sábado, 12 de maio de 2012

Vivendo o século 20

Keila Grinberg*

Como narrativas pessoais podem iluminar a história ou como a história pode abalar certezas e convicções individuais. A historiadora Keila Grinberg reflete sobre a relação entre biografia e análise histórica a partir do último livro de Tony Judt, recém-lançado nos Estados Unidos.

Em seu último livro, o historiador Tony Judt fala como o holocausto, tema pouco recorrente em sua obra, 
é determinante para a história intelectual do século 20 e como aspectos supreendentes 
do período impactaram sua vida. (foto: Ellingsaeter/ Sxc.hu) 
 
Thinking the twentieth century é leitura essencial para todos aqueles que querem saber o que os historiadores contemporâneos têm a dizer. Ele mostra que historiadores podem questionar suas próprias hipóteses, examinar suas próprias certezas e ver as maneiras pelas quais suas próprias vidas são moldadas e ajustadas pelo seu século.” Quem disse isso foi o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-), em evento que homenageou o também historiador britânico Tony Judt (1948-2010), ocorrido no King’s College, em Cambridge, Inglaterra, em março passado. Sua fala foi depois publicada na London Review of Books.
Judt, falecido em 2010, vítima de distúrbio degenerativo conhecido como doença de Lou Gehrig, tem estado presente na mídia literária e acadêmicaprincipalmente na New York Review of Books, revista para a qual contribuía regularmente –, não só pelas homenagens póstumas que vem recebendo, mas principalmente por conta da publicação do livro Thinking the twentieth century (Pensando o século 20, em tradução livre). Trata-se de uma série de conversas de Judt com o também historiador Timothy Snyder, que acaba de ser lançada pela Penguin Press e tem publicação em português prevista para o início de 2013.
Capa Thinking the twentieth century 
Thinking the twentieth century é um livro curioso. Não só por ser resultado de uma série de conversas, o que por si só não é tão incomum, mas por ser uma história intelectual do século 20 contada, ou discutida, por alguém assumidamente definido como um intelectual do século 20. O resultado é uma história intelectual a partir de uma narrativa pessoal, que nos faz pensar não só sobre os temas específicos do livro, mas também sobre a própria relação entre biografia e objeto de estudo – o que, aliás, tanto Snyder quanto Judt fazem, respectivamente, no prefácio e no posfácio da obra.
O livro começa com as reflexões de Judt sobre a catástrofe sofrida pelos judeus da Europa Central e Oriental na primeira metade do século 20 – a destruição das comunidades judaicas europeias e o Holocausto – e termina com uma análise da falência da política norte-americana no mundo pós-Guerra Fria.

A insistente intervenção judaica

Todos os capítulos iniciam com observações sobre sua vida, para depois entrar na análise histórica propriamente dita. Logo no primeiro, ficamos sabendo que ele recebeu o nome Tony em memória da prima de seu pai, Toni, que morreu em Auschwitz. E assim, mesmo nunca tendo devotado seus estudos especificamente à história dos judeus, mesmo nunca tendo a questão judaica estado no centro de sua vida intelectual, ele admite que o tema vinha se colocando cada vez mais presente em suas preocupações, a ponto de afirmar que “a história intelectual do século 20 (e a história dos intelectuais do século 20) tem uma conformação específica”, “uma narrativa que insistentemente intervém e se intromete em qualquer balanço do pensamento do século 20 e de seus pensadores: a catástrofe dos judeus europeus”.

"Mesmo nunca tendo a questão judaica 
estado no centro de sua vida intelectual, 
ele admite que o tema vinha se colocando
 cada vez mais presente em 
suas preocupações"
 
Claro que, apesar de fazer essa relação a partir de sua própria experiência, Judt não pensava apenas em si próprio. Muito pelo contrário. Partindo de reflexões sobre o pensamento e as trajetórias de vida de intelectuais como Stefan Zweig, Hannah Arendt e seu colega Eric Hobsbawm, Judt abre espaço para se pensar por que importantes intelectuais do século 20 têm suas raízes nas escolas rabínicas das comunidades judaicas da Europa Oriental, a começar por Isaac Deutscher, que desistiu de ser rabino para virar marxista, cuja trilogia sobre Leon Trotsky foi devorada por Judt aos 13 anos. Judt não chega a elaborar uma resposta para isso, mas também não deixa de pensar o fenômeno como uma questão histórica ampla.
Interessante que essa relação entre biografia e análise histórica foi também pensada por vários outros judeus da contemporaneidade – intelectuais do século 20 –, seja como memória (que o próprio Judt também publicou, sob o título O chalé da memória), seja como história – mesmo que essas distinções não sejam tão claras assim. Basta citar o My German question (Minha questão alemã, em tradução livre), do alemão Peter Gay, a trilogia do búlgaro Elias Cannetti (A língua absolvida, Uma luz em meu ouvido e O jogo dos olhos, todos editados pela Companhia das Letras) e o livro do brasileiro Boris Fausto, Negócios e ócios (também publicado pela Companhia das Letras). Em todos esses livros – todos, aliás, leituras imprescindíveis –, seja à luz da microhistória, seja como ego-história, a narrativa é centrada no autor e as trajetórias individuais iluminam, cada qual à sua maneira, o contexto histórico mais amplo.

Em Thinking the twentieth century
o principal personagem não é o historiador, 
mas a história
 
A peculiaridade de Tony Judt em seu último livro é que ele o termina defendendo que a “invisibilidade retórica” ainda é a melhor maneira de escrita do historiador. A tal invisibilidade não significa uma pretensão à objetividade, nem mesmo abdicar de fornecer suas próprias opiniões sobre os temas analisados. Muito pelo contrário. Para ele, historiadores sem opiniões não são muito interessantes – e eu assino embaixo. Mas significa que ele não defende o uso de sua própria trajetória para iluminar aspectos do século 20, mas sim mostra como o desenrolar do século 20 – surpreendente em muitos aspectos, para ele – abalou suas próprias certezas e convicções, causando impacto profundo em sua vida.
Em Thinking the twentieth century, o principal personagem não é o historiador, mas a história.
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Keila GrinbergDepartamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)
Fonte:  http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/vivendo-o-seculo-20

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