sexta-feira, 5 de julho de 2013

A reconstrução do eu existencial e civilizatório em A paixão segundo G.H.

Márwio Câmara*
Clarice Lispector.jpgCapa do livro A paixão segundo G.H., editado pela Nova Fronteira.

Desde a sua primeira publicação, em 1964, A paixão segundo G.H. tornou-se uma das obras mais citadas da escritora Clarice Lispector, seja pelo experimentalismo linguístico ou pela ousadia da escritora ao transcender sobre a experiência da personagem imersa pelo universo subjetivo.
 

OBS: Se o leitor deste artigo procura nele um possível dissecamento da unidade do livro, talvez possa se frustrar. Minha obrigação como resenhista, e apaixonado pela obra da escritora, é apenas analisar alguns aspectos do livro, seja no ponto de vista estético quanto hermenêutico — sem pôr em xeque o todo do livro (o que poderia render a um ensaio mais elaborado e de viés acadêmico). Minha função é colocar em questão a obra, absorver a sua essência, a fim de aguçar a curiosidade do leitor, diferente de fazer com que o mesmo tome a minha resenha para fins que não o comprometam com a leitura do livro. Cumprindo assim a minha função como resenhista, expor a obra ao público, sem entregar a sua matéria-prima.

Publicada em 1964, e não diferente de sua obra inaugural, intitulada Perto do coração selvagem, de 1942, a escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector, causara barulho entre os leitores e, sobretudo, a crítica, com a publicação de A paixão segundo G.H. — considerado um dos pontos altos de sua obra e um de seus livros mais difíceis —, à flor de sua maturidade literária, já evidenciada em seu romance anterior, A maçã no escuro, de 1961, não apenas pela temática psicológica e introspectiva, mas pela escritora inovar mais uma vez: quebrando as estruturas tradicionais do gênero romanesco para compor um livro experimentalista, adornado de signos e metáforas — nos introduzindo a uma viagem aos labirintos mentais de sua personagem —, transmutando em níveis inigualáveis de significação.

Cada parágrafo ou capítulo de A paixão segundo G.H. é possível que seja evidenciado novos entendimentos e formas de enxergar a narrativa quando tomado a novas releituras, dando o caráter grandioso do não esgotamento da obra, escrita em primeira pessoa, e que se nivela entre a loucura (o desconserto da personagem) e o renascimento (a descoberta do novo olhar para as coisas), a hermeticidade (a ocultação da experiência metaforizada pela linguagem) e o autoconhecimento (a busca por respostas às indagações íntimas da personagem).
Logo no primeiro parágrafo do livro encontramos um discurso ousado e nada convencional, construído pela escritora que inicia a narrativa com seis travessões, o que indica um possível desconserto existencial da personagem: a identidade de G.H. em ruptura com o mundo e consigo mesma, buscando dentro de si a sua remontagem humana — querendo e renegando a que tivera, tentando compreender o que lhe parecia nebuloso e incompreensível ante a experiência do ontem, que ela, ao longo da narrativa, revela —, como num ato de purgação, desvencilhando-se da máscara ou da persona que durante toda a sua vida ela usara em seu mundo exterior e sistematizado, e que era parte de sua zona de conforto e alienação.

“— — — — — — estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior.” (Trecho de A paixão segundo G.H., Clarice Lispector, Editora Rocco, Pág. 9)
Como elucidar uma experiência como a da personagem G.H. que, em meio a sua rotina normal e civilizada, é destituída de seu próprio eu e submersa a uma experiência de reconstrução existencial e civilizatória, indo ao núcleo de sua matéria vital, enveredando-se em epifanias e divagações, devaneios que a submetem a uma viagem ao subsolo de sua intrínseca atmosfera psicológica e espiritual?

Afinal, desde que G.H. se desloca para o antigo quarto de sua empregada, despedida no dia anterior, um novo mundo de completa renuncia e estranhamento se rompe sobre a vida da personagem — uma artista, uma escultora de classe média alta que vive numa cobertura, é tudo que sabemos. E tal experiência marcará para sempre a vida da personagem, assim como a do leitor que se dispuser a viajar nesta obra-prima incomparável assinada por Clarice Lispector.

Ao adentrar no quarto da empregada, sua primeira tarefa do dia após o café da manhã, a personagem, que se apresenta apenas com duas iniciais em maiúsculas, tem a sua primeira surpresa e decepção: a de encontrar o quarto limpo. Diferente do que pensara há poucos, G.H. encontra o antigo quarto da empregada limpo e com uma alvura que se diferenciava dos outros cômodos de seu apartamento. Porém, além do quarto limpo, ela deflagra com três desenhos feitos a carvão na parede: três signos codificados nas figuras de um homem, uma mulher nua e um cachorro.

O que mais lhe causa estranhamento diante daqueles desenhos é de que cada um parecia isento do outro, como se ambos não pertencessem ao mesmo plano ilustrativo — eles não se viam ou mesmo se ignoravam —, cada um habitava uma nomenclatura de si. O que a empregada queria dizer com aquilo? Indaga a personagem. E logo ela se ver naquela figura despida que fora desenhada a carvão na parede.

A incomunicabilidade dos desenhos era a metáfora do que se ocorria na contemporaneidade — a segregação ao outro. G.H., por exemplo, mesmo tendo aquela mulher como a sua empregada, habituada dentro de sua casa, era como se a mesma lhe fosse uma estrangeira, um ser invisível, ignorado, e que apenas se estabelecia, entre ambas, uma relação de ordem e cumprimento. Na vida, o mesmo comportamento social acontecia.
“Nenhuma figura tinha ligação com a outra, e as três não formavam um grupo: cada figura olhava para a frente, como se nunca tivesse olhado para o lado, como se nunca tivesse visto a outra e não soubesse que ao lado existia alguém.
Sorri constrangida, estava procurando sorrir: é que cada figura se achava ali na parede exatamente como eu mesma havia permanecido rígida de pé à porta do quarto. O desenho não era um ornamento: era uma escrita.
A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui — de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário.” (Trecho de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, Editora Rocco, pág. 39)

E como falar sobre a relação entre G.H. e uma barata, encontrada dentro do armário do antigo quarto da empregada, que termina sendo esmagada pela personagem entre o vão da porta? Tal episódio choca G.H. ao descobrir semelhanças entre ela e o animal. A matéria branca que é expulsa de dentro do corpo cascudo da barata ritualiza a relação da personagem consigo mesma e com o mundo, afunilando-a entre desertos, portais, oratório, paraíso e inferno, na matéria vital da vida — ao núcleo — quanto na era primária da mesma.
“O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre — na era primeira da vida.” (Trecho de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, pág. 68)
Mas o grande momento do livro ainda está por vir: o momento em que a personagem, por fim, decide degustar da própria barata.
418995_267650973376056_2046374598_n.jpg Clarice Lispector, em foto acima.
A paixão segundo G.H. é o livro que confirma toda a maestria inventiva e literária de Clarice Lispector. Uma obra que impressiona pelo seu modo narrativo e pelo poder da escritora em criar “novas atmosferas” através da linguagem. Além do que, a escritora consegue a faceta de cativar o leitor à medida que ele se particulariza com a experiência da personagem, embora a sua linguagem possa causar certos desconfortos a leitores não habituados com textos fragmentados e introspectivos, característicos de boa parte da produção clariciana, assim como a de outros autores consagrados como o irlandês James Joyce e a inglesa Virgínia Woolf.

A obra mistura filosofia, existencialismo, experimentalismo estético e misticidade, já que dentro do subsolo da personagem, são levantados questionamentos entre a natureza do divino e do imoral, do céu e do inferno, tais particularidades distintas e contradirórias, que abrigam dentro da gente. E situa a importância de se ter um alguém segurando em nossa mão, sobretudo, durante os náufragos de nós mesmos. Um alguém que esteja ali pronto para nos ouvir, para não nos sentirmos tão solitários e pequenos frente à complexidade e crueza inexorável da vida — a mão de Deus.
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* Escritor, jornalista e um apaixonado pelas artes. Escreve porque sua voz está na escrita..
Fonte:  http://lounge.obviousmag.org/marwiocamara/2013/07

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