Primeiro passo para a reconstrução do campo político, o
movimento Occupy revigora a ação contestatória, afirma um dos autores
do livro Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas (São Paulo: Boitempo, 2012.
Mobilizações realizadas sobretudo por jovens, de forma inovadora e crítica às estruturas tradicionais da política. Assim podem ser caracterizados os movimentos de protesto que ocorreram em 2011 nos mais diversos países do mundo. E isso altera radicalmente a forma de se fazer política. Na opinião do filósofo Vladimir Safatle, a política contemporânea “tende a ir para os extremos. Não é mais uma política que se define no centro, como foi nos anos 1990 e na primeira década do século XXI. Isso acabou”.
Mobilizações realizadas sobretudo por jovens, de forma inovadora e crítica às estruturas tradicionais da política. Assim podem ser caracterizados os movimentos de protesto que ocorreram em 2011 nos mais diversos países do mundo. E isso altera radicalmente a forma de se fazer política. Na opinião do filósofo Vladimir Safatle, a política contemporânea “tende a ir para os extremos. Não é mais uma política que se define no centro, como foi nos anos 1990 e na primeira década do século XXI. Isso acabou”.
E completa: “Penso que o Occupy é um primeiro passo
para a reconstrução do campo político. Tendemos a eliminar uma
compreensão processual dessas coisas. Como nada aconteceu no sentido
forte do termo a partir desses movimentos, tem-se a impressão de que, na
verdade, não foram efetivos. Essa é uma maneira tosca de se compreender
processos políticos. Muita coisa ocorreu em função do Occupy, como a
consciência de que há um caminho diferente que pode ser trilhado”.
Em seu ponto de vista, o medo é a forma como o capitalismo conduz a
sociedade, e em função disso vem ocorrendo um deslocamento da discussão
política para o campo da cultura. É o caso da questão da imigração na
Europa: “As discussões sobre imigração, por exemplo, não são discussões
econômicas. Todos sabem que, do ponto de vista econômico, a imigração
nunca foi problema. Quem quebrou o sistema econômico europeu não foram
os imigrantes, foram os bancos”.
A entrevista, concedida à IHU On-Line, por telefone, foi inspirada na recente publicação da coletânea Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas (São Paulo: Boitempo, 2012), da qual Safatle participa com um artigo.
Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em
Comunicação Social, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, Vladimir Safatle
é mestre em Filosofia pela USP, e doutor em Lieux et transformations de
la philosophie pela Université de Paris VIII, com a tese La passion du négatif: modes de subjectivation et dialectique dans la clinique lacanienne.
Professor da USP, atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de
epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética
hegeliana na filosofia do século XX e filosofia da música. É um dos
coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há um traço que une as mobilizações e protestos sociais no mundo a fora em 2011?
IHU On-Line – Há um traço que une as mobilizações e protestos sociais no mundo a fora em 2011?
Vladimir Safatle – Existem vários traços. O primeiro
deles é que são mobilizações que não são organizadas a partir de
estruturas tracionais da política, como partidos e sindicatos. São
mobilizações feitas sobretudo por jovens, que se organizam de forma
totalmente inovadora. Esse é um dado importante porque expõe um certo
desconforto com a estrutura institucional de partidos e outras
instituições representativas. Há um dado bastante positivo que é a
procura de construir novos campos de organização política, com outra
dinâmica e outros tipos de estratégia. Em segundo lugar, aponto a
crítica à democracia parlamentar. Os manifestantes percebem um déficit
muito importante de democracia no interior da estrutura parlamentar.
Talvez no caso da Primavera Árabe isso não seja posto
dessa forma, porque não há sequer democracia parlamentar naqueles
países. Mas o que houve nesses movimentos em Nova Iorque, Santiago e
Europa é um indicativo do desconforto com esse tipo de limitação, que
ficou muito evidente depois da crise econômica. Isso porque ficou clara a
dependência do sistema da democracia parlamentar das injunções do
sistema financeiro. Trata-se da incapacidade que a democracia
parlamentar tem de dar conta de uma política mais combativa contra os
interesses do sistema financeiro.
As eleições que aconteceram na Grécia devem ser lidas com essa concepção. O que aconteceu foi que os partidos orgânicos da democracia parlamentar grega foram profundamente sancionados em prol de outras agremiações partidárias que, entre outras coisas, seja à direita ou à esquerda, questionam os limites da estrutura institucional da democracia.
IHU On-Line – Os indignados reivindicam um novo modelo político e tiveram forte atuação na Grécia em função da crise. Entretanto, como compreender o resultado das últimas eleições, em que partidos tradicionais perderam espaço para partidos extremistas como os neonazistas? O que isso significa?
As eleições que aconteceram na Grécia devem ser lidas com essa concepção. O que aconteceu foi que os partidos orgânicos da democracia parlamentar grega foram profundamente sancionados em prol de outras agremiações partidárias que, entre outras coisas, seja à direita ou à esquerda, questionam os limites da estrutura institucional da democracia.
IHU On-Line – Os indignados reivindicam um novo modelo político e tiveram forte atuação na Grécia em função da crise. Entretanto, como compreender o resultado das últimas eleições, em que partidos tradicionais perderam espaço para partidos extremistas como os neonazistas? O que isso significa?
Vladimir Safatle – Penso que a política
contemporânea tende a ir para os extremos. Não é mais uma política que
se define no centro, como foi nos anos 1990 e na primeira década do
século XXI. Isso acabou. Daqui para frente teremos um embate cada vez
mais forte entre os extremos. Veja a eleição na França. De certa
maneira, isso aconteceu lá. Na França havia dois
extremos: a direita e a extrema esquerda. Ambos pautaram o debate no
sentido muito evidente. O partido de direita de Sarkozy organizou seu
debate a partir das questões postas pela extrema direita, mas não tinha
uma proposta no sentido forte do termo, não havia uma pauta
estabelecida. A pauta vinha da extrema direita. Já o Partido Socialista
teve que correr atrás das mobilizações populares que foram levantadas
pela extrema esquerda. Assim, quem fez política nas últimas eleições
francesas foram os extremos. Isso, na Grécia, ocorreu
de maneira um pouco diferente. Os partidos tradicionais não tiveram a
força de conseguir equacionar as demandas que vêm dos extremos, e por
isso foram praticamente “limados” do centro político. Os dois juntos
perfizeram 32%, enquanto o restante era todo de extrema direita ou
extrema esquerda. Mas essa será a política daqui para frente, pelo menos
na Europa. Talvez esse não seja o caso da América Latina, porque o
sistema político latino-americano está em outro momento.
IHU On-Line – Acredita que o Occupy nos diferentes países demonstra uma revitalização da política ou trata-se de uma espécie de niilismo ativo, de contestação sem propostas efetivas?
IHU On-Line – Acredita que o Occupy nos diferentes países demonstra uma revitalização da política ou trata-se de uma espécie de niilismo ativo, de contestação sem propostas efetivas?
Vladimir Safatle – Penso que o Occupy é
um primeiro passo para a reconstrução do campo político. Tendemos a
eliminar uma compreensão processual dessas coisas. Como nada aconteceu
no sentido forte do termo a partir desses movimentos, tem-se a impressão
de que, na verdade, não foram efetivos. Essa é uma maneira tosca de se
compreender processos políticos. Muita coisa ocorreu em função do
Occupy, como a consciência de que há um caminho diferente que pode ser
trilhado. Fala-se muito da ausência de propostas desses movimentos, mas
isso é completamente falso. Há propostas muito concretas e efetivas,
como em Santiago do Chile, onde a proposta era
claríssima: educação pública de qualidade para todos. Não consigo
imaginar proposta mais concreta do que essa. Em Tel Aviv
cerca de 400 mil pessoas foram às ruas reivindicar a reconstrução do
estado de bem-estar social, diminuição dos aluguéis e fim da especulação
imobiliária.
Acredito que a discussão sobre a efetividade desses movimentos vem de
outro campo. As pessoas que hoje estão na imprensa têm,
aproximadamente, de 30 a 40 anos de idade. São pessoas que, quando
jovens, lá pelos 20 anos, idade da maioria dos manifestantes do Occupy,
ouviram um discurso hegemônico sobre o fim das ideologias, das grandes
mobilizações. Tínhamos que aprender a ser eficazes e a utilizar nossa
criatividade e inventividade não para o campo da política, mas
preferencialmente para um departamento de marketing ou uma agência de
publicidade. Então, trata-se de uma geração que se inseriu muito
rapidamente nos processos de reprodução material da vida no capitalismo
avançado. Isso tudo sem muito questionamento.
A minha geração foi aquela que menos questionou. A preocupação era
muito mais “comer sushi” do que discutir política. Então, para essa
geração é muito importante que nada ocorra. Porque se a geração
posterior disser que aquilo em que acreditamos era falso (quando na
verdade ainda havia muito espaço para a política e a transformação), é a
mesma coisa que se perguntassem “o que fizemos de nossas vidas?” e “por
que acreditaram nesses absurdos?”. Daí vem uma espécie de resistência
muito mais psicológica do que da análise concreta dos fatos.
IHU On-Line – Tomando em consideração essa conjuntura, pensa que o ano de 2011 foi bom para a esquerda? Por quê?
IHU On-Line – Tomando em consideração essa conjuntura, pensa que o ano de 2011 foi bom para a esquerda? Por quê?
Vladimir Safatle – Penso que sim, porque depois de
décadas passamos a ver um processo global de larga mobilização popular,
coisa que não existia desde os anos 1970. Esse tipo de mobilização
global é algo que não acontecia mais. Isso demonstra um descontentamento
social profundo com as promessas do capitalismo avançado. Esse
descontentamento é o afeto fundamental da política de esquerda.
Crescemos em cima disso, do desencanto em relação às promessas de
progresso que circulam hoje em dia.
IHU On-Line – Em que medida essa indignação pode se converter em revolução?
IHU On-Line – Em que medida essa indignação pode se converter em revolução?
Vladimir Safatle – É difícil de prever o que vai
acontecer daqui para frente. Várias coisas podem acontecer, e inclusive
nada durante muito tempo. Entretanto, isso não significa que o que
ocorreu não teve importância. Trata-se de uma possibilidade que foi
colocada sobre a mesa. E o principal dessa possibilidade foi a
insistência dos jovens em querer discutir. Isso é o que é mais bloqueado
atualmente. Discutir, de maneira concreta, significa pensar sem
pressupostos. Significa afirmar que, nessas situações, podemos
questionar os pressupostos implícitos e tacitamente aceitos na
constituição de todos os debates políticos. Essa é a primeira posição
para que as possibilidades se alarguem. Como dizia Heidegger na Carta sobre o humanismo,
essa distinção entre pensamento e ação é um equívoco, pois o pensamento
age enquanto pensa. Ele age porque abre o espectro do possível. E é
isso que os jovens estão tentando fazer. Essa é a ação política por
excelência.
IHU On-Line – Salvar bancos e arrochar a população vem se tornando uma constante no capitalismo. Pensando na crise de 2008, acredita que esse sistema está à beira de um colapso?
IHU On-Line – Salvar bancos e arrochar a população vem se tornando uma constante no capitalismo. Pensando na crise de 2008, acredita que esse sistema está à beira de um colapso?
Vladimir Safatle – É impossível falar qualquer coisa
sensata a esse respeito, tanto de um lado como do outro. Eu diria que o
certo é que a crença da população de que o sistema capitalista pode dar
aos seus filhos uma vida melhor do que eles têm é uma crença cada vez
menor. Algo muito grave está ocorrendo. Talvez não seja o caso do Brasil
e alguns países da América Latina. Mas nos EUA e na Europa, pesquisas
mostram resultados claros: existe um descontentamento e um desencanto
muito grandes com a forma de vida que se organizou no interior das
sociedades capitalistas avançadas. Daí porque a única maneira de se
defender essa forma de vida não é através das promessas de benesses
econômicas e sociais que pode produzir, mas pelo medo. Pelo medo de que
os valores que organizam nossa forma de vida serão destruídos, assim
como nossa religião e cultura. Temos, assim, um processo de um paulatino
deslocamento da discussão política para a cultura. É o que ocorre na
Europa hoje. As discussões sobre imigração, por exemplo, não são
discussões econômicas. Todos sabem que, do ponto de vista econômico, a
imigração nunca foi problema. Quem quebrou o sistema econômico europeu
não foram os imigrantes, foram os bancos. Uma coisa não tem nada a ver
com a outra. Os imigrantes pobres que estavam trabalhando na Europa não
quebraram a economia europeia, explorados que eram. O fato é que essa
discussão não é econômica, mas cultural.
IHU On-Line – Que transformações políticas e democráticas podem surgir a partir das manifestações e propostas dos indignados? Já é possível vislumbrar alguma mudança no cenário político e econômico?
IHU On-Line – Que transformações políticas e democráticas podem surgir a partir das manifestações e propostas dos indignados? Já é possível vislumbrar alguma mudança no cenário político e econômico?
Vladimir Safatle – Penso que a mudança já ocorreu. É
sobre o que conversamos no início da entrevista. Trata-se do
deslocamento da política para os extremos. Na Grécia uma
frente trotskista de partidos ganhou 17% dos votos. Eu não consigo me
lembrar de nada semelhante. Nunca vi situação parecida na história. É
algo completamente inusitado numa área de países do Euro.
IHU On-Line – Quais são os reflexos do Occupy no Brasil? Qual é a peculiaridade das manifestações em nosso país?
IHU On-Line – Quais são os reflexos do Occupy no Brasil? Qual é a peculiaridade das manifestações em nosso país?
Vladimir Safatle – É um movimento importante porque
tenta reabrir discussões políticas, sobretudo no que diz respeito à
juventude. Por outro lado, penso que a situação brasileira é um tanto
particular, uma vez que ainda estamos num momento de ascensão social de
grande parte da população. Insisto, por isso, que a verdadeira discussão
política seria mostrar quais são os limites dessa ascensão. E digo que
os limites dessa ascensão vêm do modelo imposto ao Brasil nos últimos
dez anos. O modelo do lulismo, por um lado, conseguiu criar uma dinâmica
econômica importante para uma nova classe média, e, por outro, em
função de ser caracterizado pelo consenso político, é um modelo que tem
limitações processuais de reforma muito evidentes.
Isso vai ser sentido de maneira clara da seguinte maneira. Vamos
analisar uma família que ganhe algo como R$3.500,00 por mês e que tenha
dois ou três filhos. Essa família irá tirar imediatamente o filho da
escola pública e colocá-lo numa escola privada, o que custará de R$800 a
R$900, no mínimo. Em segundo lugar, irá fazer plano de saúde
particular, abandonando o SUS. O valor desse serviço vai de R$400 a
R$500. Assim, vai gastar quase um terço de seus rendimentos em educação
privada deteriorada e em plano de saúde mafioso. A família perde um
terço de seus rendimentos com serviços da pior qualidade.
Chegará, contudo, um momento em que as pessoas irão se perguntar por
que o Estado não lhes garante esses serviços de qualidade. O Estado não
garante porque não consegue pagar, e não consegue pagar porque, entre
outras coisas, é preciso um “reacerto” social no qual seria feita uma
reforma tributária, taxando os mais ricos para pagar a educação dos mais
pobres. Mas nosso governo não tem condições sequer de discutir imposto
sobre herança, grandes fortunas e transação bancária. Então, essa
consolidação de um vasto sistema de educação pública e saúde é
dificultada, e não será feita dentro desse modelo. Quando as pessoas
tiverem consciência disso, uma política de esquerda poderá ser ouvida.
Eu insistiria que não se trata de uma crítica generalizada à experiência
dos últimos dez anos. Trata-se de dizer que ela teve sua função, mas
não consegue avançar além do que ela já fez.
Por Márcia Junges
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Fonte: IHU on line, 14/05/2012
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