sábado, 1 de junho de 2013

A última tragédia de um grande homem

Agora, há pouco, um outro — mais moço, em seus 50 anos, com problemas psicológicos — filosofava, de família milionária que é: “A maldição do mundo é o dinheiro. Deveríamos voltar, o mais rápido possível, com o sistema de trocas, o escambo”. E ficou olhando o vazio, como se fitasse o infinito.

A vida e a história de Nelson Mandela são uma epopeia de tal grandeza que ele próprio, o homem, se tornou símbolo de uma humanidade verdadeira. Poucos, como ele, deram a vida — carne e espírito — por seu povo e pelos ideais humanos de liberdade e de dignidade. Sua grandeza moral, sua força espiritual, o idealismo inquebrantável, a fé em suas próprias convicções engrandeceram-no diante de seus contemporâneos no mundo todo, tornando-o um outro ícone dos grandes ideais humanos. Sem dúvida, Mandela ergueu-se ao nível do Mahatma Gandhi. E será, para sempre, o verdadeiro pai da agora gigante África do Sul, uma nova e mais digna pátria para seu povo.

Se a vida de Mandela é uma epopeia heróica, nunca deixou, por outro lado, de ser feita de tragédias. Ou será que toda epopeia é trágica? Ou a tragédia — aos olhos dos grandes homens — é vista apenas pelos outros, aqueles que não a vivem? A prisão, as torturas, as perseguições não conseguiram alquebrar o ânimo nem minar a alma desse ser humano excepcional de nome Nelson Mandela. No entanto, agora, em final de vida — enfermo, ultrapassando os 90 anos de idade — essa “grande alma africana” vê uma outra tragédia — talvez, mais injusta e mais dolorosa — atingi-lo. Novamente, outra tragédia familiar.

Mandela — que já lamentou ter, em sua luta, trocado a família pela pátria — vê, agora, Moloch dominar suas filhas, sedentas por dinheiro, pela herança material que o gigante espiritual lhes deixou. Moloch é o deus terrível e tirânico de povos de Canaã, devorador de crianças, tesouros, sedento e faminto de bens. Símbolo da tirania — Moloch é sinônimo de um estado tirânico — pode, hoje, ser o mais poderoso deus dos nossos tempos materialistas, alucinados e doentios. O mundo se rende a Moloch, no consumismo enlouquecido e tolo, na ambição egoística, no individualismo suicida.

E Moloch bateu à porta, entrou e foi recebido pelas filhas de Mandela, que atropelam o pai para dividir, entre si, a herança de 1,3 milhão de dólares que ele, generoso, deixou para todos os seus descendentes. Esqueceram-se de que grande parte desse dinheiro foi obtido por uma das mais honrosas condecorações e reconhecimentos a um homem: o Prêmio Nobel da Paz.

Que herança maior poderão ter filhos, uma família, do que a história, a vida, a dignidade de Nelson Mandela? Ora, e de que toda essa grandiosidade moral importa, se Moloch reina e domina? Aquela memorável indagação de Shakespeare — “ser ou não ser, eis a questão” — ele próprio, talvez, a reescreveria fosse em nossos tempos. E, possivelmente, filosofaria: “Ter ou não ter, eis a questão”.

Há um livro fantástico, em meu entender: “Desaparecimento de Deus”, do pensador judeu Richard Friedman. Para ele, o Deus abraâmico se revelou, pela última vez, no Livro de Ester. No Gênesis, Deus — após ter criado tudo, incluindo o homem — descansou no sétimo dia. Parece-me haver um engano. Deus não desapareceu, nem está descansando. Penso que, exaustiva e pacientemente, se prepara para desencadear a grande fúria diante do que vê, produzido pela humanidade que foi seu sonho. Se para alguns, Deus é o sonho do homem, incluindo o deus Moloch, a verdade é que o homem é o sonho de Deus. Moloch apenas devora. A fúria desse Deus abraâmico e seu despertar não deverá deixar pedra sobre pedra. Quem viver verá. Será melhor não ver.

Ainda não aprendemos, mas é secular o entendimento de que “a única coisa que podemos deixar para os nossos filhos é o que somos, não o que temos”. As filhas de Mandela — como milhões de filhos no mundo mercantilista — também não sabem o tesouro que o pai, ainda vivo, lhes deixa. Elas não se importam de estar impondo um novo martírio a um homem que o mundo ama, glorifica e respeita. Nelson Mandela não merece essa sua última tragédia na vida feita de dores e de sonhos.
---------------------
*  Cecílio Elias Netto, nasceu em 24 de junho de 1940, é jornalista e escritor. Com dezoito anos já estudava alemão, francês, inglês, espanhol e italiano, sempre visando a diplomacia que exigia um grande domínio de línguas estrangeiras. Mesmo estudando para direito, o trabalho como jornalista começou cedo, aos 16 anos, como auxiliar de revisor no “Jornal de Piracicaba”.  É autor do livro  'Arco, Tarco, Verva',  volume 1 e 2. 
e-mail: celiato@terra.com.br
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/05/colunistas/cecilio/64744-a-ultima-tragedia-de-um-grande-homem.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário