quarta-feira, 15 de maio de 2013

O bode expiatório, entre Édipo e Cristo.

 René Girard*

 

O grande teórico do "bode expiatório" explica a sua visão da antropologia, que supera a clássica, mas que hoje nem sempre é bem vista, nem mesmo pelos crentes. 
O Evangelho revela e inverte o religioso arcaico: 
diferente dos mitos, a Paixão de Jesus 
 apresenta a vítima não como culpada,
 mas como inocente.


A vingança não é uma instituição, é um fenômeno do qual não se sabe se é biológico ou cultural, mas é específico do ser humano. Não há vingança entre os animais. Se vingança existe, se é infinita, é evidente que a espécie humana deveria se destruir por si só, logo de partida, antes mesmo de existir como humanidade.

É nesse momento que ocorrem crises de rivalidade mimética, aquelas crises que se encontram nos mitos relativamente modernos, mas das quais deve haver antecedentes muito antigos. Como se resolvem tais crises? Seguramente por motivos puramente mecânicos, porque, a partir do momento em que os seres humanos disputam entre si os objetos que desejam, nunca poderão se entender.

Mas a luta se tornará tão intensa que os objetos desaparecerão e permanecerão apenas os rivais. E, a partir do momento em que, em um grupo, há apenas antagonistas, pode-se ter a certeza de que haverá formas de reconciliação. Criar-se-ão alianças contra um inimigo comum, que polarizará cada vez mais adversários, mimeticamente. É o que se chama de "política" e é também o fenômeno do "bode expiatório".

A partir do momento em que restam apenas antagonistas, o fluxo mimético, em vez de dividir e fragmentar, se polarizará cada vez mais contra e, no fim, se dirigirá sobre um indivíduo qualquer, que aparece como o culpado pela crise.

Se olharmos para os mitos, encontramos um número considerável de casos em que a violência é coletiva contra uma única vítima. Há uma passagem do "todos contra todos" ao "todos contra um". É o que chamamos de fenômeno do "bode expiatório".

Penso que, nas sociedades arcaicas, esse tipo de fenômeno desempenha um papel fundamental. O sacrifício ritual se torna muito compreensível. As comunidades reconciliadas pela vítima mudarão de atitude com relação a ela. Elas sempre a veem como responsável pela crise; em outras palavras, Édipo realmente cometeu parricídio e incesto, atraindo assim a peste sobre Tebas, mas também pensa que agora a vítima é responsável pela reconciliação.

Consequentemente, a vítima culpada se tornará uma divindade. No caso de Édipo, é muito simples, trata-se de uma divindade do matrimônio, das regras do matrimônio que ele mesmo rompeu e que, de algum modo, instituiu infringindo-as, o que certamente é absurdo, mas que, no entanto, desempenha um papel essencial na gênese do religioso e do próprio social.

As semelhanças com o cristianismo são mais fortes do que nunca. Se observarmos a crucificação e a Paixão, logo notamos que é um fenômeno extrema e incrivelmente mimético. Por exemplo, a negação de Pedro: é evidente que interpretá-lo de maneira psicológica como sempre se faz significa insinuar que, em seu lugar, teríamos resistidos à tentação de nos voltarmos contra Cristo, e isso não é satisfatório.

 

Na realidade, quando Pedro se encontra no meio de uma multidão hostil a Jesus, ele também se torna hostil. Ele é mimeticamente contagiado. E ele se encontra ali como o melhor dos discípulos, representa a todos. Ninguém é capaz de resistir ao mimetismo homicida da multidão.

Outra prova é Pilatos: ele gostaria de salvar Jesus, mas, como político, tem tal medo da multidão que a obedece fingindo guiá-la. Mas a imitação mais caricatural são os dois homens crucificados com Jesus que se voltam para a multidão e tentam imitá-la, vociferam com a multidão, no fundo para fazer com que eles mesmos creiam que não estão crucificados.

É o mito completamente explicado e revelado. Nesse ponto, os antropólogos entram em êxtase, porque, no fundo, conhecem apenas a lógica do conceito. E dizem que, para que o cristianismo fosse realmente diferente das outras religiões, seria preciso que ele falasse de outra coisa. Pois bem, não é assim. O cristianismo fala do que é essencial no ser humano, ou seja, do fundamento religioso das sociedades, que também é o fundamento da cultura: o mimetismo violento. Ele deve falar a mesma coisa que os mitos.

É a partir do momento em que se vê essa identidade de argumento, essas relações extremamente próximas entre mitologia e cristianismo que, de repente, deveria aparecer a diferença: nos mitos, os culpados, mesmo que no fim sejam divinizados, são acima de tudo culpados. Quando se fala do mito de Édipo, pensa-se no parricídio e no incesto, e hoje nos parecem mais verdadeiros do que nunca, o que é a prova de que nos encontramos no mito, porque quase todos creem na psicanálise, que nada mais é do que acreditar no parricídio e no incesto, em vez de acreditar em uma certa inocência do ser humano que lá é real.

A diferença essencial de Jesus é que a Paixão apresenta a vítima não como culpada, mas como inocente. Em outras palavras, a Paixão é o único mito que sabe e proclama o que os mitos dissimulam, porque não o sabem: a vítima é um bode expiatório inocente.
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* A análise é do filósofo e historiador francês René Girard, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 13-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Fonte: IHU on line, 15/05/2013
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