Paulo Ghiraldelli Jr.
Desde o início dos tempos modernos nossa
relação de amor-ódio preferida deixou de ser com Deus e passou a ser
com o mercado. Sabemos bem: há até quem diga que é isso mesmo que
caracteriza a modernidade. Afinal, Deus e mercado se tornaram entidades
intercambiáveis.
Deus estava em todo lugar e exigia nosso
engajamento em suas diretrizes. O mercado está hoje em todo lugar e
quer nosso engajamento em suas práticas. Deus queria nosso amor e nos
daria, por conta disso, a felicidade, pois só nele nos sentiríamos
preenchidos. Ora, o mercado não diz algo bem parecido? Não é nele que
vamos saciar o nosso vazio? Um dos maiores pecados era o de querermos
ser Deus e/ou controlar Deus. Em relação ao mercado há aqueles que dizem
que não podemos submetê-lo e nem mesmo tentar algum controle sobre ele.
Deus nos pedia coisas difíceis, como o amor ao semelhante como prova e
prática do amor a ele, o mercado nos pede coisas duras de realizar, que é
o amor a ele mesmo quando, uma vez no mercado, nos encontramos em
negócios com inimigos.
Nosso amor-ódio se expressou teoricamente por meio de duas grandes doutrinas: a dos liberais e a dos marxistas.
Os liberais fizeram com o mercado o que
Epicuro fez com os deuses: não nos preocupemos com o divino, pois nessa
área há o que é bem superior a nós todos e, no limite, essas entidades
superiores não têm razão de manifestar qualquer interesse verdadeiro por
nós. Os deuses são livres, teremos menos infortúnios se vivermos também
livres, sem criarmos ansiedade com os desejos deles.
Os marxistas fizeram com o mercado o que
Feuerbach havia feito com Deus. Tomaram-no como fonte de “alienação”,
ou seja, elemento incapaz de nos dar condições de ver nossa realidade
invertida, isto é, a situação pela qual as mercadorias haviam se
transformado em elementos vivos e comandantes e nós havíamos adquirido a
função do que é morto. Sujeito e objeto se inverteram e, então, nós
todos passamos à condição de objetos – o que é comandado.
Essas duas teorias tiveram uma base
claramente metafísica, ainda que, de certo modo, ambas professassem
algum tipo de materialismo ou se casassem com algum tipo de
materialismo. Foram metafísicas no seguinte sentido: se colocaram além
do que é físico, se comportaram como meta-físicas; disseram que o
mercado, como Deus, nos dava tudo e era nosso porto absoluto, mas ainda
assim, não podíamos tê-lo fisicamente, mas vê-lo somente pela nossa prática.
Essas teorias deram o rumo ao nosso
pensamento social, político e econômico dos séculos XIX e XX. O filósofo
e professor de Harvard Michael Sandel quer mudar nossa conversação. Ele
não quer tratar o mercado como fizemos até hoje, como um substituto de
Deus. Quer tratar o mercado como uma instituição social e econômica, com
defesas políticas, segundo o que seria uma ótica de professor de
filosofia. Quer julgar o mercado, em situações específicas, moralmente.
Ele, Sandel, nos lembra de Adam Smith,
quando a economia ainda não era autônoma, era parte da filosofia moral.
Depois, com tanto positivismo para engolir, deixamos de lado qualquer
julgamento moral do mercado e passamos a descrevê-lo de modo a encontrar
seus “mecanismos internos”, sua forma de funcionar e sua maneira de nos
dar algum futuro previsível. A que destino o mercado livre nos levaria?
Essa foi a pergunta do século XIX e, de certo modo, de boa parte do
século XX. Ora, era uma pergunta parecida com a que tínhamos posto em
relação a Deus: qual é o destino reservador por Deus para nós? De certa
forma o que Sandel está dizendo, ao menos na minha maneira de falar, é
mais ou menos isto: se tirarmos o mercado da condição de substituto de
Deus, poderemos julgá-lo em suas práticas sem achar que estamos pecando.
Os livros de Sandel, especialmente os mais populares que, inclusive, foram traduzidos recentemente (Justiça, e O que o dinheiro não pode comprar),
investigam a possibilidade de colocarmos diante do mercado avaliações
morais, evocando noções de bom e mau, de justo e injusto, de certo e
errado. Tudo isso parece vago. Parece ser um retrocesso diante das
teorias que se autoproclamaram científicas, no campo da economia e
sociologia. Mas não é. Sandel é habilidoso e mostra que é perfeitamente
possível, sem soar nostálgico ou piegas ou anacrônico, colocarmos
questões morais para situações vividas no livre mercado. Não se trata de
avaliar o mercado como um todo e lhe dar sentenças. Isso seria
novamente tratá-lo como Deus e, então, decidir ser crente ou ateu. Não!
Trata-se de poder estudar os dramas que vivemos cotidianamente por
vivermos em sociedade de mercado, dramas que clamam por uma avalição
moral porque, de certo modo, são dramas ético-morais.
Entendo essa perspectiva de Sandel como
bastante promissora. Afinal, ao falarmos em moral diante de dilemas
colocados na sociedade de mercado livre, estamos falando de uma
re-entrada da filosofia no ambiente do qual ela foi expulsa. Nos últimos
duzentos não foram poucos os que nos disseram coisas do tipo: não temos
que falar se isso é bom ou mau, temos é de ver como isso funciona e nos
sairmos o melhor possível, em termos de performance, nesse ambiente,
para continuarmos a nossa sobrevivência individual e como espécie. Não
podíamos mais avaliar moralmente porque isso era filosofar e, se
filosofássemos, estaríamos de novo dando asas ao que a Renascença nos
trouxe de pior, as utopias totalizadoras. Não necessariamente. Não vejo
Sandel preocupado com utopias totalizadoras, mas preocupado com a
filosofia enquanto atividade distante da megalomania teórica. Não vejo
Sandel como quem gostaria de ir contra Richard Rorty, reinflacionando a
vida social de filosofia. Vejo-o até próximo de uma inspiração
pragmatista, uma vez que ele quer tratar os acontecimentos caso a caso.
Assim são as suas questões: é aprovável
moralmente não ir para a guerra e pagar para alguém ir em seu lugar?; é
aprovável moralmente usar a barriga de bebê para alugar? Essas perguntas
são de ordem ético-moral e são postas diante do mercado livre que, por
sua vez, reverbera um único mandamento: nada há que não se possa vender
ou comprar.
Sandel está renovando de modo inusitado o
tempo de Adam Smith. Está recuperando um fio que iria ser explorado
caso não tivéssemos requisitado, nesses últimos duzentos anos, que a
economia ficasse científica, independente da filosofia. Afinal, talvez
por isso mesmo, ao querer ficar independente da filosofia, o resultado
foi que a economia ficou sim independente, mas sua independência só
serviu, na sua acriticidade, para cair nos braços da ideologia.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/michael-sandel-desdivinizando-o-mercado/
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