"A austeridade não é uma fatalidade", disse o novo
presidente da França no dia de sua vitória, domingo passado. Os gregos,
que votaram nesse mesmo dia, parecem estar de acordo, assim como muitos
outros europeus. A frase de efeito de François Hollande não é incorreta,
mas precisa ser situada no contexto do drama em que se debate a Europa
desde 2007. Com particular intensidade desde que, há exatos dois anos,
os ministros da Fazenda europeus viraram o segundo fim de semana de maio
acertando a forma de evitar um então iminente calote grego, e o efeito
contágio que isso teria sobre outros países da região - e sobre seus
bancos.
Os gregos antigos entendiam de tragédias e as expressavam em seus
poemas épicos por meio de belas metáforas, Na Ilíada, o herói atacava
uma cidade que sabia que não conseguiria conquistar; e a cidade se
defendia valorosamente, sabendo que ao final seria derrotada. Uma pessoa
culta como Hollande talvez estivesse querendo dizer, metaforicamente,
que as coisas não precisam acontecer porque os deuses dos gregos antigos
assim haviam decidido. E que nossa vida e nosso futuro estão em nossas
mãos - como sempre estiveram. Nesse sentido, é correto dizer que a
austeridade, como muitas outras coisas na vida, não é uma fatalidade.
Mas a frase de Hollande, já como presidente eleito, expressou de
forma sintética o sentimento de milhões de europeus. E deu renovado
alento a um falso dilema, mais uma genérica dicotomia entre os
defensores da "austeridade" e seus antípodas, os defensores do
"crescimento", como se essa fosse a fundamental, óbvia - e fácil - opção
europeia.
Afinal, por que alguém preferiria sofrer as agruras da "austeridade"
quando poderia, livremente, escolher maior crescimento, renda e emprego,
votando em quem se proponha a trazê-los de volta - pela força de sua
vontade e capacidade para tal empreitada?
A propósito, Linhas de Falha, o belo livro de Raghuram Rajan, teve
sua edição brasileira lançada na semana passada. Vale citar o trecho a
seguir. "Governos democráticos não são programados para pensar em ações
que têm custos a curto prazo, mas que produzem ganhos a longo prazo -
que é o típico padrão de retorno de qualquer investimento. Que por vezes
governos façam estes investimentos é uma consequência ou de uma
liderança incomumente corajosa ou de um eleitorado que compreende os
custos de adiar escolhas difíceis. Liderança corajosa é coisa rara. Mas
também é raro um eleitorado informado e comprometido, porque os próprios
especialistas são muito confusos... o debate não leva a um consenso, os
moderados dentre o eleitorado não sabem bem no que acreditar, e o
resultado é que as escolhas de políticas seguem o caminho de menor
desconforto - até que a situação se torne insustentável".
Mas, como diz adiante o autor, "as democracias são necessariamente
generosas, enquanto que os mercados e a natureza não são". E nas
inevitáveis respostas a situações que se tornam insustentáveis, muitos
governos podem atingir os limites de suas capacidades (de tributar, de
gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir), ficando
tentados a seguir cursos indesejáveis de ação. Enquanto os políticos
hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para colocar a
economia no rumo apropriado para o crescimento de longo prazo, os
problemas se agravam e se tornam mais difíceis de resolver. Como diz
Rajan, "mais anos à deriva" levarão ao aumento dos encargos da dívida
pública, a mais direitos (ou expectativas de direitos) frustrados ou
inacessíveis e a um crescente número de desfavorecidos.
Devo dizer que estou dentre os inúmeros admiradores da "construção
europeia" após a 2.ª Guerra Mundial. O que os europeus investiram nesse
processo, ao longo de mais de 60 anos, permite certa confiança de que
serão capazes, ainda que a elevados custos, de se erguer à altura dos
enormes desafios atuais. Porque as lideranças políticas, econômicas e
culturais europeias sabem o que está em jogo. E, apesar de seu
conturbado processo decisório, deverão fazer o necessário.
O necessário hoje, a meu ver, já está acontecendo. Esse debate sobre
"austeridade versus crescimento", quando assim generalizado, é um falso
debate. Porém mesmo novas lideranças políticas comprometidas com (e
eleitas para) fazer "whatever it takes" (o que quer que seja necessário)
para retomar o crescimento sabem, e muito bem, que esta retomada, em
muitos países (inclusive na França), não pode ser realizada por meio do
aumento adicional dos seus já elevados déficits fiscais anuais e de seus
não menos elevados estoques de dívida pública. Na verdade, para muitos
países é fundamental reduzi-los, e não apenas não aumentá-los.
A discussão econômica séria hoje na Europa não é sobre se há ou não
necessidade de ajustes fiscais. É sobre a possibilidade de recalibrá-los
de maneira crível e factível (numa perspectiva de médio prazo) para que
a necessária redução dos déficits e dos estoques de dívida seja menos
intensamente concentrada nos primeiros anos e, portanto, não tenha
efeitos muito negativos sobre o crescimento. Isso é possível e, em
alguns casos, necessário. Mas a agenda do crescimento europeu, como a
nossa, transcende de muito essa questão.
Por certo, há limites para a austeridade, que podem ser de natureza
econômica ou político-social, e que sempre dependem do contexto
específico de cada país. Mas também é verdade que há limites para o
crescimento, que são ou deveriam ser conhecidos. Governos não decidem,
por meio de atos de vontade política, quais serão as taxas de
crescimento futuro de uma economia - só os ingênuos, ou arrogantes,
pensam assim.
Em resumo, há limites para austeridade, há limites para o crescimento
e há limites para o voluntarismo. Nenhum deles é uma fatalidade. Ainda
bem.
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* ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM.BR
Fonte: Estadão on line, 13/05/2012
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