Contemplação
A experiência cristã tem em si uma força
intrínseca de irradiação, para o mundo, da beleza que salva. A fé, a
esperança, a caridade, vividas no mundo e celebradas na liturgia, são
fonte de uma cultura humanístico-social, na medida em que são
portadoras de atitudes e comportamentos pessoais e sociais, nos vários
âmbitos da convivência humana: o testemunho do mistério, a experiência
da fraternidade, o espírito da reconciliação e da paz, o sentido da
partilha e da solidariedade, a força da esperança, a busca da justiça, a
experiência da Igreja como «casa e escola de comunhão», as atitudes de
acolhimento e hospitalidade, a dimensão festiva da vida, a celebração
do domingo como principio de humanização e de repouso interior e
exterior dos homens com Deus, com os outros e com a natureza, são
atitudes fundamentais que configuram uma espiritualidade incarnada no
mundo, contributo indispensável para construir a civilização da Beleza e
do Amor.
Não há beleza sem amor; e onde há amor, ai há beleza!
A contemplação da beleza
O belo é para contemplar. E da ordem do olhar, e
não do tato. Uma cultura sem beleza e uma cultura sem contemplação; e
uma cultura sem contemplação é uma cultura sem beleza. Mas a
contemplação requer uma conversão do olhar interior e exterior, requer o
despertar da capacidade simbólica do homem, a unidade de concentração
dos sentidos corpóreo-espirituais.
A uma sociedade como a nossa, que quer viver
tudo em pouco tempo, é preciso opor e propor a coragem do longo prazo,
do tempo, da liberdade e da concentração do espírito e dos sentidos. O
ritmo da sociedade apressada, pressionada, stressada não e conciliável
com a verdadeira perceção, a interiorização, o deslumbramento e a
contemplação.
A velocidade a qual se sucedem as imagens de um
videoclip não nos permite olhá-las verdadeiramente. Hoje, aprende-se a
falar de uma obra, mas não se aprende a deixar-se penetrar pelo sentido
real que nela está presente e que dela emana.
É preciso encorajar tudo o que estimula a nossa
faculdade de contemplação, para que a beleza nos atraia, nos
transforme. Paul Ricoeur falava da «segunda ingenuidade», tão
necessária, depois do Século das Luzes. Não é um sinal de fraqueza, mas
antes de grandeza do homem, deixar-se emocionar, porventura até às
lágrimas, pelo Belo e pela Beleza que salva.
Jean Guitton, falando da arte, cita esta frase
de Braque: «A obra de arte começa por um problema e acaba por uma
oração». Falando nós da beleza, terminemos também com uma oração que é
uma obra de arte, um hino à Beleza que salva, e nos convida a
contemplá-la: «Bem eu sei a fonte que mana e corre», de S. João da Cruz,
em que Deus, no seu amor trinitário, é o mistério da fonte, e o mundo e
os homens são o mistério da sede:
Bem eu sei a fonte que mana e corre,
Embora seja noite.
Embora seja noite.
Aquela eterna fonte não a vê ninguém
E bem sei onde é e donde vem,
Embora seja noite.
E bem sei onde é e donde vem,
Embora seja noite.
Não sei a fonte dela, que não há,
Mas sei que toda a fonte vem de lá,
Embora seja noite.
Mas sei que toda a fonte vem de lá,
Embora seja noite.
Não pode haver, eu sei, coisa tão bela
E céus e terra, beleza bebem dela,
Embora seja noite.
E céus e terra, beleza bebem dela,
Embora seja noite.
A claridade sua não escurece
E sei que toda a luz dela amanhece,
Embora seja noite.
E sei que toda a luz dela amanhece,
Embora seja noite.
Tão caudalosas são suas correntes
Que regam céus, infernos e as gentes,
Embora seja noite.
Que regam céus, infernos e as gentes,
Embora seja noite.
E esta eterna fonte está escondida
Em este vivo pão a dar-nos vida,
Embora seja noite.
Em este vivo pão a dar-nos vida,
Embora seja noite.
Aqui está a chamar as criaturas
Que bebem desta água, e às escuras,
Porque é de noite.
Que bebem desta água, e às escuras,
Porque é de noite.
Esta fonte viva que desejo,
Em este pão de vida, aí a vejo,
Embora de noite.
D. António Marto
Bispo de Leiria-Fátima
In O Evangelho da beleza, ed. Paulinas
Bispo de Leiria-Fátima
In O Evangelho da beleza, ed. Paulinas
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Fonte: http://www.snpcultura.org/a_civilizacao_da_beleza_e_do_amor.html 04/05/2012
Redigido em português de Portugal
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