Renata Salecl*
A liberdade é uma coisa boa, não é? Nem sempre, argumenta a filósofa eslovena Renata Salecl.
A liberdade de escolher entre um número ilimitado de opções de carreira
ou marcas de café acaba se tornando um fardo. Nossa sociedade
capitalista moderna é governada por uma "tirania da escolha".
Eis a entrevista.
Salecl, na rede de fast-food Subway temos que tomar meia
dúzia de decisões para poder finalmente desfrutar de um sanduíche. É
isso que você quer dizer quando fala em suas palestras sobre a "tirania
da escolha?"
Eu tento evitar lugares como o Subway, e se acaso eu
acabe indo lá, sempre peço a mesma coisa. Quando falo sobre a "tirania
da escolha", falo sobre uma ideologia que se originou na era do
capitalismo pós-industrial. Ela começou com o sonho americano - a ideia
do self-made man, que trabalha para subir a escada da pobreza à
riqueza. Aos poucos, esse conceito de carreira se transformou numa
filosofia de vida universal. Hoje acreditamos que devemos poder escolher
tudo: a forma como vivemos, a nossa aparência, mesmo quando se trata do
café que compramos, precisamos constantemente pesar nossas decisões.
Isso é extremamente insalubre.
Por quê?
Porque nós constantemente nos sentimos estressados, sobrecarregados e
culpados. Porque, de acordo com esta ideologia, é nossa culpa se
estamos infelizes. Isso significa que tomamos uma decisão ruim.
E se fizermos a escolha certa?
Nesse caso, costumamos sentir que há algo ainda melhor escondido
atrás da próxima esquina. Então, nós nunca estamos verdadeiramente
contentes e relutamos em nos decidir por qualquer coisa.
"Não deixe que o homem comum decida. Ele não é inteligente o
bastante." Esse argumento tem sido usado por autocratas durante séculos.
Você quer dizer que eles estão certos?
Não. Eu não critico a liberdade política ou eleitoral, mas a
perversão do conceito pelo capitalismo: a ilusão de que eu tenho poder
sobre a minha própria vida.
Mas eu tenho esse poder. Eu posso decidir por mim mesmo o que eu quero, mesmo que esse pensamento me estresse.
Nem um pouco. Um amigo, que é psicólogo, contou-me sobre uma paciente
uma vez: a mulher tinha boa escolaridade, um bom emprego, uma casa e um
marido amoroso. "Fiz tudo certo na minha vida", disse ela. "Mas ainda
não estou feliz." Ela nunca fez o que ela mesma queria, mas o que
acreditava que a sociedade esperava dela.
Então precisamos melhorar em nossa busca pela felicidade pessoal?
Até isso é uma ilusão. A felicidade se tornou um parâmetro segundo o
qual nos medimos. O mundo está cheio de revistas femininas que se
esforçam para nos dizer o que nos fará felizes.
Está cheio de atualizações de status do Facebook dizendo-nos o quanto
as outras pessoas estão fazendo de suas vidas. Há até índices que
avaliam o quão felizes são certas nações. "Ser feliz" se tornou
imperativo social. Se você não for, você fracassou.
Mas o lema também diz a todos que eles podem fazer suas
próprias escolhas. Isso dá às pessoas um maior controle sobre suas
vidas.
Sim, mas isso é apenas parcialmente verdadeiro. Nós ainda não podemos
controlar as consequências que nossas escolhas trarão. Esse é o próximo
passo. Não só queremos liberdade de escolha, mas também queremos uma
garantia de que o que escolhemos será exatamente como imaginamos.
Por que estamos com tanto medo de apenas seguir o fluxo?
Porque cada vez que nos decidimos por alguma coisa, perdemos outra.
Comprar um carro é um grande exemplo. Muitas pessoas não leem avaliações
apenas antes de comprar o carro, mas continuam lendo depois para se
certificar de que realmente fizeram a escolha certa.
Se eu não tenho escolha porque não tenho dinheiro para comprar nada, isso vai me fazer mais feliz?
Paradoxalmente, não. Um dos maiores ganhos do capitalismo é que até o
escravo proletário se sente um senhor. Ele acredita que tem poder de
mudar sua vida. Somos impulsionados pela ideologia do self-made man: trabalhamos mais, consumimos mais e, no final, consumimos a nós mesmos. As consequências são o esgotamento nervoso, a bulimia e outras doenças que são fruto do estilo de vida.
Por que nos tratamos tão mal?
Sigmund Freud
já havia descoberto que o sofrimento nos dá prazer - de uma estranha
forma masoquista. A tirania da escolha explora essa fraqueza. A cultura
do consumo nos exaure. Nós sofremos. Nós destruímos a nós mesmos. E
simplesmente não conseguimos parar.
Mas nós não somos realmente as vítimas. Afinal de contas, nós
mesmos criamos este sistema e enquanto continuarmos consumindo, ele
continuará existindo. Em última análise, o capitalismo apenas reflete a
natureza humana.
Isso é verdade. Freud também disse que nós escolhemos nossas próprias neuroses. O capitalismo é a neurose da humanidade.
Há outros caminhos. Há um restaurante em Londres que serve
apenas um prato e as pessoas estão fazendo fila do lado de fora para
experimentá-lo. E uma empresa em Berlim que vende camisetas sem
mostrá-las aos clientes antes.
Isso é uma estratégia de marketing inteligente. Com as crianças, você
pode ver a mesma coisa. Se perguntar a elas no cinema ao que querem
assistir, elas provavelmente ficarão confusas. Por outro lado, se você
diz, pouco antes, "vamos assistir a James Bond", elas provavelmente vão
dizer: "Não, mamãe, qualquer coisa, mas isso não". Se não existem
limites, nós criamos os nossos.
Será que um dia seremos verdadeiramente livres?
Não. Mas podemos viver uma vida mais relaxada. Nós podemos aceitar
que nossas decisões não são racionais, que estamos sempre condicionados
pela sociedade; que perdemos algo cada vez que escolhemos outra coisa, e
que não podemos verdadeiramente controlar as consequências de nossas
decisões.
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* Filósofa eslovena.
A entrevista é de Stefan Schultz, publicada na revistal Der Spiegel e reproduzida pelo Portal Uol, 01-07-2013.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521556-qo-capitalismo-e-a-neurose-da-humanidadeq-diz-filosofa-renata-salecl
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