RICARDO ALVAREZ*
Jovens de todo o Brasil saem às ruas movidos por uma pauta de reivindicações tão extensa quanto variada, oriundos de camadas sociais distintas e dispostos a marchar em frente rumo a novas conquistas, alguns envoltos em bandeiras partidárias outros com a do Brasil. O Brasil que acordou cerrou fileiras com o Brasil que nunca dormiu. Há, porém, muito que fazer para politizar esta grande energia liberta e prenhe de mudanças.
Quando o torpor evapora“O capital não resolve as crises, mas as move de um lugar para o outro”. David Harvey
O mês de junho de 2013 deixou registrada sua existência na memória
política brasileira. Milhares de manifestantes ocuparam as ruas em
contraponto ao torpor reinante, e soltaram a voz em alto e bom som, num
grito em várias tonalidades, mas facilmente audível em seu conteúdo: um
cansaço geral contra tudo e contra todos.
Num primeiro momento as forças de repressão do Estado agiram com
energia demasiada, o resultado foi o recrudescimento da insatisfação
coletiva e do movimento nas ruas. Em seguida os poderes constituídos
perceberam que não se tratava de fogo de palha, havia sim fôlego e
disposição.
Inicia-se uma segunda etapa caracterizada pela tentativa de cooptação
e criação de líderes, disputa por bandeiras de lutas, interferência na
organização, enfim, os que repudiaram no início se convenceram que era
preciso disputar o movimento.
Quais os limites e perspectivas do movimento? Como esta mobilização
interferirá no quadro político nacional, inclusive nas eleições gerais
de 2014? Qual o aprendizado possível para uma geração que nasceu
distante desta prática?
O Lulismo deu a tônica na gestão federal na última década no Brasil
nos governos Lula e Dilma. Internamente baseia-se num programa de
governo de ações econômicas tímidas e com resultados sociais
significativos. Elevou setores da base da pirâmide social, a partir de
políticas compensatórias, para um patamar pouco acima, o que lhe rendeu
amplo apoio popular, especialmente nas camadas mais pauperizadas.
Provocou mudanças sem mudar. Reduziu os níveis de pobreza e miséria
sem afetar os grandes interesses e nem tampouco amedrontar os donos do
capital. O PIB cresceu e as duas extremidades da pirâmide foram as mais
beneficiadas. Os avanços obtidos circunscreveram-se nos marcos da
manutenção da estrutura de desigualdade e segregação social reinantes de
séculos no Brasil. Eis a chave de seu sucesso até então.
Antecedido por uma década de neoliberalismo em estado puro, sob o
comando de Collor e FHC, que apertaram o garrote aos movimentos sociais,
ampliaram a submissão aos agentes internacionais (FMI, Banco Mundial,
OMC) e levaram às ultimas consequências os preceitos do Estado mínimo e
da desregulamentação. Foram apoiados, diga-se de passagem, pelas elites e
pela grande mídia.
Mas, não só, pois muitos no campo da esquerda chegaram a acreditar no
“Fim da História”, na vitória triunfal do capitalismo e nos ditames da
chamada globalização, cedendo e aceitando a agenda conservadora.
Herdando este cenário e sem disposição de romper de fato com ele, o
Lulismo implantou na agenda conservadora algumas políticas públicas que,
de fato, produziram alguma mobilidade no padrão de renda das classes
mais baixas, abrindo a elas inclusive a perspectiva de uma maior
inserção no consumo, via expansão do crédito, mas não deu respostas
sobre as questões estruturais de desigualdades abissais persistente na
sociedade brasileira. Foi uma mudança de rumos sem rupturas.
Creio que o estado de convulsão social observado nas últimas semanas
resulte da combinação apontada acima: de um lado o esgotamento das
políticas neoliberais típicas no Brasil (década de 90) e no mundo; de
outro, o esgotamento de sua faceta nacional, o Lulismo (década de 2000).
Avanços sociais limitados
A síntese dos caminhos políticos trilhados pelo Lulismo aparece
esboçada na “Carta ao povo brasileiro”. O temor de sua vitória pelo
grande capital foi aplacado neste documento publicado em 22 de junho de
2002, e os anos seguintes foram de dedicação canina aos seus propósitos.
Combate à inflação, manutenção do superávit primário, amplo mercado
interno de consumo de massas, desoneração da produção, enfim, um novo
contrato social, que incluía a inserção precária ao mercado de consumo
de uma parcela significativa da sociedade. A questão central que se
colocava então era como navegar entre a negação do desastre social
neoliberal e permitir uma melhora na qualidade de vida da base da
pirâmide sem rupturas sociais.
A “Carta” dava pistas: “Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos
aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país”
dizia o documento. Quais horizontes poderiam se abrir quando se oferta
mais ao capital e se promete também mais ao trabalhador?
A grande habilidade política de Lula foi essencial na costura desta
coalizão esdrúxula. Aglutinar antigos desafetos e históricos inimigos
fez crescer sua base de apoio na sociedade, no parlamento e nos poderes
constituídos. Mas teve uma contrapartida pesada na perda de identidade
do partido e no consequente rebaixamento do programa.
Navegar com cada um dos pés em uma barca diferente, como expressa
corretamente Gilberto Maringoni, exigia apurado malabarismo político
para se equilibrar permanentemente entre os diferentes atores sociais e
econômicos que compunham a base do governo, claramente antagônicos, mas
afinados com a lógica de um governo que “agrade a todos”.
“O ex-presidente da República criou um discurso e um comportamento
político capaz de, mesmo em situações polarizadas, contentar lados
opostos, sem se vincular claramente a nenhum deles. Diante de opções
difíceis a saída é não optar. Não se trata de hesitação. É tática
pensada e sofisticada.”[1]
Desta combinação decorrem duas outras consequências diretas: a
abdicação da mobilização social como elemento de sustentação do poder e a
permanente ocorrência de crises pela acirrada disputa de nacos
orçamentários e de posições privilegiadas nos órgãos do governo.
O caminho encontrado apontava para a modernização conservadora:
permitir a ampliação do consumo através da oferta de crédito e, ao mesmo
tempo, manter intocadas as reformas estruturais típicas de um programa
democrático popular, uma vez que estas explodiriam a sustentação do
governo nesta ampla coalização costurada com setores conservadores.
Um dos elementos chaves para que esta agenda política contraditória,
mas hegemonicamente voltada aos interesses dos grandes grupos pudesse
seguir adiante, foi a transformação paulatina do PT num partido de
lideranças e caciques. Os canais que oxigenavam a antiga relação líder e
base crítica foram sofrendo asfixia lenta e gradual, porém deliberada.
Neste processo o PT foi deixado de lado e o gabinete da presidência
da República foi alçado à condição de comitê central decisório. As
correntes internas e grupos militantes que davam vida e criatividade às
suas ações transformaram-se em equipamento acessório e secundário. A
cúpula do partido trocou sua militância, sem ruborar, por adesistas de
primeira hora e alianças eleitorais espúrias. A governabilidade mostrou
seus dentes.
A reforma agrária patinou, o MST manteve proximidade com o governo,
mas o agronegócio também, indicando ministros. Abriram-se vagas em novas
universidades públicas federais, mas o grande capital no ensino privado
superior se esbalda com recursos públicos do PROUNI. O salário mínimo
aumentou e as bolsas assistenciais também, tirando da miséria absoluta
uma parte da sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, cresceram os
ganhos do capital financeiro e de outros setores, aos quais estão
profundamente imbricados: o agronegócio e mercado imobiliário. Como
consequência, o Brasil continua a apresentar uma das maiores
desigualdades de renda no mundo.
Com 84% da população morando em cidades, as contradições ganham maior
visibilidade. Pequenas ilhas de riqueza ladeadas por um mar de
assentamentos precários, transporte público insuficiente e caro,
serviços públicos de educação e saúde cada vez mais deteriorados,
ausência de espaços públicos de sociabilidade, trabalho precarizado e
superexplorado, coação e violência por parte da polícia, dentre outros. E
eis que agora começam a erigir nas grandes cidades novos templos, as
modernas arenas de futebol, anunciando a todos, enfim, que há dinheiro!
As massas que foram para as ruas neste junho de 2013 disseram um não
coletivo ao conjunto dos problemas e demonstram clara insatisfação com
as limitadas políticas redistributivas, reivindicam serviços públicos de
qualidade e mais baratos.
Crise de representação política
Não se ouvia por parte de estudiosos, analistas e imprensa de modo
geral, a iminência de as ruas e esquinas serem tomadas por populares em
municípios de grande e médio porte. O que se iniciou como uma
mobilização em torno de tarifas abusivas dos transportes urbanos foi, na
verdade, a última gota do copo transbordante.
O mais espantoso foi a velocidade da irrupção da mobilização. Os
mecanismos tradicionais de organização foram suplantados, ao menos
momentaneamente: partidos políticos, centrais sindicais e sindicatos,
evidenciando uma crise de representação política no Brasil. Mas ela pode
ser compreendida. Onde estão as referências populares?
Os setores mais conservadores, não geram lideranças populares há
décadas. Durante a Ditadura Militar esta questão não estava colocada. No
período pós-ditadura emerge a coalização de direita encabeçada por
Tancredo Neves e José Sarney, ambos caciques regionais e sem apelo
popular, pois a massa estava nas ruas a exigir “Eleições Diretas Já”.
Collor não foi escolhido, foi falta de opção contra Lula. Fernando
Henrique Cardoso era um acadêmico que foi alçado à condição de
presidente navegando nas águas do consenso neoliberal hegemônico na
ocasião. Serra, Aécio, Alckmin e, mais recentemente Joaquim Barbosa,
carecem de popularidade nacional e liderança política, mas todos
cirurgicamente ungidos pela grande mídia que, aliás, tem agido de
maneira contumaz como o verdadeiro partido conservador no Brasil, com a
vantagem de se esconder sob o manto da liberdade de imprensa, além de
obter financiamentos e polpudas verbas de publicidade públicas.
Do outro lado o Lulismo tinha Lula, forjado nos movimentos sociais, e
que ocupava o posto de Presidente da República. Com o processo de
esvaziamento partidário vivido pelo PT, seu sucessor seria resultado de
sua escolha, como o foi Dilma Russef.
Até esta mobilização nacional o inimigo mais poderoso e articulado do
Lulismo foi a grande imprensa, ironicamente alimentada pelo Estado.
Próximos passos: o que fazer?
Parte da massa que vai para as ruas fala em impeachment de
Dilma, proposta descabida, mas que sintetiza esta ação deliberada da
grande mídia que busca pautar as reivindicações e opiniões das ruas. É
indesejável, mas compreensível a despolitização de parcela dos
manifestantes.
Reflexo direto deste quadro é a pauta de reivindicações extensa e
diversificada. Exprime mais o descontentamento geral contra este estado
de coisas, do que uma mobilização organizada e focada em temas
específicos. O problema é que as forças políticas organizadas, que
poderiam dar maior consistência aos pleitos, estão à deriva desta
mobilização.
Restam pequenos partidos de esquerda que ainda carecem de maior
representatividade política, mas que crescerão no decorrer do tempo em
função da coerência das críticas voltadas ao governo e à direita.
Deve-se, contudo, saudar a irrupção desta mobilização e estimular sua
manutenção. Deve-se mais: disputar as bandeiras de luta nas ruas,
debatendo com esta parcela de descontentes uma pauta que alavanque
mudanças no sentido da expansão da oferta e qualidade dos serviços
públicos e da radicalização da democracia.
Parece que as vitórias obtidas, como a redução das tarifas de
transportes, a rejeição da PEC 37, o congelamento provisório dos preços
públicos, dentre outros, tiveram o caráter pedagógico de mostrar que as
mudanças que queremos virão de baixo para cima e não o contrário. Este é
o contexto da Reforma Política e por isso é incabível pensar em
Referendo, mas sim em Plebiscito.
Claro está que estamos diante de um grande impasse, que será superado
pelas contradições próprias da sociedade brasileira. De um lado as
forças conservadoras que falam em impeachment, desidratam as
lutas sociais com bandeiras estéreis como o combate à corrupção e a
defesa do Brasil e da democracia, alçam Joaquim Barbosa (o Presidente do
Supremo Tribunal Federal) à condição de líder, descarregam sua munição
na PEC 37, etc.
Mas outro patamar de lutas é possível e deve ser a grande aposta da
juventude que entendeu que as redes sociais servem à mobilização, mas
não a substitui. E é exatamente aqui que se situa a ineficiência do
Lulismo: atender as grandes demandas sociais por serviços públicos e de
qualidade e não substituir este direito pela condição de consumidor de
bens domésticos (importante, mas insuficiente).
Mas este caminho exige o enfrentamento e a ruptura com o Brasil da
Casagrande e Senzala. A política do agrado aos dois lados permite se
chegar exatamente aonde se chegou: ampliar consumo sem romper com a
estrutura de desigualdades sociais historicamente constituídas e
arraigadas na sociedade brasileira.
É o que se observa na Venezuela onde o Estado – a partir de um
programa democrático popular –, procurou dotar os setores mais
pauperizados da sociedade de serviços públicos básicos, invertendo uma
lógica dominante calcada no confinamento dos pobres na periferia,
limitados à condição de força de trabalho barata.
O que está em jogo é a construção de uma nação como nunca antes se
viu: profundamente democrática, menos desigual, participativa e dotada
de serviços públicos básicos de qualidade e universais. Não está dado
qual será o resultado das manifestações, embora conquistas importantes
tenham sido alcançadas. Há uma disputa de projetos distintos, que
apontam para a valorização do social (esquerda) e do capital (direita).
O PT será um agente político importante neste momento. Se sua direção
continuar na linha até então empreendida, pode estar cavando o buraco
que guardará em definitivo suas parcas energias internas progressistas.
Se as movimentações sociais em ebulição inverterem a correção de forças
internas e o partido se aliar aos setores progressistas diante de uma
agenda de mudanças estruturais, uma segunda chance foi dada pela
história, caso raro, mas possível na atual conjuntura.
Se David Harvey estiver certo a crise chegou por aqui desmanchando no ar o que era sólido.
É luta de classes em estado puro. Uma disputa de projetos sobre a sociedade que queremos.
[1] Maringoni, G. Lula, ser E não ser, http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=15688.
Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/2013/07/03/brasil-em-mudanca-as-ruas-mostram-sua-forca/
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