Edival Lourenço*
"Quanto ao título “Deus não existe!…” pode ser tomado tanto no sentido
literal, quanto no conotativo popular."
Se Deus existe, Ele passou muito tempo na moita. Até que pudesse
ser percebido por alguém. Acompanhe o raciocínio: O universo, como
existência física, é estimado em 14,5 bilhões de anos pelo calendário
terreno, quando surgiu de um ovo pré-universal, numa explosão
espetacular, cujos estilhaços, gases e poeiras deles decorrentes, formam
os monumentais corpos celestes. Em um desses estilhaços, dos bem
pequenos, é verdade, o Homo sapiens, a nossa espécie primordial, surgiu
há cerca de 145 mil anos, ou seja: a nossa existência no universo ocupa o
percentual infinitamente miúdo de 0,001% da existência do mundo.
Astronomicamente falando é um tempo tão ínfimo quanto aquele gasto no
piscar de uma lagartixa no contexto de um ano. Em algum momento de
nossa curtíssima trajetória, desenvolvemos alguns atributos que nos
foram diferenciando da bicharada, tais como consciência, o raciocínio
lógico, o desenvolvimento de ferramentas, a interferência conduzida no
meio ambiente, a cultura e a intuição da existência do sobrenatural. Só
então Deus começou a dar as caras. Ou seja, a existência de Deus como
ideia e conceito começa de fato com a evolução racional do ser humano,
dentro de um processo da evolução natural das espécies. Daí não ser um
disparate afirmar que a natureza criou o homem e o homem criou Deus. A
existência de Deus, se fosse pão, ainda estava quentinho de derreter a
manteiga. Nenhuma das linhagens que nos antecederam, como as bactérias,
as formigas, as baratas, os crocodilos, os dinossauros, supõe-se, não
chegaram a aventar, ou mesmo intuir a existência de Deus. Pela simples
razão de que eram ou são seres irracionais. A existência de Deus teve
início com a nossa espécie.
A existência de Deus, a rigor, é um efeito colateral da
racionalidade. Ela acontece onde o nosso limitado raciocínio esgota suas
forças e não consegue romper. Aí entra a ordem sobrenatural, tendo como
centro o Deus absoluto, princípio, meio e fim, aquele que é ubíquo e
tudo sabe, que tem visão de raio X para saber o que existe por trás das
pedras, por trás de nosso discurso falho e não raro dissimulado.
Costumamos afirmar que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, o
que nos parece não só uma forma arrogante de nos colocar em posição
superior diante das demais criaturas e assim subjugá-las, mas também um
evidente equívoco, prontamente observável.
Admitindo que Deus esteve por trás do big-bang que supostamente deu
origem ao mundo, com sua alquimia explosiva, Ele esperou com paciência
por mais de 14 bilhões de anos para inserir o homem em sua arena. Se
fôssemos tão importantes como supomos ser, talvez Deus tivesse nos
preparado mesmo antes da construção do cenário e nos conservado no
formol divino e nos inserido em cena desde o primeiro ato. Já o Homo
sapiens, ao contrário de Deus, é um bicho extremamente ansioso. Queremos
alcançar resultados, atingir objetivos desde as primeiras ações.
Diante desta situação, de duas uma: ou Deus é semelhante a nós, mas
não somos importantes para Ele, apesar da semelhança. (A semelhança, no
caso, ao invés de produzir simpatia, pode ter produzido rejeição, pois,
pelo dom da ubiquidade, Deus sabia desde sempre quem seríamos nós e do
que seríamos capazes.) Ou então Deus não é semelhante a nós e, como
espécie, somos apenas mais uma no desenrolar do longo novelo evolutivo, e
que irá desaparecer até mais rapidamente do que as outras, como as
baratas, as formigas e as bactérias, em razão de nossa racionalidade
convertida em estupidez.
É uma noção quase unânime, independente da seita que se filie, ou da
versão de Deus que se adote, que Ele é um ser permeável e receptivo aos
nossos rapapés, que costumamos chamar de orações. E isso talvez nos
fizesse especiais diante de Deus, pois somos a única espécie capaz de
desenvolver rituais bajulatórios. Ora, há evidências de que Deus, se
existe, não se impressiona com nossos comovidos petitórios. Ou pelo
menos a comoção de Deus não se manifesta de forma semelhante à comoção
humana. Vez que somos tendentes a poupar de nossa ira as pessoas que nos
beijam as mãos.
Ao longo da história, não foi uma nem duas vezes que templos
abarrotados desabaram sobre os fiéis em oração. Exemplo clássico foi o
Dia de Todos os Santos de 1755, em Lisboa. Estando as igrejas da Capital
repletas de fiéis, veio um terremoto. Quem sobreviveu ao terremoto foi
engolido pelas chamas provocadas pelos escombros sobre as velas acesas.
Quem ainda conseguiu sobreviver, em seguida foi engolido por um tsunami.
Milhares e milhares de pessoas morreram rezando. A família real
sobreviveu porque estava praticando um ato que contrariava a suposta
vontade de Deus. Naquele domingo santo, dia de fervorosas adorações, a
família real se ocupava de afazeres hedonistas: fazendo churrasco,
tomando vinho enquanto veraneava em Queluz.
Outro exemplo bem recente foi o tremor de terras do Haiti. Um dos
países mais pobre do mundo, um povo extremamente sofrido e digno da
piedade humana e divina e outras mais, se mais houver. Foi violentamente
sacudido, não poupando nada nem ninguém. Levou de eito aficionados do
vodu, do budismo, do islã, do cristianismo e quem mais estivesse por lá.
Levou inclusive a Dra. Zilda Arns, a nossa santa viva e operante, que
salvou milhões de crianças da mortalidade infantil, no Brasil e em
outras partes do mundo. Inclusive estava lá em missão de salvação dos
pequeninos, quando a igreja desabou sobre ela.
Em qualquer tempo e lugar, as pessoas que apostaram na hipótese de um
Deus expresso e socorrista, a não ser que tenham se vendando pelas
lonas do autoengano, acabaram desiludidas. O próprio Jesus Cristo, que
se achava em condição mais do que especial diante das atenções de Deus,
na hora em que ele mais esperava, desabafou: — Oh, Pai, por que me
abandonaste!?
Deus não é um ser de misericórdia e amor. Pelo menos seu amor e sua
misericórdia não têm as feições que gostaríamos que tivessem. Nem tem o
apego por nós que gostaríamos que tivesse. Talvez do que Deus goste
mesmo sejam suas esferas rodopiantes, suas galáxias em espirais, suas
estrelas incendiadas, seus buracos negros que povoam o universo numa
profusão quase infinita. Enquanto nós, bicho da terra tão pequeno, como
já sentenciou Camões, continuamos circunscritos a este estilhaço
minúsculo, neste recanto de universo, que Terra tem por nome, com nosso
destino atrelado ao destino das baratas e das moscas varejeiras. Ainda
assim cheios de poesia em nosso triunfalismo enganoso.
Quanto ao título “Deus não existe!…” pode ser tomado tanto no sentido
literal, quanto no conotativo popular. Quando alguém nos surpreende de
forma cabal, ou tem qualidades que superam quaisquer expectativas ou
prescrições, nós dizemos simplesmente: “Fulano não existe!…” Assim me
parece que seja Deus, uma entidade difícil de existir, mas se existe é
surpreendente, sobejante, incapaz de se ajustar ao entendimento humano,
aos dogmas religiosos, à ciência ou à vã filosofia. Portanto, o leitor
que escolha o sentido que melhor lhe convier.
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* Escritor.
Fonte: http://www.revistabula.com/14/05/2013
Destaque do Blog.
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