ARNALDO JABOR*
Não perco um capítulo da novela Avenida Brasil. Ela
chegou em boa (ou má) hora, quando os escândalos em "cachoeira" revelam
os intestinos de nossa vida política. Essa novela é um fato novo, porque
fala a espectadores da chamada "classe C", essa nova categoria que
surge com o crescimento da economia. Muitos diziam: "Ah, classe C? Só
veremos banalidades." Nada disso. Talvez tenha acabado a luta pelo o
ibope mostrando aos pobres as casas luxuosas de Ipanema. Agora, trata-se
da vida da classe média sob a influência moral dos dias atuais. A trama
dramática da novela se tece com personagens vitais do dia a dia da
maioria dos brasileiros. E isso torna os conflitos mais densos, mais
gerais, mais profundos. A grande qualidade de Avenida Brasil é a conexão
entre um verdadeiro enredo de filme de ação com uma aguda psicologia
das personagens populares - que em geral eram criadas como "tipos",
apenas. Sem contar os grandes atores como Débora Falabella, Vera Holtz,
Murilo Benício e os outros todos. Há uma mutação em curso no País e a
novela toca nesse ponto. A psicopatia está virando o tema central de
várias novelas recentes. Em Vale Tudo, a mais antiga, tivemos o
surgimento de Maria de Fátima, de Glória Pires, a fundadora da
psicopatia no ar; tivemos Flora, com Patrícia Pillar, tivemos Tereza
Cristina com Cristiane Torloni, tantas. E agora, Adriana Esteves genial
como a malvada da hora. Elas variaram entre uma maldade sutil e
melíflua, como Flora, até a brutal voracidade de Carminha.
E essa vilãs traçam um retrato de nosso tempo - a psicopatia virou uma forma de viver e de fazer política.
E temos de confessar que as malvadas nos fascinam pela ausência de
culpa em seus corações. Na obra de João Emanuel Carneiro houve um
diálogo que resume essa doença "pós-utópica" muito bem - Carminha grita
para Nina, que chorava: "Não adianta querer me emocionar, porque eu não
tenho pena de ninguém - só de mim mesma!" Avenida Brasil tem uma
importância cultural e política. Antigamente, nos romances, nos filmes,
nos identificávamos com as vítimas; hoje, nos fascinamos com os cruéis.
Não torcemos só pelos mocinhos - a verdade é que os heróis são os
canalhas. Por quê? Bem. Talvez os psicopatas sejam o nosso futuro.
Com a exposição de um escândalo por dia, de vampiros, gafanhotos,
laranjas e fantasmas, com a propaganda estimulando o sexo sem limites,
com a ridícula liberdade para irrelevâncias, temos o indivíduo
absolutamente desamparado, sem rumo ético. Isso leva a um narcisismo
desabrido, que se torna um mecanismo de defesa. Diante do espetáculo da
violência, diante dos cadáveres da miséria, do cinismo corrupto, somos
levados a endurecer o coração, endurecer os olhos, para vencer na vida
competitiva ou seremos tirados "de linha" como um carro velho. E aí
surge o problema: Se não há um Mal claro, como seremos bons? O Mal é
sempre o 'outro'. Nunca somos nós. Ninguém diz, de fronte alta: "Eu sou o
mal!" Ou: "Muito prazer, Diabo de Oliveira..."
O Bem está virando um luxo e o Mal uma necessidade 'comercial' de
sobrevivência. Viver é praticar o Mal. Quem é o Mal? O assaltante
faminto ou o assaltado rico? Ou nenhum dos dois? Antigamente, era mole. O
Mal era o capitalismo e o Bem o socialismo. Agora, os intelectuais,
padres, bondosos profissionais, caridosos de carteirinha, cafetões da
miséria, santos oportunistas, articulistas (como eu) estão todos em
pânico. Ao denunciar o Mal, vivemos dele. Eu lucro sendo bom e
denunciando o Mal. Quanta violência sob a 'santidade',
A loucura é histórica também. Já houve a histeria com a repressão
sexual vitoriana, houve o delírio romântico e totalitário, a paranoia do
entreguerras. Hoje, o psicopata veio para ficar. A novela acerta em
cheio nessa doença.
É fácil reconhecer o psicopata. Ele não é nervoso ou inseguro. Parece
sadio e simpático. Ele em geral tem encanto e inteligência, forjada no
interesse sem afetividade ou sem culpa para atrapalhar. Ele tem uma
espantosa capacidade de manipulação dos outros, pela mentira, sedução e,
se precisar, chantagem. Teremos agora a CPI dos psicopatas. Vai ser um
show. Questionado ou flagrado, o psicopata não se responsabiliza por
suas ações, sempre se achando inocente ou "vítima" do mundo, do qual tem
de se vingar. Ele, em geral, não delira. Seus atos mais cruéis são
justificados como naturais. Ele não sente remorso nem vergonha do que
faz (o que nos dá até certa inveja). Ele mente compulsivamente e, muitas
vezes, acredita na própria mentira. Não tem "insights" nem aprende com a
experiência, simplesmente porque acha que não tem nada a aprender.
Os chamados comportamentos "humanos" estão se esvaindo. O que é o
"humano" hoje? O "humano" está virando apenas um lugar-comum para uma
bondade politicamente correta, uma tarefa e (muitas vezes) pretexto para
ONGs.
O "humano" é histórico também. Talvez não haja mais lugar para esse
conceito mutante. Somos 'máquinas desejantes' que se pervertem com o
tempo e a necessidade. Durante a ditadura, todos éramos o Bem. O Mal
eram os milicos. Acabou a dita e as "vítimas" (dela) pilharam o Estado. O
que é o Bem hoje? Como diz Baudrillard, "contra o Mal, só temos o fraco
recurso dos direitos humanos".
No Brasil, o grande Mal, não tem importância. O perigo aqui é o
pequeno mal, enquistado nos estamentos, nos aparelhos sutis do Estado,
nos seculares dogmas jurídicos, nos crimes que são lei. O perigo são os
pequenos psicopatas que, quietinhos, nos roem a vida. Aqui, o perigo é o
Bem. O Mal do Brasil não é a infinita crueldade das elites sangrentas; o
Mal está mais na sua cordialidade. O Mal está no mínimo.
Como nesta novela, vemos que o Brasil está se dividindo entre babacas
e psicopatas. Hoje, os babacas estão tentando seguir os psicopatas, por
sua eficiência e falta de escrúpulos. Em breve, seremos todos
psicopatas.
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* Cineasta. Escritor. Cronista do Estadão
Fonte: Estadão online, 01/05/2012
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