizações multilaterais, uma recrudescimento do nacionalismo em muitos países europeus e mesmo nos Estados Unidos. Os efeitos geopolíticos do 11 de setembro continuam a nos assustar.

ÉPOCA – Hoje estaríamos discutindo um EUA mais “low-profile” se os ataques não tivessem ocorrido?
Kaldor – Não acredito nisso. Se os atentados não tivessem acontecido, o complexo industrial militar americano teria de se reinventar de alguma maneira. Os atentados serviram para legitimar as fantasiosas “ameaças assimétricas” desenvolvidas pelos estrategistas americanos que sonhavam com um papel relevante para o Exército americano com o fim da Guerra Fria. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial há longos ciclos de desenvolvimento industrial militar. Os custos se reduzem por um tempo, e depois novas armas são desenvolvidas e demandam um investimento maior. Os Estados têm um comprometimento com as indústrias de defesa que não têm, por exemplo, com a indústria do aço ou do carvão. É um comprometimento justificado pelos interesses nacionais e pela preocupação da população com a segurança. São preocupações que moldam nossas estruturas políticas e econômicas.

ÉPOCA – Passados dez anos dos atentados, o que se pode esperar daqui a dez anos sobre a relação de forças no mundo?
Kaldor – O mundo hoje é mais pacífico do que em qualquer momento do último século. Em grande parte isso se deve aos esforços feitos nos anos 1990. Há 20 anos havia mais guerras e mais pessoas sendo mortas em guerras. O massacre que ocorre no Iraque e no Afeganistão não tem paralelo com os níveis de matança que encontramos nas guerras da ex-Iugoslávia ou do genocídio em Ruanda. A chance de uma pessoa morrer de uma doença ou em um desastre natural é muito maior do que em uma guerra. Ainda assim nos sentimos menos seguros, porque vivemos a política do medo. Isso não deve mudar tão cedo, apesar dos esforços de muitos políticos e da sociedade civil. Há sinais evidentes de que é vantajoso continuar com essa política. Até hoje as armas nucleares são vistas como símbolos de soberania, garantia de que um Estado não será invadido. Esse equilíbrio pela força será mantido ainda por muitos anos, e o maior risco que corremos não é o terrorismo, mas as guerras convencionais patrocinadas por Estados.

ÉPOCA – O termo “guerra ao terrorismo” foi gradualmente abandonado pelos EUA, já no final do governo de George W. Bush. Pode-se dizer que alguém a ganhou?
Kaldor – Ninguém ganhou ou ganhará essa guerra. O fim de Bin Laden serviu para enfraquecer a Al Qaeda. Mas eles se fortaleceram principalmente depois da “guerra ao terror”. Em vez de ser tratado como um criminoso, Bin Laden foi tratado como inimigo em uma guerra, e se tornou um igual de George W. Bush, seu contraponto, e a Al Qaeda o contraponto da política americana. Dessa maneira legitimamos o papel de Bin Laden. Ele deveria ter sido tratado como criminoso desde o princípio.

ÉPOCA – Qual o legado dessa guerra, especialmente depois da morte de Osama Bin Laden?
Kaldor – O legado que a Guerra ao Terror nos deixou é o fechamento dos canais de diálogo e cooperação multilateral para os grandes desafios globais, o terrorismo entre eles. A morte de Osama Bin Laden com certeza enfraqueceu a Al Qaeda, mas não mudou o cenário de dificuldade de cooperação e da política do medo. Nos sentimos menos seguros justamente por causa da retórica da guerra ao terror. Como na Guerra Fria, a Guerra ao Terror permitiu a supressão do debate e a restrição de liberdades. A política do medo permitiu à classe política se sustentar por meio do apelo ao preconceito.

ÉPOCA – Cresce na opinião pública e em boa parte da classe política americana a ideia de que os EUA precisam se concentrar mais em seus problemas internos. Dez anos depois do 11/9, que impulsionou uma nova fase de engajamento militar e político dos EUA com o exterior, estaria a superpotência abrindo mão de seu papel de liderança mundial?
Kaldor – Nosso pensamento hoje ainda é baseado no fim da Segunda Guerra Mundial: o domínio dos Estados Unidos, a superpotência ocidental, se esforçando em uma luta global entre o bem e o mal. É uma forma de pensar arraigada, sustentada por 50 anos de Guerra Fria. Tivemos o breve período da década de 1990, quando palavras como "humanismo" e "sociedade civil" ganharam força, mas foram vencidas pela “guerra ao terror”. A noção americana de uma luta cósmica entre o bem (o Ocidente) e o mal (o Islã) continua. O governo de Barack Obama e a crise econômica mudaram um pouco essa visão, mas muito mais por preocupações internas, com a situação política e econômica dos Estados Unidos, do que pelo crescimento de uma noção alternativa, com base no projeto de respeito às culturas locais, pelos direitos humanos e pela governança global.

ÉPOCA – A senhora acredita em declínio dos EUA?
Kaldor – Ainda vivemos uma fase de transição. Há duas décadas era comum ler e ouvir analistas que cantavam esse declínio dos Estados Unidos. O que acontecia na verdade era um declínio do modelo fordista, ocorrido nos anos 1970. O excesso de produção de veículos, a crise do petróleo, a mudança no mercado de trabalho e os altos gastos com Defesa levavam todos a acreditar nesse declínio. O boom econômico dos anos 1990, mesmo em meio a algumas crises, fez os Estados Unidos continuarem como força econômica, e muitos deixaram a idéia da queda da super-potência para trás. Os Estados Unidos continuarão a ser uma potência influente em qualquer cenário que se pinte para as próximas décadas, tanto por seu poder econômico como pelo seu poder militar e de persuasão. Mas não será um poder hegemônico como no passado, por causa das mudanças internas e também do realinhamento global de forças.
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Reportagem por RODRIGO TURRER
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Mundo/noticia/2011/09/mary-kaldor-vivemos-era-da-politica-do-medo.html

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