Fernando Reinach*
A solidariedade é uma das características que definem
nossa espécie. É comum observar pessoas que sacrificam seu bem-estar e
conforto para cuidar de incapazes. Abandonar inválidos à sua própria
sorte causa repulsa e reprovação social. Mas quando surgiu essa
característica tão humana? Paleontologistas vêm tentado desvendar esse
mistério analisando esqueletos de nossos ancestrais.
É bastante comum encontrar esqueletos que demonstram que nossos
ancestrais e seus parentes sobreviviam mesmo quando sofriam acidentes ou
nasciam parcialmente incapacitados. O esqueleto de um neandertal
denominado Shanidar 1 é um bom exemplo. Shanidar 1 sobreviveu muitos
anos após ter perdido seu braço direito e sofrido um trauma craniano. É
bem provável que ele tenha recebido ajuda de companheiros nos momentos
seguintes ao acidente (ou luta) e mais tarde o grupo tenha se acomodado
para incorporar essa pessoa parcialmente incapacitada. Mas é difícil
saber que tipo de ajuda e por quanto tempo esse indivíduo a recebeu
antes de morrer.
Caso semelhante é o do esqueleto de um anão do Paleolítico chamado
Romito 2, descoberto na Itália. Dada sua pequena estatura e deformações
nos membros superiores e inferiores, é quase certeza que tinha enormes
dificuldades de locomoção. Paleontólogos creem que, para sobreviver em
uma comunidade de coletores e caçadores, que andavam quilômetros por
dia, Romito 2 deve ter recebido ajuda. De novo, é difícil determinar
quanto de ajuda Romito 2 recebeu.
Melhor exemplo. O esqueleto que talvez demonstre
melhor a solidariedade de nossos ancestrais foi descrito em 2009. Um
cemitério neolítico de mais de 3,5 mil anos, chamado Man Bac, no Vietnã
do Norte, próximo à vila de Bach Lien, foi escavado entre 1999 e 2007.
Lá foi encontrado MB07H1M09, ou M9. Ele foi encontrado curvado sobre si e
o que chamou a atenção foi a atrofia das pernas e braços, com ossos
finos e fracos.
O exame do crânio mostrou que M9 era provavelmente do sexo masculino e
tinha uns 30 anos ao morrer. Sua dentição era normal e bem preservada.
Apesar de um dos lados da articulação que liga a maxila ao crânio estar
mais desgastada, indicando que ele mastigava de lado, os dentes estavam
igualmente desgastados dos dois lados, indicando que ele usava toda a
boca para mastigar.
Ao examinar as vértebras, cientistas deduziram a causa de sua
paralisia. As vértebras estavam soldadas e o canal em que passam os
feixes nervosos da coluna vertebral estava comprimido e tinha diâmetro
menor que o normal. Além de membros atrofiados, M9 tinha alterações nas
vértebras do pescoço, o que indica que ele provavelmente vivia deitado e
mantinha a cabeça curvada para um lado, incapaz de sentar ou ficar de
pé.
Analisando o esqueleto de M9, foi possível diagnosticar que ele
provavelmente sofria da síndrome de Klippel-Feil tipo 3, cuja frequência
nas populações modernas é de 1 nascido em cada 40 mil. A fusão das
vértebras e o estreitamento do canal por onde passa a medula fazem com
que os pacientes desenvolvam paralisia total dos membros inferiores e
muitas vezes paralisia dos superiores ao longo da infância.
Como M9 morreu aos 30, seguramente fui cuidado por mais de 20 anos
pelos membros de seu grupo. O fato de seus dentes estarem bem
preservados e não existirem sinais de desgaste desigual demonstra que
ele era bem alimentado. E provavelmente vivia deitado, com a cabeça
encurvada. Para que tenha sobrevivido tantos anos, seus companheiros
cuidaram de sua higiene e provavelmente o viravam regularmente, para
evitar a formação de feridas no corpo. Essa síndrome geralmente não
afeta a capacidade mental dos pacientes e provavelmente M9 era capaz de
interagir com seus companheiros.
Com base em outros dados obtidos em Man Bac, sabe-se que essa
comunidade estava nos estágios iniciais do desenvolvimento da
agricultura, mas ainda dependia em grande parte da coleta de plantas e
da caça esporádica. Ela já tinha os primeiros artefatos de cerâmica,
jade e conchas, mas estava longe de habitar uma cidade bem estabelecida.
Nesse ambiente cultural, há 3,5 mil anos, M9, paralisado e
permanentemente deitado, foi cuidado com amor e carinho por mais de 20
anos. Essa descoberta demonstra que a solidariedade surgiu entre os
homens bem antes do aparecimento das grandes civilizações e das
principais religiões. Neste final de ano, quando a solidariedade é
sempre comemorada, lembre de M9. Feliz Natal.
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* BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES:SURVIVAL
AGAINST THE ODDS: MODELING THE SOCIAL IMPLICATIONS OF CARE PROVISIONS
TO SERIOUSLY DISABLED INDIVIDUALS. INT. J. PALEONTOLOGY, VOL. 1, PÁG. 35, 2012
Fonte: http://www.estadao.com.br 20/12/2012
Imagem da internet
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