sexta-feira, 4 de maio de 2012

A decisão do STF e a realidade brasileira

Alberto Carlos Almeida*


Quando o tema é o preconceito de cor no Brasil cumpre fazer duas perguntas importantes, que condicionam grande parte do debate sobre a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de, por unanimidade, considerar legal as cotas para estudantes negros em universidades. Em primeiro lugar, é preciso saber se há ou não preconceito de cor, se há ou não racismo. Em segundo lugar, cabe perguntar se, no caso de realmente haver racismo, se nós, brasileiros, queremos combatê-lo. É óbvio que a resposta politicamente correta é "sim". Quem seria contra combater o preconceito baseado na cor? Há uma pletora de defensores do politicamente incorreto, mas nenhum ousou (ainda) defender abertamente o preconceito racial.
O brasileiro não diferencia as pessoas pela raça, mas pela cor. O contraste com os Estados Unidos esclarece essa afirmação: lá, quando uma pessoa é descendente de negros, ainda que tenha a cor de pele clara, é considerada negra ou, na terminologia mais moderna, afrodescendente. Nosso padrão cultural é inteiramente diferente: os brasileiros não consideram importante a descendência, mas a cor da pele. Aqui não faz o menor sentido classificar um branco de afrodescendente, mas nos Estados Unidos faz. Exatamente por isso, é inútil escrever artigos no Brasil afirmando que raça não existe ou coisas do gênero. O brasileiro já pensa assim. Aliás, para efeitos deste artigo, trataremos preconceitos de cor e de raça como sinônimos, mas o que temos em mente mesmo é o preconceito baseado na cor, uma vez que ele existe no Brasil.
Quando meu livro "A Cabeça do Brasileiro" foi lançado, em 2007, o grande debate suscitado se deu em torno da escolaridade e de seus efeitos sobre a mentalidade. Praticamente nada se falou sobre três capítulos do livro dedicados ao tema do preconceito de cor. Creio que o que motivou essa lacuna no debate sobre o livro foi um fato tão simples quanto cruel: ficou demonstrado que nós, brasileiros, somos racistas, temos preconceito de cor. Isso foi feito por meio de uma pesquisa de opinião. Perguntamos aos brasileiros: "Vocês são racistas?" Eles responderam: "Sim, somos."
É óbvio que não fizemos a pergunta diretamente, mas por meio de uma metodologia que utilizou fotos. Apresentamos oito fotos de brasileiros cuja principal diferença era a cor. Em primeiro lugar, perguntamos qual a cor de cada um deles. Há um consenso nacional sobre o que é ser preto, pardo e branco no Brasil. Em todas as regiões e em todas as classes sociais, o padrão de respostas foi idêntico. As pessoas das fotos 1, 2 e 3 foram classificadas como brancas; as três das fotos 4, 5 e 6 foram consideradas pardas e os pretos foram as pessoas das fotos 7 e 8. Esse resultado derrubou um mito, aquele de que, à medida que se vai para a região Sul, o pardo é visto menos como pardo e mais como preto.
Em seguida, mostrando-se novamente o cartão com as oito pessoas, perguntamos, dentre outras coisas, qual deles 1) parecia ser um criminoso, 2) o mais honesto, 3) o que tem modos mais educados, 4) o mais inteligente. O resultado demostrou que, quando se analisa a cor das pessoas, nada é melhor no Brasil do que ser branco. Aliás, nada melhor do que ser branco e nada pior do que ser pardo. Nos três atributos positivos, os brancos são os preferidos e os menos citados são os pardos, ao passo que no atributo negativo os mais mencionados são os pardos. Note-se que os entrevistados tinham como opção de resposta "não é possível responder olhando as fotos".
A pesquisa é bem mais ampla que isso e todos os dados validam a conclusão que inferimos das perguntas: há preconceito de cor no Brasil. O preconceito de cor no Brasil é forte e bem arraigado. Além disso, é variado, atingindo de maneira diferente pardos, pretos e brancos. Avaliamos também, por meio de um experimento em que não a cor não variava, mas variava a classe social, se o preconceito é de cor ou de classe. Isolados os efeitos estatísticos da cor e da classe social, provamos, como sempre, o óbvio: o preconceito é de cor, não é de classe.
Dito isso, é mais do que louvável a decisão do STF em relação às cotas. A análise do preconceito de cor indica, porém, algumas dificuldades para a implementação de uma política de cotas no Brasil. A pesquisa que resultou no "A Cabeça do Brasileiro" comprovou que é possível classificar diferentes pessoas segundo os critérios de cor do IBGE, isto é, preto, pardo e branco. Há uma grande coerência na escala de cores das oito fotos. Todavia, ela também mostrou que vários fatores vão dificultar a implementação da política de cotas no Brasil.
Em primeiro lugar, o preconceito é maior contra os pardos do que contra os pretos. Uma política de cotas que venha a favorecer mais as pessoas mais pretas, e um pouco menos as pessoas mais pardas, estará favorecendo aqueles que são menos prejudicados pelo preconceito. Em segundo lugar, apesar de o preconceito ser maior contra os pardos, a população afirma que os mais pobres e os que têm menos chances e oportunidades na vida são os pretos. Se essa avaliação estiver baseada em uma "discriminação estatística", aquela que existe porque a maioria das pessoas com determinada característica tem determinado papel ou ocupa certa posição social, então uma política de cotas que favoreça as maiores vítimas do preconceito, os pardos, estará desconsiderando e será mesmo injusta com aqueles que têm menos oportunidades e são os mais pobres, os pretos.
Em terceiro lugar, a pessoa da foto 3 é um branco nordestino, característica regional reconhecida nacionalmente pelos brasileiros. Justamente por isso, detectamos que ser nordestino (ainda que branco) pode ser uma barreira importante para a melhoria de vida. Se compararmos a avaliação que a população faz dos brancos não nordestinos (fotos 1 e 2) com o branco nordestino (foto 3), será notado que o branco nordestino é vítima de preconceito. Além disso, ele é considerado o mais pobre por um mesmo percentual de pessoas que consideram o preto da foto 7 como o mais pobre. Portanto, uma política de cotas que desconsidere a situação dos nordestinos brancos (em particular os que vivem no Sudeste e no Sul) provavelmente estará cometendo injustiças.
Além disso, há diferenças importantes entre os pretos e entre os pardos. O preto da foto 8 é muito mais vítima do preconceito do que o preto da foto 7. O preto da foto 7 ocupa a segunda melhor posição em "mais honesto" e terceira melhor posição em "ter bons modos" - e em ambos os casos é muito melhor posicionado do que preto da foto 8. Se levarmos a sério a noção de preconceito, isso significa que alguns pretos terão muito mais dificuldade do que outros. A pesquisa indica que não é apenas a cor que importa, ainda que seja preponderante, para explicar o preconceito. Os traços da face, como a grossura dos lábios e o formato do nariz, são também importantes. Assim, uma política de cotas equânime e que almeje a legitimidade terá que levar em consideração tais fatores.
As dificuldades que estamos apontando não significam, de forma alguma, que a política de cotas no Brasil não contribua para combater o racismo. O que queremos mostrar é que, dadas as especificidades brasileiras, políticas que desfrutam de grande consenso social e legitimidade em um país, os Estados Unidos, devem ser adaptadas com muito cuidado em circunstâncias sociais diferentes.
A classificação da cor e raça das pessoas é algo socialmente construído. Uma classificação de cor ou raça segundo as categorias preto, pardo e branco é algo totalmente inconcebível e sem sentido nos Estados Unidos. Por outro lado, a ausência de pontos intermediários entre branco e preto (situação americana) é inaceitável no Brasil. Além do mais, o preconceito é também socialmente construído, varia muito e pode ser uma barreira social importante, mesmo para aqueles que não são pardos nem pretos, que é o caso do nordestino branco da foto.
Esses resultados servem de aviso aos navegantes. Políticas de cotas funcionariam melhor com adaptações para as condições brasileiras, e não simplesmente copiando-se a divisão americana entre somente duas cores. Nós, brasileiros, reconhecemos e aceitamos muito mais o meio-termo do que os americanos. Precisamos aceitar as especificidades do Brasil.
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*Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo". E-mail: Alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
Fonte: Valor Econômico on line, 04/05/2012

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