Fernando Henrique Cardoso *
Acabo de ler o mais recente livro de Alain Touraine,
Carnets de Campagne (Cadernos de Campanha), sobre a campanha de François
Hollande. Sem entrar no mérito das apostas políticas do autor, é
admirável a persistência com que Touraine vem estudando as agruras da
sociedade contemporânea como resultado da crise da "sociedade
industrial". Ele refuta análises baseadas numa sociologia dos sistemas e
não, como lhe parece mais apropriado, numa sociologia dos "sujeitos
históricos" e dos movimentos sociais. O livro vai direto ao ponto: não é
possível conceber a política apenas como uma luta entre partidos, com
programas e interesses opostos, marcados por conflitos diretos entre as
classes. A globalização e o predomínio do capital
financeiro-especulativo terminaram por levar o confronto a uma pugna
entre o mundo do lucro (como ele designa genericamente, com o risco de
condenar toda forma de capitalismo) e o mundo da defesa dos direitos
humanos e de um novo individualismo com responsabilidade social, temas
que Touraine já tratara em 2010 no livro Após a Crise, fundamentados em
outra publicação, Penser Autrement, de 2007.
A ideia central está resumida na parte final de Após a Crise: ou nos
abandonamos às crises, esperando a catástrofe final, ou criamos um novo
tipo de vida econômica e social. Neste é preciso reviver o apelo aos
direitos universais da pessoa humana à existência, à liberdade, aos
pertencimentos sociais e culturais - portanto, à diversidade de
identidades -, que estão sendo ameaçados pelo mundo desumano do lucro. É
preciso contrapor os temas morais ao predomínio do econômico. Há uma
demanda crescente de respeito por parte dos cidadãos. Estes aderem a
valores não como decorrência automática de serem patrões, empregados,
ricos, pobres, pertencerem a esta ou àquela organização, mas por motivos
morais e culturais. Com essa perspectiva, Touraine responde
categoricamente que não é com os partidos que a política ganhará outra
vez legitimidade. As instituições estão petrificadas. Só os movimentos
sociais e de opinião, movidos por um novo humanismo expresso por
lideranças respeitadas, pode despertar a confiança perdida. Só assim
haverá força capaz de se opor aos interesses institucionais do
capitalismo financeiro-especulador, que transformou o lucro em motor do
cotidiano. Daí a importância de novos atores, de novos "sujeitos
sociais", portadores de uma visão de futuro que rejeite o statu quo.
A partir daí, Touraine, sociólogo experimentado, não propõe uma
prédica "moralista", mas sim novos rumos para a sociedade. Estes, no
caso da França, não podem consistir numa volta à "social-democracia", ou
seja, ao que representou na sociedade industrial o acesso aos bens
públicos pelos trabalhadores; muito menos ao neoliberalismo gerador do
consumismo que mantém o carrossel do lucro. Trata-se de fazer o mundo
dos interesses ceder lugar ao mundo dos direitos e à luta contra os
poderes que os recusam às populações. É preciso libertar o pensamento
político da mera análise econômica. Os exemplos de insatisfação abundam,
e não só na França. Vejam-se os "indignados" espanhóis, os rebeldes da
Praça da Paz Celestial de Pequim ou os atores da Primavera Árabe. Falta
dar-lhes objetivos políticos que, acrescento eu, criem uma nova
institucionalidade, mais aberta ao individualismo responsável e à ação
social direta que marcam a contemporaneidade.
Por que escrevo isso aqui e agora? Porque, mutatis mutandis, também
no Brasil se sentem os efeitos dessa crise. Não tanto em seus aspectos
econômicos, mas porque, havendo independência relativa entre as esferas
econômicas e políticas, a temática referida por Touraine está presente
entre nós. Se me parece um erro reduzir o sentimento das ruas a uma
crise de indignação moral, é também errado não perceber que a crise
institucional bate às nossas portas e as respostas não podem ser
"economicistas". A insatisfação social é difusa: é a corrupção
disseminada, são as filas do SUS e seu descaso para com as pessoas, é o
congestionamento do trânsito, são as cheias e os deslizamentos dos
morros, são a violência e o mundo das drogas, é a morosidade da Justiça,
enfim, um rosário de mal-estar cotidiano que não decorre de uma
carência monetária direta - embora também haja exagero quanto ao
bem-estar material da população -, mas constitui a base para
manifestações de insatisfação. Por outro lado, cada vez que uma
instituição, dessas que aos olhos do povo aparecem como carcomidas,
reage e fala em defesa das pessoas e dos seus direitos, o alívio é
grande. O Supremo Tribunal Federal, numa série de decisões recentes, é
um bom exemplo.
No momento em que o Brasil parece mirar no espelho retrovisor das
corrupções, dos abusos e leniências das autoridades com o malfeito,
corre-se o risco de crer que tudo dá no mesmo: os partidos, as
instituições, as lideranças políticas, tudo estaria comprometido. É
hora, portanto, para um discurso que, sem olhar para o retrovisor e sem
bater boca com "o outro lado", até porque os lados estão confundidos,
surja de base moral para mobilizar a população. Quem sabe, como na
França, a palavra-chave seja outra vez igualdade. Na medida em que, por
exemplo, se vê o Tesouro engordar o caixa das grandes empresas à custa
dos contribuintes via BNDES, uma palavra por mais igualdade, até mesmo
tributária, pode mobilizar. Para tal é preciso politizar o que aparece
como constatação tecnocrática e denunciar os abusos usando a linguagem
do povo.
Está na moda falar sobre as "novas classes médias", muitas vezes com
exagero. Se até agora elas vão ao embalo da ascensão social, amanhã
demandarão serviços públicos melhores e poderão ser mais críticas das
políticas populistas, pois são fruto de uma sociedade que é "da
informação", está conectada. Crescentemente, cada um terá de dizer se
está ou não de acordo com a agenda que lhe é proposta. As camadas
emergentes não são prisioneiras de um status social que regule seu
comportamento. Aos líderes cabe politizar o discurso, no melhor sentido,
e com ele tocar a alma dos recém-vindos à participação social, não para
que entrem num partido (como no passado), mas para que "tomem partido"
contra tanto horror perante os céus. Isso só ocorrerá se os dirigentes
forem capazes de propor uma agenda nova, com ressonância nacional,
embasada em crenças e esperança. Sem a distinção entre bem e mal não há
política verdadeira. É esse o desafio para quem queira renovar.
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* SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Fonte: Estadão on line, 06/05/2012
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