Somos
obrigados a ouvir compulsivamente que “a divisão esquerda/direita não
faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posições políticas e
leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente
antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos
seu verdadeiro nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que
nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político ou, para ser
mais claro, de que não há mais nada a esperar da política, a não ser
discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico
hegemônico.
O comentário é de Vladimir Safatle na introdução do seu novo livro A esquerda que não teme dizer seu nome publicado por Carta Maior, 12-05-2012.
Eis o artigo.
Eis o artigo.
Um dos mantras preferidos dos últimos anos diz respeito ao pretenso
esgotamento do pensamento de esquerda. Seus sacerdotes são de dois
tipos. Os primeiros gostariam de ser vistos como os vitoriosos de uma
época terminada de conflito ideológico. Eles não cansam de afirmar que a
esquerda nunca passou de um arremedo de autoritarismo mal-disfarçado,
demandas infantis de proteção, ingenuidade a respeito das violências
animadas pelo mal radical e incompetência gerencial.
Durante décadas, esses intelectuais não tinham coragem de dizer claramente o que pensavam. Mas, animados pelo fim do socialismo real, com o consequente colapso dos partidos comunistas no Ocidente, pelo embaralhamento sistemático das políticas de sociais-democratas e conservadores, pela paranoia securitária da primeira década do século e por doses reforçadas de fundamentalismo cristão, eles podem agora afirmar todo seu conservadorismo e sua crença nas virtudes curativas do porrete da polícia.
O segundo tipo é composto de um séquito heteróclito de viúvas da esquerda. Com um olhar entristecido, elas afirmam que a esquerda está sem rumo desde a queda do Muro de Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo. Não dá mais para sonhar com Estado de Bem-Estar Social e coisas do tipo, nem ter explicações angelicais a respeito da violência. Falar em novas configurações do político é conversa de gente que não entendeu que a democracia parlamentar é, como costumava dizer um líder conservador, o pior governo, mas o único possível. As velhas agendas de crítica do poder, de identificação dos conflitos de classe e das práticas disciplinares presentes em nossas instituições poderiam muito bem ser trocadas por uma boa ação social em ongs ecológicas, de preferência aquelas financiadas por bancos e grande corporações.
Várias dessas viúvas, principalmente em países europeus, não temeram flertar com o pior do nacionalismo e do culto da identidade, travestindo tudo isso de luta do Ocidente liberal contra o Oriente islâmico amedrontado pelo inelutável processo de modernização.
De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de esquerda encontrou no Brasil um terreno profícuo. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), tínhamos de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam Marx para justificar o caráter inevitável da globalização e de nossa inserção “dependente” e subalterna. O único resultado concreto desse cinismo foi impor um dito “choque de realidade”, visando a acabar de vez com o pretenso fantasma do “Estado getulista”, com seus tentáculos ineficientes. Por muito pouco, não se destrói o que restava da capacidade estatal de construção de políticas de intervenção econômica, capacidade cuja importância ficou evidente depois da crise mundial de 2008.
Como se isso não bastasse, a desconsideração soberana por movimentos sociais e por setores organizados da sociedade civil – à parte a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) – foi regra nesse período. Só a título de exemplo, o líder do governo de Fernando Henrique Cardoso no Congresso não temia chamar ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de “terrorismo”. Da mesma forma, a questão social era tão ausente que seu presidente do Banco Central não via problemas em ir à televisão e sugerir pura e simplesmente a supressão do parágrafo da Constituição Federal que obrigava o Estado a garantir a universalização do serviço público de saúde.
Com o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), no entanto, continuamos obrigados a conviver com o bloqueio reiterado da reconstrução dos fundamentos gerais do campo do político, como se a imersão na “pior política” fosse uma fatalidade intransponível. A despeito de sua capacidade de colocar a questão social enfim no centro do embate político e de compreender o necessário caráter indutor do Estado brasileiro no nosso desenvolvimento socioeconômico, o governo Lula será lembrado, no plano político, por sua incapacidade de sair dos impasses de nosso presidencialismo de coalizão. Como se a governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista, de baixa participação popular direta e com eleições em que só se ganha mobilizando, de maneira espúria, a força financeira com seus corruptores de sempre.
Nos dois casos, esmerou-se em utilizar um palavreado de esquerda para justificar business as usual. O que acaba por reforçar nossa impressão de que o político na contemporaneidade seria apenas a dimensão da ausência de criatividade e das limitações de nossas aspirações de mudança. Por isso, somos obrigados a ouvir compulsivamente que “a divisão esquerda/direita não faz mais sentido”.
Mesmo que ainda encontremos posições políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político ou, para ser mais claro, de que não há mais nada a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. Não se trata mais de pensar a modificação dos padrões de partilha de poder, de distribuição de riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questão de gestão de modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que ao mesmo tempo se afirmam como os únicos possíveis.
A função atual da esquerda é, por isso, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente políticas que devem voltar a frequentar o debate social.
Durante décadas, esses intelectuais não tinham coragem de dizer claramente o que pensavam. Mas, animados pelo fim do socialismo real, com o consequente colapso dos partidos comunistas no Ocidente, pelo embaralhamento sistemático das políticas de sociais-democratas e conservadores, pela paranoia securitária da primeira década do século e por doses reforçadas de fundamentalismo cristão, eles podem agora afirmar todo seu conservadorismo e sua crença nas virtudes curativas do porrete da polícia.
O segundo tipo é composto de um séquito heteróclito de viúvas da esquerda. Com um olhar entristecido, elas afirmam que a esquerda está sem rumo desde a queda do Muro de Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo. Não dá mais para sonhar com Estado de Bem-Estar Social e coisas do tipo, nem ter explicações angelicais a respeito da violência. Falar em novas configurações do político é conversa de gente que não entendeu que a democracia parlamentar é, como costumava dizer um líder conservador, o pior governo, mas o único possível. As velhas agendas de crítica do poder, de identificação dos conflitos de classe e das práticas disciplinares presentes em nossas instituições poderiam muito bem ser trocadas por uma boa ação social em ongs ecológicas, de preferência aquelas financiadas por bancos e grande corporações.
Várias dessas viúvas, principalmente em países europeus, não temeram flertar com o pior do nacionalismo e do culto da identidade, travestindo tudo isso de luta do Ocidente liberal contra o Oriente islâmico amedrontado pelo inelutável processo de modernização.
De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de esquerda encontrou no Brasil um terreno profícuo. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), tínhamos de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam Marx para justificar o caráter inevitável da globalização e de nossa inserção “dependente” e subalterna. O único resultado concreto desse cinismo foi impor um dito “choque de realidade”, visando a acabar de vez com o pretenso fantasma do “Estado getulista”, com seus tentáculos ineficientes. Por muito pouco, não se destrói o que restava da capacidade estatal de construção de políticas de intervenção econômica, capacidade cuja importância ficou evidente depois da crise mundial de 2008.
Como se isso não bastasse, a desconsideração soberana por movimentos sociais e por setores organizados da sociedade civil – à parte a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) – foi regra nesse período. Só a título de exemplo, o líder do governo de Fernando Henrique Cardoso no Congresso não temia chamar ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de “terrorismo”. Da mesma forma, a questão social era tão ausente que seu presidente do Banco Central não via problemas em ir à televisão e sugerir pura e simplesmente a supressão do parágrafo da Constituição Federal que obrigava o Estado a garantir a universalização do serviço público de saúde.
Com o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), no entanto, continuamos obrigados a conviver com o bloqueio reiterado da reconstrução dos fundamentos gerais do campo do político, como se a imersão na “pior política” fosse uma fatalidade intransponível. A despeito de sua capacidade de colocar a questão social enfim no centro do embate político e de compreender o necessário caráter indutor do Estado brasileiro no nosso desenvolvimento socioeconômico, o governo Lula será lembrado, no plano político, por sua incapacidade de sair dos impasses de nosso presidencialismo de coalizão. Como se a governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista, de baixa participação popular direta e com eleições em que só se ganha mobilizando, de maneira espúria, a força financeira com seus corruptores de sempre.
Nos dois casos, esmerou-se em utilizar um palavreado de esquerda para justificar business as usual. O que acaba por reforçar nossa impressão de que o político na contemporaneidade seria apenas a dimensão da ausência de criatividade e das limitações de nossas aspirações de mudança. Por isso, somos obrigados a ouvir compulsivamente que “a divisão esquerda/direita não faz mais sentido”.
Mesmo que ainda encontremos posições políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político ou, para ser mais claro, de que não há mais nada a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. Não se trata mais de pensar a modificação dos padrões de partilha de poder, de distribuição de riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questão de gestão de modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que ao mesmo tempo se afirmam como os únicos possíveis.
A função atual da esquerda é, por isso, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente políticas que devem voltar a frequentar o debate social.
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Fonte: IHU on line, 14/05/2012
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