MARCELO RUBENS PAIVA*
Você não fica devastado quando vê alguém feliz, que diz
que gosta de si mesmo, não se arrepende de nada, entende o mundo e o
sentido da vida, não fica desgraçadamente arrasado quando escuta que
alguém é casado com a namorada da faculdade e é suuuuper feliz, foi fiel
durante décadas, tem a vida sexual como as de alguns personagens
mitológicos, que chegou a ter um caso no vigésimo ano de casado, mas foi
perdoado e amado como nunca, você não entra em pânico quando descobre
que um amigo comprou móveis na baixa que hoje valem 20 vezes mais, ações
na baixa que vendeu antes da crise dos derivativos, que aplicou numa
empresa chamada Apple quando ainda se usavam máquinas de escrever, que
herdou uma fattoria à beira do mar na ponta da Bota, de um tio italiano
gay que foi o único a ficar na terrinha, não emigrar e que não teve
filhos, em que se colhem trufas brancas, que milagrosamente nascem ali, e
produz um vinho premiado por toda a Europa, não se choca quando sabe
que alguém foi promovido e passou a ganhar benefícios como cartão
corporativo, plano de saúde com helicóptero, carro do ano, secretária e
sala com vista, ou que tem gente que não precisa estudar para passar de
ano porque basta prestar atenção, ou que tem facilidade com línguas e
fala entre outras russo correntemente, entrou no vestibular sem
cursinho, dorme como uma pedra, nunca toma remédios na vida nem nunca
fica doente, tem colesterol, glicemia, pressão e batimentos cardíacos
abaixo dos alertas, vai ao banheiro duas vezes ao dia, não engorda, nem
se jantasse pizza com borda recheada todas as noites, pois tem um bom
metabolismo, fuma eventualmente um cigarro a cada dois meses e nunca
extrapola esse cálculo, não tem cálculos renais, nem na vesícula,
gordura no fígado, artroses, bursites, tendinites, joga tênis com a
galera mais jovem do clube, porque sempre ganha dos tiozinhos da sua
idade, tem um cachorro que não late para visitas, nem tem pulgas, mas
ataca todos os gatunos que se aventuraram por seu bairro, que a casa em
que mora nunca foi assaltada, a única da rua que nunca foi, que não tem
rugas, cabelos brancos, cera de ouvido, caspa, calos, pele oleosa, unhas
encravadas, joelhos tortos, pé chato, pernas em xis, joanete,
flatulência, hérnia de disco, herpes, mau hálito, incontinência, enxerga
sem óculos - nada de miopia, estrabismo ou estigmatismo -, lê bulas de
remédio, menus de restaurantes praianos especialistas em luaus
iluminados por tochas, partidas e chegadas de aviões, placas nas
estradas, comprou casualmente quadros de pintores brasileiros iniciantes
que hoje estão expostos alguns na Tate e outros no MoMA, costuma ser
convidado para dar palestras motivacionais no Caribe, Ilhas Fiji, Bali,
Ilhas Maurício, Córsega, que comprou um apezinho no Marrais quando o
euro não valia nada, entrou de sócio numa fábrica coreana de carros e
numa fazenda de produtos orgânicos, leu Ulisses na escola, Proust no
original, quando terminou o curso de francês e se envolveu com seu caso
extraconjugal parisiense, toda obra de Balzac, A Divina Comédia,
exemplar raríssimo que encontrou empoeirado na sede da fattoria que
herdou aparentemente autografado pelo autor, Os Irmãos Karamazov, para
praticar o russo, quando entrou de sócio de uma petrolífera com um
ex-agente da KGB, que hoje tem um time de futebol no Reino Unido e
partes de uma equipe de Fórmula 1, que se tornou seu melhor amigo e é
credenciado pela Fifa e Uefa a frequentar estádios da Copa do Mundo e da
Liga de Campeões da Europa, na tribuna dos dirigentes máximos da
entidade, e sempre sobra convites, você não fica absurdamente destroçado
quando tem alguém com bom senso para não entrar em brigas de trânsito,
que dá passagem, que jamais para em vagas de idosos e deficientes, que
acena para ajudar apressados na ultrapassagem, que não se importa quando
o motorista de trás aciona a buzina assim que o farol de trânsito muda
do vermelho para o verde, que nunca foi multado - e nas três vezes em
que foi parado na blitz do bafômetro tinha bebido suco de tomate, porque
tivera um mau pressentimento -, que não se estressa quando vê alguém
furando a fila do cinema e simplesmente indica outro caixa livre, que
salga a pipoca como se cálcio em excesso fizesse bem para a circulação,
que tolera frutose, glicose e glúten, não tira a fatia de gordura da
picanha, que não se importa com a turma de garotos que erraram de filme
e, num denso drama argentino, comenta a baladinha da noite anterior e
marca o ponto de encontro da baladinha posterior, moços e moças que
chacoalham sacos de pipocas para misturar o sal como se estivessem na
ala de chocalhos da bateria de uma escola de samba do primeiro grupo,
que não colocam celulares no silencioso e que, ultimamente, você
neurótico reparou, as telas touchscreen dos celulares e tablets estão
mais luminosas, porque nós, estressados, não aguentamos filme fora de
foco, ar-condicionado glacial em salas de cinema e teatro, atores que
cospem uns nos outros enquanto representam, muito menos o barulho de um
saquinho de delicado ou jujuba aberto, mas fica arruinado quando
encontra alguém que saiba configurar computadores em diferentes sistemas
operacionais, até aquele gratuito, que entende tudo de formulário da
Receita Federal e está em dia com ela, com o Estado e a prefeitura, com o
condomínio e o da casa de praia, que consegue tuitar e responder a
e-mails ao mesmo tempo, tem Face Book, Instagram, G+, Linkedin, What’s
Up, as últimas versões dos aplicativos essenciais atualizados, você não
inveja absolutamente aquele que não tem cáries, canais, implantes,
dentes amarelados, que nunca ouviram que seria melhor consultar um
ortodontista, ou que escutaram "quando casar passa", e passou? Relaxa.
A boa notícia, e que nos dá um enorme consolo, é que essa pessoa não
existe. E a baixa filosofia ensina: se existisse, não teria a sensação
inigualável e prazerosa de aprender com os erros.
Como dizem os invejosos, errar é humano, e a perfeição não existe.
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* Escritor. Colunista do Estadão
E-mail: marcelo.rubens.paiva@estadao.com.br
Blog: http://blog.estadao.com.br/blog/marcelorubenspaiva
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,inveja,955063,0.htm
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