Giorgio Agamben*
"O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé –
o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o
dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o
dinheiro."
Publicamos a seguir um texto de autoria de Giorgio Agamben, traduzido por Selvino J. Assmann, professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
O título original do artigo é Benjamin e il capitalismo e acaba de ser publicado na revista mensal italiana Lo Straniero. Em seu artigo, Agamben explica que, segundo Benjamin, “o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber,
uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno
religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do
cristianismo”. Ao refletir sobre a desmaterialização da moeda, Agamben afirma que “o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo”.
Há sinais dos tempos (Mt.16,2-4) que, mesmo evidentes, os homens, que
perscrutam os sinais nos céus, não conseguem captar. Eles
cristalizam-se em eventos que anunciam e definem a época que vem,
eventos que podem passar despercebidos e não alterar em nada ou quase
nada a realidade a que se juntam e que, no entanto, precisamente por
isso valem como sinais, como indicadores históricos, semeia ton kairon.
Um destes eventos ocorreu em 15 de agosto de 1971, quando o governo
norte-americano, sob a presidência de Richard Nixon,
declarou que a convertibilidade do dólar em ouro estava suspensa. Embora
tal declaração marcasse de fato o fim de um sistema que havia vinculado
por longo tempo o valor da moeda a uma base em ouro, a notícia,
comunicada no coração das férias estivas, suscitou menos discussões do
que legitimamente se poderia ter esperado. Mesmo assim, a partir daquele
momento, a inscrição, que ainda se lê em muitas cédulas (por exemplo,
sobre a libra esterlina e sobre a rúpia, mas não sobre o euro), “prometo
pagar ao portador a soma de...”, assinada pelo presidente do Banco
Central, havia perdido definitivamente o seu sentido. Esta frase
significava agora que, em troca daquela cédula, o banco central
ofereceria a quem o pedisse (admitindo que alguém fosse tão tolo para o
pedir) não uma certa quantidade de ouro (por um dólar, trinta e cinco
avos de uma onça), mas sim uma cédula exatamente igual. O dinheiro
esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente
autorreferencial. Deixa-nos ainda mais estupefatos a facilidade com que
foi aceito o gesto do soberano norte-americano, que equivalia a anular o
patrimônio em ouro dos possuidores de dinheiro. E se, conforme foi
sugerido, o exercício da soberania monetária por parte de um Estado
consiste na sua capacidade de induzir os atores do mercado a empregarem
os seus débitos como moeda, agora também o débito tinha perdido toda
referência real, tornando-se puramente de papel.
Desmaterialização da moeda
O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos
antes, quando as exigências do mercado levaram a vincular à moeda
metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras de câmbio,
cédulas, juros, goldschmith’s notes, etc. Todas estas moedas de papel,
na realidade, são títulos de crédito e, por isso, são chamadas de moedas
fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria valer –
pelo seu conteúdo de metal precioso (aliás, como se sabe, inseguro: o
caso limite é o das moedas de prata cunhadas por Frederico II, que logo depois de ser usada deixava aparecer o vermelho do cobre). Contudo, Schumpeter
(que vivia, sim, numa época em que a moeda de papel já havia superado a
moeda metálica) pôde afirmar, e com razão, que, em última análise, todo
o dinheiro é apenas crédito. Depois de 15 de agosto de 1971, deveríamos
acrescentar que o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si
mesmo e que não corresponde se não a si mesmo.
Benjamin e o capitalismo como religião
O capitalismo como religião é o título de um dos mais penetrantes fragmentos póstumos de Benjamin. Já foi observado mais vezes que o socialismo era algo como uma religião (entre outros autores, para Schmitt,
“o socialismo pretende dar vida a uma nova religião que, para os homens
dos séculos XIX e XX, teve o mesmo significado que o cristianismo para
os homens de dois mil anos atrás”). Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber,
uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno
religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do
cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por
três características:
1.- É uma religião cultual, talvez a mais extrema e
absoluta que jamais tenha existido. Nela tudo só tem significado se for
referido ao cumprimento de um culto, e não a um dogma ou a uma ideia.
2.- Este culto é permanente, é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”.
Não é possível, aqui, distinguir entre dias de festa e dias de
trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa-trabalho, no qual o
trabalho coincide com a celebração do culto.
3.- O culto capitalista não está destinado a trazer
redenção ou a expiação de uma culpa, mas destinado à própria culpa. “O
capitalismo é talvez o único caso de culpa não expiante, mas
culpabilizante. Uma monstruosa consciência culpada que não conhece
redenção transforma-se em culto, não para expiar nisso a sua culpa, mas
para a tornar universal... e para, no final, capturar o próprio Deus na
culpa... Deus não morreu, mas foi incorporado no destino do homem”.
Precisamente porque tende com todas as suas forças não à redenção,
mas à culpa, não à esperança, mas ao desespero, o capitalismo como
religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a sua
destruição. E o seu domínio é, em nosso tempo, tão total que até os três
grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram, segundo Benjamin,
com ele, são solidários, de algum modo, com a religião do desespero.
“Esta passagem do planeta homem pela casa do desespero na absoluta
solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche.
Este homem é o Sobre-homem, ou seja, o primeiro homem que começa
conscientemente a realizar a religião capitalista”. Mas também a teoria
freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o que foi
removido, a representação pecaminosa... é o capital, sobre o qual o
inferno do inconsciente paga os juros”. E, em Marx, o capitalismo, com os juros simples e compostos, que são função da culpa... transforma-se imediatamente em socialismo”.
Em que crê o capitalismo?
Tentemos tomar a sério e a desenvolver a hipótese de Benjamin.
Se o capitalismo é uma religião, como podemos defini-lo em termos de
fé? Em que crê o capitalismo? E o que implica, com respeito à fé, a
decisão de Nixon? David Flüsser,
grande estudioso de ciência das religiões – existe também uma
disciplina com este estranho nome – estava trabalhando sobre a palavra pistis,
que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam como “fé”. Naquele
dia achava-se por acaso numa praça de Atenas e a uma certa altura,
erguendo os olhos, viu escrito em caracteres cubitais diante de si Trapeza tes pisteos.
Estupefato pela coincidência, olhou melhor e após alguns segundos se
deu conta de se encontrar simplesmente na frente de um banco: trapeza tes pisteos significa em grego “banco de crédito”. Eis o sentido da palavra pistis –
fé – é simplesmente o crédito de que gozamos junto a Deus e de que a
palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que cremos
nela. Por isso Paulo pode afirmar, em famosa definição,
que a “fé é substância de coisas esperadas” (1): ela é aquilo que dá
crédito e realidade àquilo que ainda não existe, mas em que cremos e
temos confiança, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa
palavra. Creditum é o particípio passado do verbo latino credere:
e aquilo em que cremos, em que colocamos a nossa fé, quando
estabelecemos uma relação fiduciária com alguém tomando-o sob a nossa
proteção ou emprestando-lhe dinheiro, confiando-nos à sua proteção ou
tomando de empréstimo dele algum dinheiro. Na pistis paulina volta a viver a antiquíssima instituição indo-europeia que Benveniste reconstruiu, a “fidelidade pessoal”: “Aquele que detém a fides
posta nele por um homem mantém tal homem em seu poder... Na sua forma
primitiva, esta relação implica uma reciprocidade: por a própria fides em alguém proporcionava, em troca, a sua garantia e a sua ajuda”.
Capitalismo: religião fundada sobre a fé
Se isso for verdadeiro, então a hipótese de Benjamin
de que há uma estreita relação entre capitalismo e religião acaba
recebendo uma nova confirmação: o capitalismo é uma religião
inteiramente fundada sobre a fé, é uma religião cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé). E se, segundo Benjamin,
o capitalismo é uma religião na qual o culto se emancipou de todo
objeto e a culpa se emancipou de todo pecado, e, portanto, de toda
possível redenção. Então, do ponto de vista da fé, o capitalismo não tem
nenhum objeto: crê no puro fato de crer, no puro crédito (believes on the pure belief),
ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé –
o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o
dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o
dinheiro.
Isso significa que o banco, que nada mais é do que uma máquina para fabricar e gerir crédito (Braudel,
p. 368), tomou o lugar da Igreja e, ao governar o crédito, manipula e
gere a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda
conserva em si mesmo.
Crédito: ser imaterial
O que significou, para esta religião, a decisão de suspender a
convertibilidade em ouro? Certamente constituiu uma espécie de
elucidação do próprio conteúdo comparável à destruição mosaica do
bezerro de ouro ou à fixação de um dogma conciliar – em todo caso,
trata-se de uma passagem decisiva para a purificação e a cristalização
da própria fé. Esta – na forma do dinheiro e do crédito – emancipa-se
agora frente a toda referência externa, cancela o seu nexo idolátrico
com o ouro e se afirma na sua absolutidade. O crédito é um ser puramente
imaterial, a mais perfeita paródia da pistis, que nada mais é do que “substância das coisas esperadas”. A fé – assim dizia a célebre definição da Carta aos Hebreus – é substância – ousia, termo técnico por excelência da ontologia grega – das coisas esperadas. O que Paulo quer dizer é que aquele que tem fé, que pôs a sua pistis em
Cristo, toma a palavra de Cristo como se fosse a coisa, o ser, a
substância. Mas é precisamente este “como se” que a paródia da religião
capitalista cancela. O dinheiro, a nova pistis, é, agora imediatamente e sem resíduos, substância. O caráter destrutivo da religião capitalista, de que falava Benjamin,
aparece aqui na sua plena evidência. A “coisa esperada” não existe
mais, e foi aniquilada e deve sê-lo, pois o dinheiro é a essência última
da coisa, a sua ousia no sentido técnico. E
dessa maneira elimina-se o último obstáculo para a criação de um mercado
da moeda, para a transformação integral do dinheiro em mercadoria.
A sociedade condenada a viver de crédito
Uma sociedade cuja religião é o crédito, que crê apenas no crédito, está condenada a viver de crédito. Robert Kurz
ilustrou a transformação do capitalismo do século XIX, ainda
fundamentado na solvência e na desconfiança com relação ao crédito, no
capitalismo financeiro contemporâneo. “Para o capital privado do século
XIX, com os seus proprietários pessoais e com os relativos clãs
familiares, valiam ainda os princípios da respeitabilidade e da
solvência, à luz dos quais o recurso cada vez maior ao crédito aparecia
quase como algo obsceno, como o início do fim. A literatura popular da
época está cheia de histórias em que grandes estirpes caem em ruína por
causa da sua dependência do crédito: em algumas passagens dos Buddenbrook, Thomas Mann
fez disso até mesmo um tema que mereceu um Prêmio Nobel. O capital
produtivo de juros era naturalmente, desde o início, indispensável para o
sistema que se estava formando, mas ainda não tinha importância
decisiva na reprodução capitalista no seu conjunto. Os negócios do
capital “fictício” eram considerados típicos de um ambiente de
trapaceiros e de pessoas desonestas, à margem do capitalismo
propriamente dito... Além disso, Henry Ford rejeitou
por muito tempo o recurso ao crédito bancário, obstinando-se em querer
financiar os seus investimentos unicamente com o próprio capital” (R.
Kurz, La fine della politica e l’apoteosi del denaro, Roma, 1997, p. 76-77; Die Himmelfahrt des Geldes, em “Krisis”, 16, 17, 1995).
A hipoteca antecipada do trabalho
No decurso do século XIX, esta concepção patriarcal dissolveu-se
completamente, e o capital das empresas hoje recorre em medida crescente
ao capital monetário, tomado de empréstimo junto ao sistema bancário.
Isso significa que as empresas, para poderem continuar a produzir, devem
por assim dizer hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores
do trabalho e da produção futura. O capital produtor de mercadorias
alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em
coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto. Mas não são apenas as empresas que vivem, neste sentido, sola fide,
a crédito (ou a débito). Também os indivíduos e as famílias, que
recorrem a isso de modo crescente, estão da mesma forma religiosamente
envolvidos neste contínuo e generalizado ato de fé sobre o futuro. E o
Banco é o sumo sacerdote que ministra aos fiéis o único sacramento da
religião capitalista: o crédito-débito.
Notas:
1.- Cf. Carta aos Hebreus 11,1 (Nota da IHU On-Line).
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Fonte: IHU on line, 13/05/2013
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