José de Souza Martins*
Educação
não é mercadoria, como frequentemente dizem alunos críticos. É interação e
reciprocidade.
Muito se
fala sobre as deficiências da educação brasileira e, injustamente, imputa-se à
escola pública o nosso atraso. Esse atraso, todos sabem, expressa as condições
impróprias e insuficientes da escolaridade e do exercício do magistério. Fazemos
economia com educação, mas não a fazemos com ignorância nem com privilégios
descabidos dos poderosos.
Temos
limitações e desafios. O problema maior de nossa educação está numa questão
social simples: o divórcio entre o senso comum pobre e o conhecimento que a
escola e os professores devem transmitir aos alunos.
A
educação brasileira não sabe lidar com o senso comum que, em nosso caso, é um
fator limitante do diálogo educativo. Nos países cultos, o senso comum, já
entre os estudantes, é altamente informado pela cultura erudita, pelas visitas
aos museus de história, de arte e de ciências, pelo teatro, pela música
erudita, pelo cinema culto. Até mesmo pelo respeito à historicidade de
paisagens rurais e de cenários urbanos cuja relevância educativa é reconhecida
por todos. Aquilo que, classificado como adjetivo em relação às ruas e
estradas, é entre nós tratado como feudo do carro pelos habitantes e pelo poder
público.
De modo
que, naqueles países, a sala de aula é dinâmico lugar da ampliação e do aperfeiçoamento
das informações e da lógica do senso comum enriquecido pelas agências de
difusão da cultura. Seria, aqui, um laboratório de preservação e de refinamento
de nossas tradições humanistas e de aprimoramento crítico de nossa consciência
social. Um meio de superar nossa danosa alienação.
Naqueles
países, o senso comum em si mesmo puxa as novas gerações para cima, para uma
compreensão culta da vida e da realidade social. Os estudantes de lá estão
muito mais próximos da arte, da literatura e da ciência do que a imensa maioria
dos estudantes daqui. Lá, a escola e os professores estão cotidianamente empenhados
na ressocialização de jovens e crianças a partir da matéria-prima de um rico
senso comum a isso propício.
A escola
não deve ser um lugar de estranhices e de professores supostamente esquisitos,
que é como muitos pais e estudantes os julgam. Os frequentes episódios de
agressão a professores e mesmo a alunos e de depredação de escolas apenas
expressam a incivilidade desse divórcio. Não é surpresa que a escola apareça na
consciência de alunos e de pais de alunos como instituição que lhes é
adversária.
Não há ou nem sempre há, entre esses dois mundos, o da escola e o do senso comum, o liame da continuidade criativa e emancipadora. A escola de enquadramento, pública ou particular, que politicamente se robustece neste momento, não educa.
Não há ou nem sempre há, entre esses dois mundos, o da escola e o do senso comum, o liame da continuidade criativa e emancipadora. A escola de enquadramento, pública ou particular, que politicamente se robustece neste momento, não educa.
Educação
não é mercadoria, como frequentemente dizem alunos críticos. É interação e
reciprocidade. Nesse sentido, o professor só é professor se for um aprendiz,
aluno de seus alunos para ensinar-lhes a superar limitações, intolerância,
impaciência e pobreza cultural.
No
período mais fecundo da política educacional brasileira, sociologia e
antropologia, além de psicologia, foram essenciais na formação do professor da
escola elementar e da escola média. Porque ele só pode ser educador se for
também ressocializador de seus alunos e, por meio deles, dos pais de alunos.
Aqui, a escola deve ir além de muros e paredes. Mas, não raro, muros e paredes
são arrombados pela barbárie da incompreensão.
O docente
será educador se tiver a oportunidade de ser um agente criativo no processo de
mudança social, que é contínuo e problemático. A escola, tampouco deve
paralisar o mundo. A sala de aula é mais do que carteiras e quadro-negro. Ela
nada será se não for sobretudo um laboratório de intercâmbios sociais, em que o
docente é sujeito e objeto, do mesmo modo que o aluno é objeto e sujeito. Isso
só é possível quando o professor tem sólida formação em ciências sociais, mesmo
para ensinar matemática e biologia. Matemática fora da trama social que dá vida
humana aos viventes é mera subtração e não multiplicação. Biologia socialmente
desencarnada é corpo sem alma e sem vida.
Nosso
senso comum é historicamente pobre e frequentemente instrumento da reprodução
do atraso. Puxa-nos para baixo. Não nos abre perspectivas. Não nos abre
caminhos de crescimento e emancipação.
Temos
tido movimentos sociais pelo poder e pelos privilégios do poder. Mas não temos
tido movimentos sociais pela educação para a liberdade, por um novo senso
comum, só possível por meio da consciência crítica. Educar para que as novas
gerações fiquem de pé e não de joelhos, como se pretende agora.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte:
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte:
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6186967/jose-de-souza-martins-fazemos-economia-com-educacao-mas-nao-com-ignorancia-e-privilegios
29/03/2019
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