segunda-feira, 31 de maio de 2021

“Agora é a vida on-line que permite trabalhar, manter conexão com instituições, produzir”

                                                                       Estar em casa tem suas vantagens, entre elas o convívio com os livros e as coleções de objetos de várias regiões brasileiras e de canecas de cidades do mundo - Rejane Franca

Sem poder viajar, o cientista da computação Virgilio Almeida ampliou sua atuação internacional em regulação do ciberespaço e inteligência artificial


Sempre tive uma atividade internacional grande, que envolvia muitas viagens para fora do país. Entre 2017 e 2020 participei de uma comissão para estabelecer normas para a estabilidade do ciberespaço, já que todo mundo hoje depende do espaço on-line. Essa comissão tinha 26 membros de diversos países convidados apenas pela capacidade pessoal, não em razão de cargos. Eu era o único participante da América Latina e esse trabalho envolvia uma série de viagens para reuniões. Também participo de uma comissão chamada Technical Policy Council [Conselho de Políticas Tecnológicas], da principal organização científica da área de computação, que se chama Association for Computing Machinery (ACM).  Essa comissão também envolve reuniões em lugares variados. No dia 3 de março do ano passado, já havia sinais da pandemia e fiquei em dúvida sobre viajar. Acabei indo para a reunião de dois dias em Bruxelas [Bélgica], fui e voltei de máscara. Quando voltei, o problema estava maior.

A partir daí, as viagens acabaram, mas a atividade continuou porque as reuniões passaram a ser on-line. Foi uma necessidade e vimos que funciona – embora tenha limitações. Em uma dessas reuniões, Vint Cerf – um dos criadores do protocolo TCP-IP, que é vice-presidente do Google e participa desse conselho de tecnologia – sugeriu: “Deveríamos pensar por que o Zoom não tem um botão em que duas pessoas possam conversar como se estivessem fisicamente próximas”. Seriam maneiras de reproduzir as relações sociais que ocorrem quando a pessoa levanta e pega um café, ou vê um conhecido e começa a falar outro assunto que não o principal. As coisas vão evoluindo. Hoje, quando se usa o Zoom para uma defesa de tese ou uma reunião, é possível dividir os grupos em salas. São modificações feitas em decorrência da limitação de viagens. Não sinto falta das viagens, acho ótimo não estar viajando. Não perco tempo, não fico parado em aeroporto ou muitas horas no avião.

Quando se trata de buscar um ponto comum de colaboração em um projeto, de novas conversas, acho que perdemos um pouco no ambiente on-line, embora seja possível. Com os alunos, acho que houve uma perda. A presença física dá mais ênfase ao que deveria ser feito, mais confiança ao aluno e mais importância ao trabalho. O espaço on-line, às vezes, não proporciona a mesma intensidade.

Por outro lado, a vida on-line possibilitou muitas outras coisas. É possível participar de seminários, aulas, palestras em número muito maior em uma grande variedade de instituições e países. Elas não eram oferecidas on-line antes. As universidades norte-americanas oferecem hoje uma enorme diversidade de eventos sobre os temas mais interessantes. Depende de se procurar na área de interesse de cada um.

Atualmente participo de um projeto com um professor da Universidade de Princeton e uma professora da Universidade Columbia, em Nova York, ambos nos Estados Unidos, sobre o efeito da desinformação na saúde pública. Como, por exemplo, as notícias antivacina têm impactado os números de vacinação naquele país. Estamos coletando dados nas plataformas que nos interessam: Facebook, YouTube e Instagram. Começamos a olhar também o Parler, uma plataforma extremista que não tem moderação. É onde surgem as mais controversas teorias conspiratórias, que dali se espalham para outras redes. Um aluno e um colega da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] estão trabalhando comigo nisso. A coleta é toda automática, nem precisamos olhar o que estão dizendo. A colaboração é recente e começou on-line, eu não conhecia esses professores. Sou do Departamento de Ciências da Computação na UFMG e eles são de departamentos de Ciência Política. Os pesquisadores em ciências sociais nos Estados Unidos fazem trabalhos muito quantitativos.

O livro que publiquei em 2020 [Governance for the digital world, editora Palgrave Macmillan] também foi com um cientista político, Fernando Filgueiras, da FGV [Fundação Getulio Vargas]. O livro foi todo feito on-line, inclusive a relação com o editor se deu remotamente. São poucas as coisas prejudicadas pela falta de presença física. Agora estou trabalhando com outro cientista político, além dele, para pensarmos formas de ver como os algoritmos afetam as instituições. A possibilidade de trabalho remoto mudou muito nos últimos anos. O primeiro livro que publiquei com dois colegas americanos, pela Prentice Hall em 1994, foi todo escrito na internet precária da época, usando e-mail e FTP, um serviço de transferência de arquivos. Só tínhamos acesso à internet uma ou duas vezes por dia, por meio de linhas telefônicas. O mundo on-line hoje permite praticamente fazer quase tudo das tarefas acadêmicas e de pesquisa.

Até pouco tempo atrás, a vida on-line se dava mais no âmbito de entretenimento ou relações sociais mais leves. Agora, tornou-se essencial: permite trabalhar e manter conexão com instituições para produzir. Isso requer estabilidade, confiança, segurança. Também nos torna vulneráveis a ações criminosas e negativas. Aumentou muito o risco de ataques, de ações maléficas no mundo inteiro.

Também há perda de privacidade. Nos Estados Unidos é praxe avisar que a reunião está sendo gravada e perguntar se o participante quer permanecer. A sociedade civil de lá tem protestado contra a instalação de software que monitora os alunos estudando on-line. Algumas empresas também têm feito isso com seus empregados e é necessária uma regulamentação. Como a tecnologia anda sempre mais depressa que as ações de governo e a regulação, é preciso ficar atento a essas questões. O Brasil tem uma nova lei de privacidade de dados que ainda está em implantação.

Pensar em mecanismos para garantir um ambiente mais seguro passou a ser essencial. Isso é bom, porque surgem novos problemas que exigem um olhar multidisciplinar. Não é mais só a computação, porque quem é dessa área não tem o mesmo domínio de quem tem formação em ciências sociais. As ciências humanas é que podem entender o fenômeno de as relações passarem a ser mediadas por telas. O impacto nas crianças é grande, há mais de um ano passando muito tempo diante das telas, e precisa ser percebido por psicólogos e educadores. Não se deve descuidar do financiamento da pesquisa nas ciências sociais e humanas.

Outra atividade que me ocupou foi o Centro de Inteligência Artificial para a Saúde, cujo financiamento acaba de ser aprovado pela FAPESP. A ideia surgiu de dois professores da UFMG – um da Faculdade de Medicina, outro do Departamento de Computação – que já tinham colaboração na área de inteligência artificial, especialmente para análise de eletrocardiogramas. Quando saiu o edital, me convidaram para participar e começamos uma conversa mais ampla sobre como estruturar um projeto de longo alcance, com duração de cinco a 10 anos, que tivesse impacto científico e trouxesse resultados relevantes. Seguindo as regras do edital, precisávamos de um parceiro privado que trouxesse o mesmo nível de financiamento. Foi fácil, porque a Unimed de Belo Horizonte tinha interesse em se aprofundar na inteligência artificial.

Um dos objetivos do projeto é usar as tecnologias de inteligência artificial para ampliar o atendimento remoto, automático, algo que se tornou essencial na pandemia. No caso de Minas Gerais, tem também a questão dos desastres ambientais, como Brumadinho e Mariana. Eles geram problemas de saúde, pela alteração do ambiente, pelo impacto social e emocional da população. Isso também está dentro do projeto. É preciso ampliar a escala de atendimento e reduzir custos, levando em conta a ética, a confiabilidade dos algoritmos e a capacidade de eles serem explicados ao médico, para que saiba por que tomou uma determinada decisão e o paciente ter confiança. Sou o coordenador, mas meu interesse em pesquisa é a parte de ética, segurança e confiabilidade dos algoritmos. É um centro multidisciplinar – com medicina, enfermagem, farmácia, engenharia elétrica, eletrônica, computação e física – e multi-institucional. Somos mais de 100 pesquisadores. As quatro empresas privadas parceiras entram com recursos, com dados e com problemas. Isso dá relevância à pesquisa.

Creio que durante a pandemia, aumentei a carga de trabalho e consegui bons resultados, apesar de não poder contar com o sistema administrativo da universidade, que dá apoio. Um tanto por não perder tempo com viagens, e acabo trabalhando mais horas e mais dias da semana. Mas meu filho que mora no Rio de Janeiro (tenho outro em São Paulo) tem um filho pequeno, o Martim, de quase 2 anos, e trabalha remotamente. Então na pandemia ele veio com a família para a casa que temos perto de Belo Horizonte. Eu e minha mulher alternamos períodos na cidade com alguns dias lá. É um sossego tremendo, na montanha, mas minha produtividade é menor, porque a prioridade passa a ser o netinho. Ele me vê no computador e quer ver os vídeos de que gosta.

Gosto de ficar em casa, me distraio com bons livros de literatura e música: MPB e jazz. Voltar ao normal será outra coisa, não o que estávamos pensando. As pessoas estão vendo que podem economizar em certos gastos, como ir a restaurantes com frequência, e fazer atividades em casa. Mas fazemos parte de uma parcela pequena da população brasileira que está bem, trabalhando remotamente. Grande parte das pessoas não tem acesso, não tem dispositivo e nem condições de letramento para usar. Aprofundar essa diferença, ou trazer para o mundo on-line as desigualdades que existem no mundo físico, é uma preocupação. Não foi feito um esquema para que os estudantes de escolas públicas tivessem acesso ao ensino remoto e à inclusão digital. Isso não é mais uma opção, é uma necessidade.

Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br/agora-e-a-vida-on-line-que-permite-trabalhar-manter-conexao-com-instituicoes-produzir/

Na era da polarização, os muros (físicos e digitais) crescem ao redor do mundo

                            Muro que separa a Faixa de Gaza de Israel

Em “A era dos muros”, o escritor inglês Tim Marshall debate por que as construções de barreiras aumentam e traça um mapa de um mundo dividido que ergue cada vez mais bloqueios de todos os tipos em suas fronteiras

O geógrafo, especialista em relações internacionais e escritor inglês Tim Marshall, de 62 anos, encontrou uma nova forma de analisar a geopolítica planetária. Depois de ter feito coberturas como repórter da Sky News nas guerras nos Bálcãs e no Oriente Médio entre os anos 1990 e 2000, ele se estabeleceu como comentarista e geógrafo.

Nos últimos sete anos, tem lançado livros que demonstram que a localização no planeta é o fator determinante para o destino dos países e dos povos – e não há muito o que fazer do que se adaptar ao espaço geográfico. O seu mais recente livro tenta entender por que os muros e barreiras de todos os tipos estão se proliferando ao redor do mundo

Em “A era dos muros”, agora lançado em edição atualizada pelo selo Zahar, Marshall mostra que um terço dos estados-nações do mundo, 69 países, tem se dedicado a erguer barreiras em torno de seus limites. “Estamos construindo muros em toda parte”, diz Marshall “É um fenômeno mundial, no qual o cimento foi misturado e o concreto assentado sem que a maioria de nós nem sequer notasse.”

São milhares de quilômetros construídos somente no século XXI. Metade dos muros que foram erguidos desde a Segunda Mundial surgiram entre 2000 e hoje. Isso compensou a destruição das barreiras derrubadas depois da queda do muro de Berlim, em 1989.

O mundo antigo testemunhou prodígios arquitetônicos como a Muralha da China. Ela tem hoje 21 mil quilômetros de extensão e começou a ser construída pelo império chinês no século VII a.C. para dividir a civilização da barbárie – as terras cultivadas das estepes percorridas pelos mongóis.

Ao longo do tempo, a etnia han, dominante na China, garantiu sua segurança não só externa como internamente. A muralha lançou braços rumo ao interior do território e assim dividiu os hans de minorias perigosas. O regime comunista, a partir de 1949, tratou de construir mais trechos, e assim se defender dos inimigos

A muralha virou atração turística, mas continua cumprindo a função de defesa. Com a tecnologia, a China ergueu outra muralha, a eletrônica. A chamada Great Firewall impede que a informação circule fora da China. “Hoje a internet chinesa é ela própria uma barreira contra o mundo”, afirma Marshall. “Com ela, o controle de inimigos internos, como a etnia uigur de Xinjiang, tem sido monitorado com eficiência.”

Atualmente, proliferam construções monumentais e assustadoras. Uma das mais hostis, para Marshall, é o muro entre Israel e Cisjordânia. Ele foi construído em 2004 por Israel, para impedir o avanço árabe. Hoje, conta com 763 quilômetros de extensão. “Diante dessa vastidão inexpressiva de aço e concreto, você se sente diminuído não apenas pelo tamanho mas também pelo que ela representa”, escreve. “Você está num lado; eles estão no outro.”

O livro “A era dos muros”
Há outras barreiras semelhantes no Oriente Médio, como as centenas de quilômetros da Faixa de Gaza nas fronteiras com Israel e Egito, os 700 quilômetros do muro entre Turquia e Síria e, da mesma extensão, entre Arábia Saudita e Iraque.

A Europa também está pontilhada de obstáculos entre Grécia e Macedônia, Macedônia e Sérvia, Sérvia e Hungria e Suécia e Dinamarca. “Dentro de alguns anos, é possível que, só na Europa, haja mais quilômetros de muros, cercas e barreiras do que havia no auge da Guerra Fria”, prevê Marshall.

Desde 1838, muito antes do projeto polêmico do ex-presidente americano Donald Trump, existem cercas de arame farpado, muros e construções de vigilância na fronteira dos Estados Unidos e México. Hoje, essas estruturas de cimento e metal abrangem mil quilômetros de extensão.

Segundo Marshall, contrariamente à profecia feita em 2007 pelo jornalista Thomas L. Friedman no livro “O mundo é plano”, a globalização não uniu, mas ajudou a separar os povos. “As fronteiras físicas foram potencializadas pelas muralhas digitais.”

Ainda vai levar muito tempo para o planeta Terra abrir suas fronteiras – se é que um dia isso vai acontecer. Afinal, os muros também cumprem uma função necessária. Marshall cita o seguinte provérbio: “Boas cercas fazem bons vizinhos”. Para ele, não se trata de um dito banal.

“O ditado afirma uma verdade inevitável sobre fronteiras tanto físicas quanto psicológicas”, diz Marshall. “Fazemos planos para um futuro em que esperamos o melhor e tememos o pior. Porque tememos, construímos muros.”

Fonte:  https://neofeed.com.br/blog/home/na-era-da-polarizacao-os-muros-fisicos-e-digitais-crescem-ao-redor-do-mundo/

Amazon: “A obsessão de Bezos é apenas conquistar o universo”, diz biógrafo de fundador da Amazon

 

O fundador da Amazon, Jeff Bezos (Crédito: DonkeyHotey)

Em entrevista ao NeoFeed, o jornalista Brad Stone, autor de “Amazon sem limites”, fala que, mesmo deixando o cargo de CEO, Jeff Bezos vai seguir dando as cartas na empresa que fundou e comenta sobre as obsessões do homem mais rico do mundo

O jornalista Brad Stone, de 50 anos, autor do livro “Amazon sem limites”, escreveu a biografia de Jeff Bezos, o fundador da maior varejista online do mundo, sem nunca entrevistar o personagem de seu livro.

Isso não significa que faltou rigor. Ao contrário. Há mais de dez anos, Stone dedica-se a pesquisar a Amazon e seu fundador, entrevistando diversas pessoas que conviveram com Bezos.

Seu primeiro livro, “A loja de tudo”, escrito em 2013, se focou na construção da Amazon. Agora, Stone se volta à personalidade de Bezos e como ele se tornou uma pessoa implacável.

Ao longo de sua trajetória, Bezos acumulou muitos erros para construir a Amazon – e teve muitos acertos também. Mas, na visão de Stone, ele cometeu uma falha na sua ascensão: a de não consolidar uma imagem pública simpática.

“Ele está investindo lentamente em projetos humanitários, mas é considerado antipático pelos consumidores, ainda que eles adorem a Amazon”, afirmou Stone, nesta entrevista ao NeoFeed.

De seu escritório em São Francisco, onde trabalha como editor-executivo da agência Bloomberg News, Stone falou mais sobre a personalidade de Bezos. Confira os principais trechos da entrevista:

Você já tinha feito a radiografia da Amazon no livro “A loja de tudo”. O que “Amazon sem limites” traz de novidade?
Bem, eu contei naquele livro o início, a ascensão e o triunfo de uma loja virtual de livros que se transformou na maior vendedora de produtos do mundo. No livro novo, eu conto algo ainda mais surpreendente: o ápice da carreira de um geek que se transformou em uma espécie de mestre do universo. A partir de 2017, ele se tornou o homem mais rico do planeta e sua personalidade se fez sentir com mais força.

Como você descreve Bezos e em que ele se diferencia de outros visionários da tecnologia, como Steve Jobs? Ele e Jobs ficaram célebres pela genialidade e pelo temperamento agressivo.
Steve Jobs foi um criador sensível. Bezos é mais pragmático. Jobs se destacou por produtos inovadores e dotados de design incríveis. Ele não se destacou como administrador da Apple e até foi afastado da companhia por isso. Mas seu gênio na criação de computadores e do iPhone é inegável. Ele se construiu como um artista à frente de uma grande corporação, em que por vezes reinou como um autocrata. Bezos é diferente. Até se tornar uma celebridade, era discreto e se dedicava à administração de suas empresas. Nunca deixou de envolver a equipe em seus projetos. Aos poucos, porém, foi se tornando mais agressivo. Mesmo sendo um grande gestor, ele encontrou tempo para inventar dispositivos eletrônicos. Desenvolveu o Kindle no começo do século, e depois o Echo e seu software de reconhecimento de voz Alexa. Trabalhou obsessivamente desenhando os protótipos dos aparelhos e quase enlouqueceu a equipe.

Bezos está deixando a presidência da Amazon. Qual o impacto para a empresa com essa mudança?
Você acha que só porque Jeff passou a função de CEO adiante vai deixar de interferir na Amazon? Claro que não. Ele vai participar como conselheiro do board da empresa e seguir monitorando suas operações. Quer partir para empreendimentos mais ambiciosos, na área da tecnologia espacial. De qualquer forma, o novo CEO, Andy Jassy, é conhecido como um sujeito mais descontraído e humano. Provavelmente vai fornecer um clima mais leve à vida diária da empresa. E isso só vai melhorar o desempenho da Amazon, que Jassy conhece tão bem como Jeff.

Qual foi maior fracasso e o maior sucesso de Bezos?
Ele cometeu deslizes, como reconhece, e um dos maiores foi o Phone Fire, em 2014, uma engenhoca que ninguém quis usar. Mas soube se livrar do lixo eletrônico. Também errou na implantação de filiais da Amazon na China. Na América do Sul, ele ainda não vingou. Quanto ao sucesso, é óbvio: com seu talento para gerenciar empresas e controlar e distribuir produtos em âmbito mundial, transformou o comércio via internet o negócio mais inovador e lucrativo do mundo. Não apenas isso. Impulsionou a alta tecnologia dentro da empresa, tanto em gestão de redes digitais como com aparelhos eletrônicos baratos e úteis. Não por outro motivo se tornou o homem mais rico do mundo e fez com que a Amazon, originalmente uma loja de livros, hoje concorra em algumas áreas com Google, Facebook e Microsoft.

“O novo CEO, Andy Jassy, é conhecido como um sujeito mais descontraído e humano”

Qual sua opinião sobre seu papel junto aos funcionários da Amazon?
Ele é cruel, mas essa crueldade é vista como um incentivo por seu staff. No entanto, parece ter uma obsessão por impedir que os trabalhadores dos galpões que armazenam os produtos da Amazon não melhorem as condições de vida. O governo está sempre convidando-o a prestar esclarecimentos. Os sindicatos têm tentado se infiltrar nesses armazéns, mas são impedidos. Jeff desconsidera feriados, fins de semana e até as idas ao banheiro são cronometradas.

E sua conduta com a concorrência?
É um monopolista que não vê obstáculos para chegar aonde quer. Adquiriu e incorporou uma série de empresas e colaborou para quebrar concorrentes fortes. Isso sem falar nos comércios locais, nos pequenos negócios, que a Amazon devastou, a começar pelas livrarias, até mesmo as mais tradicionais, e não apenas em solo americano. Com a pandemia da covid-19, acabou por participar da aceleração desse processo e acrescentou seis dezenas de bilhões de dólares ao patrimônio.

               "Jeff desconsidera feriados, fins de semana e até as idas ao banheiro são                            cronometradas."

Ele alimenta alguma obsessão?
Bezos nunca foi de ostentar iates, carros ou mansões de luxo. Sua obsessão é “apenas” conquistar o universo. É vencer e fulminar toda a concorrência. “Sem limites” é seu lema.  Uma de suas obsessões é o espaço sideral. Como é um cara que ama ficção científica, ele lançou o projeto Blue Origin, para levar o homem ao espaço. Vamos ver o que ele vai nos apresentar no futuro.

O que lhe falta conquistar?
Por tudo isso que conversamos, parece claro que Jeff Bezos ainda não conseguiu se impor como uma personalidade pública simpática. Ele está investindo lentamente em projetos humanitários, mas é considerado antipático pelos consumidores, ainda que eles adorem a Amazon. Bezos só não conquistou uma coisa: sua imagem pública. Ele precisa conquistar uma proeminência como líder benemérito, à maneira de Bill Gates.

“Bezos só não conquistou uma coisa: sua imagem pública”

A Amazon vai conquistar o mundo, enfim?
Não acredito nisso. Há muitas empresas de alta tecnologia que estão crescendo e que irão prosperar mundialmente. A Amazon pode continuar a pontificar por algum tempo. Mas enfrenta uma concorrência acirrada em um mercado ilimitado, cada vez mais livre de regulamentações.

Fonte: https://neofeed.com.br/blog/home/a-obsessao-de-bezos-e-apenas-conquistar-o-universo-diz-biografo-de-fundador-da-amazon/?utm_source=Emails+Site&utm_campaign=164a8c2800-EMAIL_CAMPAIGN_2021_05_31_11_25&utm_medium=email&utm_term=0_c1ecfd7b45-164a8c2800-366666249 

sábado, 29 de maio de 2021

FRANÇOISE DOLTO e a TRINDADE

José Tolentino Mendonça* 

Conversando com Françoise Dolto

A psicanalista Françoise Dolto (1908-1988) tinha, além do apartamento parisiense, onde viveu e morreu, uma casa de férias em Antibes, a que chamou “La Soledad”. Podemos imaginar a razão desse nome dado a um espaço conquistado às rotinas e fadigas, abrigo de intimidade, criação e silêncio. Um dos seus últimos livros leva também esse nome. É um volume que recolhe dispersos e uma longa conversa acerca do lugar da solidão (e, logo, sobre o desejo de comunhão), e seus efeitos sobre construção inacabada e frágil da vida.

Aí, conversando sobre a solidão, Françoise Dolto irrompe, inesperadamente, a falar da Trindade. E modo como o faz, não a partir das categorias catequéticas tradicionais, mas com a linguagem que ela sempre usou para avaliar e cuidar da vida interior, pode ser muito iluminante. Na tradição cristã, há a consciência que o discurso sobre a Trindade nos obriga a trocar as palavras por balbucios. Agostinho de Hipona, por exemplo, demorou dezasseis anos a concluir o seu Tratado “De Trinitate”, e ele próprio confessa, com algum humor: «Ainda jovem, dei início à escrita destes livros: só na velhice dei-os a público».

A simplicidade de Dolto, recorda-nos, porém, os benefícios de um modo didático de apresentar a Trindade, o que passará, certamente, pelo testar de novas linguagens. Para a reputada psicanalista, o esquema trinitário está próximo da experiência que todo o sujeito faz na organização do seu mundo interior, na maturação de si. Ela escreve: «Acho maravilhoso encontrar em Deus a Trindade, essa relação de amor a três. É algo que encontramos justamente no desejo de viver de cada um de nós. Assumimos aí o nosso papel no interior de uma situação triangular: pai, mãe, filho. […] O facto de remontar à Trindade, ou seja, aos três desejos divinos circulantes, é extraordinário, pois foi assim que fomos concebidos».

Mas não só. Em todos os «segundos nascimentos», sempre que a vida nos impele a um recomeço, seja a partir de feridas e perdas, seja a partir de encontros e esperanças, o «esquema trinitário» é-nos imprescindível. «A nossa solidão só pode ser curada quando expressa criativamente e quando ajudada por alguma outra pessoa, que cria assim uma situação triangular. Somos dois, conversamos: o terceiro é a palavra. A palavra, que vem sempre de outro, prova que somos três».

José Tolentino Mendonça
In O hipopótamo de Deus, ed. Assírio & Alvim.Lisboa, Portugal. Ed. julho de 2010, pg.105 e 106.

*Cardeal, poeta e teólogo português

Foto arquivo pessoal do administrador do blog. Na capela dos freis capuchinhos no Campo da Tuca/Poa

sexta-feira, 28 de maio de 2021

“Por vezes, o mundo precisa de uma liderança silenciosa, confiante e disponível para aprender, que escuta os outros antes de tomar decisões”

 

 Karl Moore

Com um entusiasmo nato, fala apaixonadamente sobre os estilos de liderança e a relação entre a personalidade e o sucesso. Há alguns anos, a Business Strategy Review considerou-o um dos maiores pensadores na área dos negócios. Autor de dez livros, vários artigos académicos e docente na Faculdade de Gestão de Desautels, da Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, e também no Green Templeton College, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, o seu nome está associado a programas de MBA e à formação de executivos. Aos 65 anos, é colaborador da Forbes e, no podcast The CEO Series, aborda questões estratégicas com líderes de topo. Minutos antes da entrevista, tinha feito uma palestra online na Tesla sobre o tema que dá nome ao seu novo livro, We’re All Ambiverts Now (Agora Somos Todos Ambivertidos), ou a vantagem de incorporar os pontos fortes da introversão e da extroversão no paradigma emergente na liderança corporativa.

Assume-se como um extrovertido e estudou os líderes introvertidos. Isso mudou-o?
Sim, porque fui ajustando a minha personalidade aos três sítios onde vivi: Canadá, Estados Unidos da América e Inglaterra. Quando vou a Los Angeles, sou menos ruidoso do que quando estou em Nova Iorque. Em Oxford, sou mais silencioso e sarcástico. Passei algum tempo a trabalhar no Sudeste Asiático e dei-me conta de que, no Japão, as pessoas são mais introvertidas, mas na Tailândia assumem características mais expansivas. A minha mãe é finlandesa e tenho até uma piada sobre isso: “Como distingue um finlandês introvertido de um extrovertido, durante uma conversa? O primeiro olha para os sapatos dele, o outro olha para os seus sapatos!”

O que revelaram os seus estudos sobre estilos de personalidade e sucesso?
Foi decisivo para mim ter lido o livro de Susan Cain [Silêncio – O Poder Dos Introvertidos Num Mundo Que Não Para de Falar] e trabalharmos juntos. Ao medir a percentagem de pessoas extrovertidas e introvertidas, encontramos uma curva de Bell, em que os mais reservados e os mais expansivos se encontram nas extremidades e, no centro superior da distribuição, situam-se as pessoas com características mistas. Apurei, junto de executivos a quem dava formação que, embora se definissem como introvertidos, adotavam uma postura entusiasta e amigável no contexto empresarial. Faziam-no por se terem dado conta de que não era boa ideia cruzarem-se com os colaboradores sem lhes dirigirem a palavra, correndo o risco de estes ficarem com a impressão errada: a de não estarem a ter um bom desempenho ou, pior do que isso, reagirem excessivamente a essa ausência de contacto, temendo serem dispensáveis, com prejuízo da sua motivação.

Tem-se valorizado excessivamente a imagem do líder carismático e extrovertido?
Quando eu era mais novo, ser um bom líder era sinónimo de ser orientado para o exterior, mas hoje já se reconhecem outros estilos de liderança. Hoje, uma liderança de sucesso aposta na diversidade porque as circunstâncias nos encaminham nesse sentido. Os empregadores ganham mais em ir ao encontro dos colaboradores e dos seus modos de funcionamento, pois é dessa forma que as equipas podem dar o seu melhor à empresa. Sendo um extrovertido nato, tenho vantagens em adotar a postura complementar, ou não dominante, e ouvir mais em vez de falar, alternando entre estas duas formas de expressão.

Como chegou ao conceito de ambiversão?
Entrevistei mais de 400 executivos seniores do mundo corporativo, detentores de cargos como CEO, CFO e COO, a chamada C-Suite, que ocupa o topo da pirâmide, e descobri que um terço deles pertencia a esta categoria. No final, concluí que 20% deles eram ambivertidos genuínos, reunindo características de personalidade comuns aos dois extremos do eixo extroversão/introversão.

Um pouco como ser ambidextro, uma característica natural, mas passível de treino?
Sim, é essa a raiz do termo. Dou-lhe um exemplo: jogo ténis e uso o braço direito para manusear a raquete, mas uso o esquerdo no basebol. Uma pessoa genuinamente ambidextra pode fazê-lo das duas formas, apesar de a maioria das pessoas ter um lado dominante, no universo desportivo ou noutros campos.

Com a pandemia, o que mudou na perceção da eficácia dos perfis de liderança?
Dou formação a executivos e tenho um programa de rádio onde falamos sobre gestão estratégica e tendências de liderança. Desde o início da pandemia temos vindo a constatar que não sabemos o que fazer porque nenhum de nós testemunhou isto antes, é algo completamente novo. O estilo de liderança introvertido pode fazer mais sentido durante esta fase porque permite ouvir os colaboradores, e obter mais dados numa altura em que não há respostas e é preciso encontrá-las.

Porque considera que é vantajoso cultivar traços de personalidade híbridos?
Um bom líder deve inspirar, como é próprio dos extrovertidos, mas também precisa de estar disponível para ouvir, sem se precipitar a agir, qualidades associadas à introversão. Pode contrapor e dizer “eu sou como sou” porque se desgasta a agir de formas que não lhe são intrínsecas. Ouvir é algo que cansa e requer energia. No meu caso, depois de estar duas horas a trabalhar sozinho, fico esgotado e tenho de sair para recarregar baterias a falar com pessoas. Durante o confinamento, senti falta de estimulação e tive de sair à rua só para ver pessoas. Já a minha mulher, que é introvertida e professora do Ensino Básico, chegava a casa exausta e, após um dia de estimulação, apenas queria estar sossegada em casa a conviver com o marido e a filha.

Deve ser um desafio e tanto, conviver em casal com necessidades tão opostas.

Curiosamente, é mais complicado se forem semelhantes. Imagine que ambos são como eu: é de dar em doido! Aconteceu-me com uma parlamentar tão extrovertida como eu. Estávamos à mesa e falávamos incessantemente. A certa altura, vieram perguntar-nos se estávamos bem, porque dávamos a impressão de ser um casal que não devia estar casado. Ao fim de uma hora naquele frenesi, em busca de atenção, ocorreu-nos um pensamento: “Quando é que te calas?” Não é por acaso que escolhemos introvertidos para parceiros.

Quando não se é naturalmente ambivertido, é possível treinar-se nesse sentido?
Sim, aprende-se. Um líder experiente sabe que deve comportar-se como um ambivertido para ser eficaz: alternar entre ser o centro das atenções e saber ficar na retaguarda, dando espaço ao outro. Como se diz na gíria, agir “como se” até conseguir fazê-lo naturalmente (“fake it until you make it”). O segredo está em não atingir o ponto da exaustão, fazendo intervalos para recarregar energias.

O que destaca da colaboração com Henry Mintzberg (professor de gestão no M.I.T.)?
Trabalhámos durante duas décadas e o seu modelo de estratégia acabou por vingar face ao de Michael Porter: num mundo em mudança, a estratégia que parte do topo da pirâmide para a base faz menos sentido do que aquela que emerge a partir da linha da frente, junto das bases e dos clientes. Se pensar no lockdown, com a maioria a trabalhar a partir de casa e tudo a acontecer ao mesmo tempo nesse espaço, esse cenário obrigou-nos, a todos, a aprender à medida, a partir de referenciais distintos daqueles que foram criados pelas estruturas de topo.

Pode falar-se em crise de liderança na gestão das vacinas contra a Covid-19?
É um desafio difícil, dadas as várias mudanças em curso a nível global, seja nas regras aplicadas ao uso das máscaras, nas vacinas ou nos critérios de vacinação. Por vezes, o mundo precisa de uma liderança silenciosa, confiante e disponível para aprender, que escuta os outros antes de tomar decisões. É o caso da primeira-ministra da Nova Zelândia.

Qual é o modelo de liderança que mais se adequa aos tempos em que vivemos?
Um mundo estável favorece quem é confiante na ribalta, age com rapidez e motiva pessoas numa direção. Num mundo incerto, a liderança silenciosa, que privilegia o contacto um a um e reflete antes de tomar decisões, tende a ser a mais saudável. Num evento corporativo, o líder extrovertido pode andar de mesa em mesa e trocar impressões sem grande substância durante dois ou três minutos, enquanto o líder introvertido fala com quatro ou cinco pessoas, à vez, durante 20 minutos, fazendo perguntas e ouvindo o que a pessoa tem a dizer. No final, fica-se rendido ao charme do primeiro, mas guarda-se uma impressão mais profunda daquele que nos dedicou tempo e atenção e com quem se partilharam ideias.

Colocar todos os esforços na adaptação limita as valências individuais nas equipas?
Se queremos assumir posições de liderança em tempos incertos, temos de aprender uns com os outros. Numa equipa é preciso ter pessoas com competências diversas: umas capazes de captar novas ideias, outras que estejam disponíveis para aprender e outras entusiastas, que consigam inspirar e mobilizar outros para seguir em frente.

A organização do trabalho voltará a ser como a víamos antes?
Entrevistei 60 CEO e uma das perguntas era sobre o futuro do trabalho. O modelo híbrido é aquele que colhe mais adeptos: ir ao local de trabalho durante três ou quatro dias da semana e o resto do tempo ser em teletrabalho, para poupar tempo em deslocações e estar mais tempo com a família. Mesmo que trabalhe via Zoom com os clientes atuais, é preciso fazer viagens, ir ao encontro dos clientes potenciais, tomar uma refeição com eles e identificar necessidades a fim de fazer negócios. Há ainda o desejo de socializar com aqueles que fazem parte da cultura organizacional, o que é difícil de fazer remotamente. Há quem se tenha acostumado às rotinas criadas entretanto, mas a maioria está preparada para retomar os ritmos que tinha antes e, porventura, com mais flexibilidade.

Quais são os pontos fortes em que os gestores devem apostar para ter sucesso?
O caminho é seguir a tendência natural e conciliá-la com as exigências do ramo em que operam e das especificidades do trabalho exigido. Dou-lhe um exemplo: as novas gerações são mais dotadas de competências digitais e estão bem sintonizadas com aspetos de natureza social, como o movimento Black Lives Matter ou as questões de género, acabando por ser mentoras nessas áreas, o que não acontecia há 30 anos. Os seniores devem ter isso em conta, adotar uma postura humilde e aprender com os mais novos.

Existem cuidados a ter no uso dado aos testes de personalidade, nas empresas?
Há um ditado que diz: “Se tens um martelo, vês pregos em todo o lado.” Quero dizer com isto que é sensato ter mais do que um instrumento para avaliar o que quer que seja. Eu tenho-me centrado no eixo da introversão/extroversão, um dos fatores do Big Five, o teste de personalidade mais usado no meio empresarial. Posso olhar para uma pessoa sob esse prisma, mas reconheço que os seres humanos são complexos e que não se resumem ao resultado de um teste, razão pela qual não devemos apoiar-nos exclusivamente nele para defini-los, independentemente da finalidade a que se destina.

Se tiver de recrutar pessoas para uma equipa, qual a estratégia que vai adotar?
Enquanto gestor, tenho uma abordagem diferenciada e procuro ir ao encontro da personalidade dos colaboradores. Na minha equipa, aprecio o valor das pessoas introvertidas porque compensam os meus pontos fracos.

Afirma que existem 40% de introvertidos, 40% de extrovertidos e 20% que possuem as duas características, os ambivertidos. Onde se situam os grandes líderes?
Uma vez falei com um repórter sénior sobre isso e obtive uma resposta interessante: a maioria dos líderes mundiais tende para a introversão. Richard Nixon, Barack Obama e Joe Biden caem na categoria dos introvertidos, tal como o primeiro George Bush. O segundo George Bush fica, provavelmente, no grupo dos ambivertidos e Clinton é, sem dúvida, um extrovertido. Porém, a maioria acaba por comportar-se extrovertidamente, pois quando entra em qualquer lado é o centro das atenções e tem de agir à altura das circunstâncias e do que se espera dela no exercício do cargo.

* Jornalista

 Fonte: https://visao.sapo.pt/ideias/2021-05-16-por-vezes-o-mundo-precisa-de-uma-lideranca-silenciosa-confiante-e-disponivel-para-aprender-que-escuta-os-outros-antes-de-tomar-decisoes/

O futuro dos grandes centros urbanos no pós-pandemia

 Filipe Campante*

Ainda que com mudanças importantes, o dinamismo das cidades continuará sendo um motor central da atividade econômica

O Brasil se prepara para mais uma onda da pandemia – e já é difícil saber se para a terceira, a quarta, ou apenas para a uma continuação da maré cheia de mortes à qual o país parece ter se resignado. Enquanto isso, outras partes do mundo, com governos mais efetivos e/ou preocupados com a vida dos cidadãos, já vislumbram um retorno à normalidade, como resultado dos esforços de vacinação. Em países como os Estados Unidos, a pergunta agora é: como será esse “novo normal” que ora se desenha?

Uma das grandes mudanças que a pandemia introduziu foi forçar milhões de pessoas a trabalhar remotamente. Claro que não foram todos, e longe da maioria das pessoas, mas segmentos importantes da atividade econômica – em particular as profissões de escritório que os americanos costumam chamar de “colarinho branco” (“white collar”) – viram-se repentinamente, por mais de um ano, trabalhando de casa.

Isso produziu uma descoberta: quase despercebidamente, as tecnologias de videoconferência e a qualidade das conexões haviam melhorado tanto que o trabalho remoto se revelou surpreendentemente efetivo. Mais ainda, o receio de que estar longe do escritório seria um convite a um me-engana-que-eu-gosto improdutivo mostrou-se infundado. Ao contrário, sem a necessidade de perder tempo com deslocamentos até o local de trabalho, e mesmo dentro dele, a produtividade em alguns casos pode inclusive ter aumentado. Como sugerem os economistas José Barrero, Nick Bloom e Steven Davis, o trabalho remoto veio para ficar.

Essa constatação tem levado muitos a preverem consequências negativas para as grandes cidades, em particular as “superstar cities”, como Nova York ou São Francisco, que vêm concentrando os ganhos econômicos nas últimas décadas. O raciocínio é simples: viver nessas cidades é caríssimo, dada a escassez (em larga medida artificialmente criada) de moradias. As pessoas estavam dispostas a pagar por isso porque os empregos mais remunerados também estavam lá. Mas se é possível trabalhar para Apple ou Goldman Sachs morando (e pagando preços) de Flórida, Nevada ou Montana, as vantagens de estar em Manhattan ou Silicon Valley já não são tão claras. As notícias de êxodo dos ricos dessas supercidades, no ápice da crise, e a queda dos preços de aluguéis demonstrando isso de modo mais concreto, parecem ser o prenúncio de uma mudança profunda em curso.

Mas uma análise mais cuidadosa das forças econômicas que a pandemia colocou em movimento revela que previsões dessa natureza bem podem se revelar exageradas. Primeiro, o fato de que o trabalho remoto é uma possibilidade permanente não significa que estaremos todos (ou mesmo tantos de nós) trabalhando o tempo todo de casa. A proximidade ainda importa, e é muito diferente estar em casa quando todos também estão, tal como na pandemia, do que quando os colegas estão no escritório.

Da mesma forma, a pandemia mostrou que é em larga medida possível manter vivos, ao menos por algum tempo, os relacionamentos de trabalho já construídos presencialmente. Mas por quanto tempo? E será possível criar novos relacionamentos à distância? Posso dizer por experiência própria, de longa data, que é perfeitamente possível trabalhar com coautores à distância, mas é muito raro – no meu caso, inédito – formar parcerias de coautoria sem o contato cara a cara. E encontros presenciais, ainda que de vez em quando, impulsionam a produtividade de uma forma incomparável.

As oportunidades abertas pelo novo mundo do trabalho remoto provavelmente beneficiarão aqueles lugares já conectados, e deixarão ainda mais para trás os mais isolados

O resultado mais provável é que, na maior parte dos casos, as pessoas escolherão trabalhar um ou dois dias de casa, mas indo ao escritório nos outros dias. Isso implica continuar morando, talvez não necessariamente em Manhattan ou em São Francisco, mas não além dos subúrbios dessas cidades. Isso significa que elas continuarão se beneficiando dos efeitos produtivos de aglomeração que as tornaram as potências econômicas que são.

Para além disso, as grandes cidades modernas não são apenas engenhos de produção, mas também de consumo. A qualidade dos restaurantes, do entretenimento, dos bares depende da densidade populacional: só faz sentido manter um ecossistema de restaurantes étnicos ou de produções teatrais ou de boates se há um número suficiente de pessoas dispostas a consumir esses produtos. Isso significa que as pessoas continuarão atraídas por essas amenidades que só as grandes cidades podem prover.

Claro que a realidade do trabalho parcialmente remoto vai transformar esses lugares. Se as pessoas trabalham um dia por semana de casa, isso reduz em 20% o movimento dos restaurantes no centro. Num setor que trabalha com margens de lucro apertadas, isso implica que muitos dos negócios que existiam antes da pandemia não se sustentarão no novo equilíbrio. Mais ainda, as firmas poderão abrir mão de espaço, já que haverá menos gente compartilhando escritórios a cada dia. Por conta disso, o espaço comercial será substituído por uso residencial, reduzindo os preços e contribuindo, assim, para manter a atratividade das cidades.

Tudo isso mostra que, ainda que com mudanças importantes, o dinamismo dos grandes centros urbanos continuará sendo um motor central da atividade econômica no mundo pós-pandemia.

E o que isso significa para os centros urbanos em países como o Brasil? O impacto direto do trabalho remoto também se fará sentir, embora provavelmente em menor grau do que nos países ditos industrializados. Anedoticamente, me parece que o movimento nessa direção foi menos intenso no Brasil, em parte porque setores mais afeitos ao trabalho remoto são uma parte menor da economia brasileira.

Mais incerto é o efeito indireto: se a comunicação à distância se torna mais comum, a integração econômica no plano global pode acelerar. Afinal de contas, isso pode reduzir o custo de uma companhia americana ou chinesa operar uma filial ou fazer negócios com firmas no Brasil.

As evidências mostram, porém, que o contato pessoal é um elemento essencial na promoção de elos econômicos entre cidades e países distantes. Como resultado, as oportunidades abertas pelo novo mundo do trabalho remoto provavelmente beneficiarão aqueles lugares já conectados, e deixarão ainda mais para trás os mais isolados.

O Brasil atual, epicentro da pandemia e pária mundial, encontra-se mais isolado do que nunca. Resta ver se conseguiremos sair dessa trajetória a tempo de pegar carona na nova realidade pós-pandêmica.

*Filipe Campante é Bloomberg Distinguished Associate Professor na Johns Hopkins University. Sua pesquisa enfoca temas de economia política, desenvolvimento e questões urbanas e já foi publicada em periódicos acadêmicos como “American Economic Review” e “Quarterly Journal of Economics”. Nascido no Rio, ele é PhD por Harvard, mestre pela PUC-Rio, e bacharel pela UFRJ, todos em economia. Foi professor em Harvard (2007-18) e professor visitante na PUC-Rio (2011-12). Escreve mensalmente às quintas-feiras.

Foto do Blog. Porto AlegreRS clicado do Campo da Tuca

O começo de uma nova era tecnológica e as inovações de 2020

Rodolfo Barrueco*

 

Com base nas tendências mercadológicas detectadas no ano passado e já refletidas em 2021, é possível afirmar que o futuro tecnológico está mais próximo do que imaginamos

Em 2020, a necessidade de aceleração tecnológica se espalhou pelo mundo. Enquanto céticos em relação a algum benefício que a pandemia possa ter nos trazido, não podemos negar que, ao longo de meses em isolamento, as pautas tecnológicas puderam avançar em campos até então resistentes à tecnologia, notadamente na área da medicina e da educação fundamental. Caso não fossem os aparatos e avanços tecnológicos conquistados até 2020, certamente o abismo econômico e social seria maior do que o imaginado.

Em um passado não muito distante pudemos notar que, depois de uma crise, há uma força sobrepujando os mercados econômicos de modo a criar um período de expansão da conjuntura econômica. Lembremos que após a crise de 2008, vimos nascer o Whatsapp, Square e Uber em 2009; Pinterest, Slack e Instagram em 2010. Coincidência? Talvez. Mas não seria, se pudéssemos compreender perfeitamente os ciclos de inovação nos moldes do que nos ensina Joseph Schumpeter. Ciclos inovadores nascem, amadurecem durante certo período e são destruídos por um esgotamento exaustivo até abrirem espaço a um novo ciclo.

Concentrados em uma era estigmatizada pelas mídias sociais, a partir de uma previsão vulgar qualquer, poderíamos arriscar que o próximo ciclo de inovação não se concentraria na criação de um “novo Facebook”, mas talvez na construção 3D de proteínas a partir de uma sequência de aminoácidos. Futuro distante? Certamente não. Em novembro de 2020, uma startup chamada DeepMind’s conseguiu obter a sequência 3D de modo ágil como nunca antes visto – e promete dobrar a performance em testes futuros.

A busca de tendências sobre o futuro sempre intrigou a humanidade desde épocas imemoriáveis, o que justifica a alta procura por ficção científica no campo da literatura em todo o mundo. Não podemos olvidar que nos causaria certa estranheza se soubéssemos na infância que nossas tarefas futuras teriam o auxílio de assistentes digitais, plenamente dotadas de linguagem semântica impecável e um big data capacitado para antecipar nossas perguntas e desejos, ou que a partir de dados genéticos pudéssemos melhorar a receptividade de produtos que nos fossem oferecidos via campanhas de marketing, como nos sugere a publicação de pesquisa realizada pela Wharton School of Business.

Na linha do que Amy Webb define em “The Signals Are Talking: Why Today’s Fringe Is Tomorrow’s Mainstream”, detectamos tendências futuras através de algumas percepções, que vulgarmente poderiam ser sintetizadas na necessidade por mudança, oportunidade de aprimoramento, e cenários convergentes. As tendências emergem da intersecção de forças mercadológicas que ativa e ciclicamente são construídas e destruídas. São novas manifestações que representam as colisões de novos desenvolvimentos, realizadas de modo constante ao longo de anos. Ao fim de uma era de inovação, conseguimos ter de modo holístico ampla consciência do salto à distância dado entre o começo de uma e o fim de outra.

O salto tecnológico que a humanidade deu em 2020 e dará nos próximos anos permitirá que estejamos cada vez mais perto de um futuro que outrora nos pareceu tão distante

Notemos que, conforme nossos hábitos são moldados a partir de novas necessidades, a disrupção tecnológica alcança novos ares. Por exemplo, vejamos as áreas da telemedicina e diagnósticos médicos que, por meio de suporte cloud, machine learning e tecnologia de baixo custo, têm permitido que exames sejam feitos sem a necessidade de consultas médicas tradicionais. Para dar mais cor a esse salto de inovação, destaca-se a Velieve, startup que oferece testes de detecção de infecção urinária, sincronizados a um aplicativo da marca. Depois de concluído o teste, automaticamente, um profissional médico analisa seus resultados. Em 30 minutos você recebe um diagnóstico. E, caso diagnosticado com uma provável infecção, você pode optar em receber uma receita médica em casa. Mundo futurístico? Não, esse é o nosso presente.

Em 2020, a pandemia ofuscou o brilho das novas percepções inovadoras. Um dos grandes protagonistas dessa ciranda tecnológica foram os robôs. Frotas de robôs foram implementadas em todo o mundo durante o ano. Eles higienizaram autonomamente quartos de hospitais, monitoraram pacientes remotamente, coletaram e entregaram receitas, mediram temperaturas corporais, além de ajudarem médicos em várias frentes. Um destaque do setor foi a Diligent Robotics, startup sediada em Austin, no Texas, que apostou na fabricação de robôs para auxílio de atividades rotineiras de hospitais, facilitando a vida de equipes médicas para os cuidados de pacientes com sintomas da covid-19.

Inegavelmente, os robôs se tornaram trabalhadores essenciais durante a pandemia. Mas não se tornaram mais essenciais que a busca pela “supremacia quântica”, termo nascido de um artigo publicado por pesquisadores do Google. Certamente, o ano de 2020 foi um divisor de águas para a nova busca mundial. O Google revelou que um supercomputador quântico, chamado Sycamore, conseguiu endereçar em apenas 200 segundos um desafio que tomaria cerca de 10 mil anos para ser resolvido por um computador tradicional. Em fevereiro de 2021, pesquisadores do Google estimaram que os supercomputadores serão 3 milhões de vezes mais rápidos que os modelos tradicionais. Impossível? Talvez, em um passado remoto. Hoje, não mais.

O salto tecnológico que a humanidade deu em 2020 e dará nos próximos anos, em decorrência da alteração dos cenários econômicos, permitirá que estejamos cada vez mais perto de um futuro que outrora nos pareceu tão distante. Ao permear um novo ciclo de inovação, seria no mínimo imprudente palpitarmos qual avanço se sobressairia aos outros, talvez por opções excludentes poderíamos determinar um menor grupo de possibilidades, mas ainda assim nada preciso. Inegavelmente, seja qual for a frente vencedora, não podemos olvidar que a maioria das atuais proposições tecnológicas, sempre que dentro de padrões minimamente éticos e de segurança, promovem um avanço da qualidade de vida dos seres humanos, uma maior intersecção de áreas multidisciplinares, e um aprofundamento exaustivo nas relações humanas. Com base nas tendências mercadológicas detectadas a partir de 2020 e já refletidas em 2021, é possível afirmar que o futuro tecnológico está mais próximo do que imaginamos. E que saímos de 2020 muito mais fortes do que entramos, ao menos, tecnologicamente.

*Rodolfo Barrueco é legal manager e Asia legal affairs no Ebanx e cofundador do Observa China (think tank).

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-come%C3%A7o-de-uma-nova-era-tecnol%C3%B3gica-e-as-inova%C3%A7%C3%B5es-de-2020?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo

quinta-feira, 27 de maio de 2021

‘O tempo não existe’: a visão de Carlo Rovelli, considerado ‘novo Stephen Hawking’

 O tempo não existe': a visão de Carlo Rovelli, considerado 'novo Stephen  Hawking' - 24/05/2021 - UOL TILT

Por Margarita Rodríguez.

“O tempo não existe. E eu tenho 15 minutos para convencê-los disso”, diz Carlo Rovelli, após olhar seu relógio de pulso.

Assim começa uma palestra TEDx feita em 2012 pelo físico italiano, que não costuma aparecer na imprensa internacional.

Uma das vezes em que ele ganhou destaque foi na revista britânica New Statesman, numa reportagem assinada por George Eaton intitulada “O físico rockstar Carlo Rovelli explica porque o tempo é uma ilusão”, em tradução livre.

“A determinação de Rovelli em tornar a física quântica acessível e suas prodigiosas vendas de livros o levaram a ser chamado de ‘o novo Stephen Hawking'”, destaca o artigo.

Em 2020, no evento “The Nature of Time” (A Natureza do Tempo), organizado pela revista New Scientist, o físico teórico pegou uma corda e a esticou de uma ponta a outra do palco. E pendurou uma caneta no meio da corda para marcar o presente.

Rovelli disse: “É aqui que estamos.”

Ele então ergueu o braço direito e apontou para a direita: “Esse é o futuro.” Na sequência, apontou para a esquerda: “E esse é o passado.”

“Esse é o tempo do nosso dia a dia: uma longa fila, uma sequência de momentos que podemos ordenar, que tem uma direção preferida, que podemos medir com relógios”, disse. “E todos nós concordamos com os intervalos de tempo entre dois momentos diferentes ao longo do caminho, ao longo desta linha.”

Depois acrescentou: “Quase tudo o que eu disse está errado. Em termos factuais, isso está incorreto. É como se eu dissesse que a Terra é plana”.

“O tempo não funciona assim, ele o faz de uma maneira diferente”, emendou.

E esclareceu: “Essas não são ideias especulativas que aparecem em sonhos estranhos de físicos. São fatos que medimos em laboratório, com instrumentos, e que podem ser verificados”.

‘Pura rebelião’

Nascido em Verona, na Itália, em 1956, Rovelli confessa que sua adolescência foi “pura rebelião”. O mundo em que ele vivia era diferente do que considerava “justo e belo” e, em meio a essa decepção, a ciência veio ao seu encontro.

No mundo acadêmico, o jovem pesquisador descobriu “um espaço de liberdade ilimitada”, que ele relembra em um de seus livros.

“No momento em que meu sonho de construir um novo mundo colidiu com a realidade, me apaixonei pela ciência, que contém um número infinito de novos mundos”, descreve.

“Enquanto eu escrevia um livro com meus amigos sobre a revolução estudantil (um livro que a polícia não gostou e me custou uma surra na delegacia de Verona: ‘Diga-nos os nomes de seus amigos comunistas!), mergulhei cada vez mais no estudo do espaço e do tempo, tentando entender os cenários que haviam sido propostos até então.”

Gravidade quântica

Rovelli decidiu dedicar sua vida ao desafio de conciliar duas teorias: a mecânica quântica (que descreve o mundo microscópico) e a relatividade geral de Albert Einstein.

“Para chegar a uma nova teoria, devemos construir um esquema mental que não tenha a ver com nossa concepção usual de espaço e tempo”, diz. “Você tem que pensar em um mundo em que o tempo não é mais uma variável contínua, mas uma outra coisa.”

Ao buscar possíveis soluções para o problema da gravidade quântica, Rovelli foi um dos fundadores da teoria da gravidade quântica em loop, também conhecida como teoria do loop, que apresenta uma estrutura fina e granular do espaço.

Essa teoria tem aplicações em diferentes campos – por exemplo, o estudo do Big Bang ou as formas de abordar e entender os buracos negros.

O físico italiano tem uma carreira brilhante, que inclui inúmeros prêmios e livros. Uma dessas publicações, “Sete Breves Lições de Física” (Editora Objetiva), foi traduzida para 41 idiomas e vendeu mais de 1 milhão de cópias.

Ele também foi professor na Itália, nos Estados Unidos, no Reino Unido e atualmente é pesquisador do Centro de Física Teórica de Marselha, na França.

Rovelli respondeu por escrito a algumas perguntas da BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC Mundo – O que é o tempo? Ele realmente existe?

Carlo Rovelli – Sim, claro que o tempo existe. Do contrário, o que é que sempre nos falta? Mas a ideia comum que temos sobre o que é o tempo e como ele funciona não serve para entendermos átomos e galáxias. Nossa concepção usual de tempo funciona apenas em nossa escala e quando vamos medir as coisas com muita precisão.

Se quisermos aprender mais sobre o universo, temos que mudar a nossa visão do tempo. Porque o que costumamos chamar de “tempo”, sem pensar muito sobre o que isso significa, é realmente um emaranhado de fenômenos diferentes. O tempo pode parecer simples, mas é realmente complexo: ele é feito de muitas camadas, algumas das quais são relevantes apenas para certos fenômenos, e não para outros.

BBC Mundo – O que o senhor descobriu quando se perguntou: por que só podemos conhecer o passado e não o futuro?

Rovelli – A razão de termos informações sobre o passado e não sobre o futuro é estatística. Tem a ver com o fato de não vermos os detalhes das coisas. Não vemos, por exemplo, as moléculas individuais que compõem o ar da sala em que estamos. Mas, no mundo microscópico, não há essa distinção entre o passado e o futuro.

BBC Mundo – O senhor falou sobre a elasticidade do tempo e sobre um dia em que “vivenciamos coisas diretamente, como encontrar nossos filhos mais velhos que nós mesmos no caminho de volta para casa”. Como isso pode acontecer?

Rovelli – A pergunta correta é a oposta: por que quando nos separamos e nos encontramos novamente, o seu e o meu relógio medem o mesmo intervalo de tempo?

Não há razão para que devam medir esse mesmo tempo. A experiência nos diz isso apenas porque nossas medições não são precisas o suficiente. Se fossem, veríamos que o tempo corre em velocidades diferentes para pessoas diferentes, dependendo de onde estão e como se movem. Portanto, eu poderia me separar de meus filhos e reencontrá-los em um tempo que significa apenas um ano para mim, mas 50 anos para eles. Nesse cenário, eu ainda sou jovem e eles envelheceram. Isso certamente é possível. O motivo pelo qual normalmente não vivenciamos esse tipo de experiência é apenas que nossa vida na Terra se move numa velocidade lenta entre nós e, nesse caso, as diferenças de tempo são pequenas.

BBC Mundo – Algum dia poderemos viajar ao passado?

Rovelli – Considero extremamente improvável. Viajar para o futuro, por outro lado, é o que fazemos todos os dias.

BBC Mundo – O que o senhor quer dizer com isso?

Rovelli – Viajar ao passado é difícil. Mas viajar para o futuro é muito fácil. Faça o que fizer, você está viajando sempre para o futuro: o amanhã é o futuro do hoje.

BBC Mundo – Sabemos que o senhor gosta muito de gatos e prefere não se referir ao gato de Schrödinger e a discussão se ele está vivo ou morto (ou dormindo). O senhor poderia explicar por que, segundo esse famoso experimento, o animal pode estar vivo e morto ao mesmo tempo?

Rovelli – Acho que o gato não está realmente acordado e dormindo ao mesmo tempo. Considero que, com respeito a si mesmo, o gato está definitivamente acordado ou dormindo. Mas quando se trata de mim e de você, pode não haver nem um estado, nem outro. Porque eu acho que as propriedades das coisas (incluindo os átomos e os gatos) são relativas a outras coisas e só se tornam reais nas interações com elas. Se não houver interações, não há propriedades.

BBC Mundo – Como o senhor explicou, a discussão entre os físicos da mecânica quântica não é apenas sobre o gato estar vivo e morto ao mesmo tempo, mas também sobre o experimento com dois eventos, A e B, nos quais A vem antes de B, mas também B vem antes de A. Como isso pode ser possível?

Rovelli – Quando dizemos que um evento A é anterior a um evento B, o que queremos dizer é que pode haver um sinal indo de A para B. Por exemplo, sua pergunta é anterior à minha resposta, porque me chega antes que eu possa respondê-la.

No entanto, às vezes pode acontecer que seja realmente impossível enviar um sinal de A para B, mas também impossível enviar um sinal de B para A. Então, nenhum é anterior ao outro.

A razão de não estarmos acostumados com isso é porque a luz viaja muito rápido, então tendemos a pensar que podemos ver tudo “instantaneamente”. Mas a verdade é que não podemos. Portanto, sempre existem eventos que não são ordenados de acordo com esse tempo.

BBC Mundo – O que o senhor quer dizer quando afirma que existem muitas versões diferentes da realidade, embora todas pareçam iguais em grande escala?

Rovelli – As propriedades de todas as coisas são relativas a outras coisas. As propriedades do mundo em relação a você não são necessariamente as mesmas em relação a mim. Normalmente, não vemos essas diferenças nas propriedades físicas porque os efeitos quânticos são muito pequenos. Mas, em princípio, podemos ver mundos ligeiramente diferentes.

BBC Mundo – O senhor disse que temos que reorganizar a forma como pensamos a realidade. Como podemos fazer isso? O que estamos perdendo se não tentarmos seguir por esse caminho?

Rovelli – Podemos continuar vivendo nossas vidas ignorando a física quântica, mas se estamos curiosos sobre como a realidade funciona, temos que encarar que as coisas são realmente estranhas.

BBC Mundo – A metáfora que o senhor faz sobre a mecânica quântica e sua interseção com a filosofia, como se essas duas áreas do conhecimento fossem um casal se reunindo, se separando, depois voltando e se separando novamente, é fascinante. A mecânica quântica e a filosofia precisam uma da outra?

Rovelli –Creio que sim. No passado, a física fundamental também avançou graças à inspiração da filosofia.

Todos os grandes cientistas do passado eram leitores ávidos de filosofia. Não há razão para que as coisas sejam diferentes hoje.

Na minha opinião, o inverso também é verdadeiro: os filósofos que ignoram o que aprendemos sobre o mundo com a ciência acabam sendo superficiais.

BBC Mundo – Para o senhor, o livro “A Ordem do Tempo” é muito especial porque “finge ser sobre física, mas secretamente é o meu livro sobre o significado e a finitude da vida”. Qual é o sentido da vida para Carlo Rovelli?

Rovelli – O sentido da vida para Carlo Rovelli é o que penso ser o sentido da vida para todos nós: a rica combinação de necessidades, desejos, aspirações, ambições, ideais, paixões, amor e entusiasmo, que surgem em várias medidas e em diferentes versões naturalmente de dentro de nós. A vida é uma explosão de significado.

Alguns projetaram o significado da vida fora de si mesmos e ficam desapontados ao perceber que havia algo ilusório em esperar que o significado viesse de fora.

Uma das minhas respostas favoritas a essa pergunta foi atribuída a um antigo sioux [etnia indígena norte-americana]: o propósito da vida é abordar com uma canção qualquer coisa que encontrarmos pela frente.

BBC Mundo – O senhor assinalou que na ciência muitos erros são cometidos quando fingimos estarmos certos, quando na verdade muitas vezes não temos essa certeza toda. O novo coronavírus trouxe muitas incertezas para nossas vidas. Como o senhor lidou com isso?

Rovelli – Eu tenho me esforçado não apenas para minimizar o risco para mim e para as pessoas que amo, mas também para minimizar meu próprio papel na disseminação da infecção.

Mas sabendo bem que o risco foi e continua a ser real e que milhões de pessoas morreram e ainda estão morrendo, tenho em mente que isso ainda pode acontecer comigo e meus entes queridos.

Essa constatação não deve ser motivo para pânico, mas também não gosto de esconder a cabeça na areia.

BBC Mundo – Que reflexões o senhor fez nestes tempos desafiadores para milhões de pessoas ao redor do mundo?

Rovelli – O que fico pensando é simples: não seria o momento de a humanidade trabalhar em conjunto, em vez de continuarmos a ficar uns contra os outros? O Ocidente está construindo novos inimigos: China, Irã, Rússia…

Não podemos viver de forma respeitosa e colaborativa, sem a necessidade de subjugar uns aos outros, de prevalecer sobre os outros, de vencer, em vez de cooperar para o bem comum?

A humanidade está enfrentando uma pandemia, milhões de mortes, desastres ambientais e ainda não conseguimos aprender a nos vermos como membros de uma única família, que é o que realmente somos.

A mecânica quântica é a descoberta de que a realidade é tecida por relacionamentos, mas permanecemos cegos para o fato de que prosperamos em relação aos outros, não uns contra os outros. Posso ser ingênuo, mas é isso o que penso todos os dias quando vejo o noticiário.

BBC Mundo – O senhor disse que gostou de ler “O Amor em Tempos do Cólera”, de Gabriel García Márquez, porque “nestes tempos sombrios, é bom ler sobre o amor verdadeiro”. Você pode nos contar mais sobre o que gostou no livro?

Rovelli – É um livro cheio de graça e luz. Retrata as muitas formas de amar e partilhar, com um olhar que sorri diante de toda essa complexidade.

Uma forma de amor é a lealdade da personagem Fermina Daza ao marido. Outra é a intimidade e a amizade de Florentino Ariza com dezenas e dezenas de mulheres. Mas esse amor absoluto entre ele [Ariza] e ela [Daza] é uma bela forma de amor, que foi venerado e valorizado por décadas, até que conseguiu florescer de forma maravilhosa quando os dois já estavam mais velhos.

Fonte:  http://desacato.info/o-tempo-nao-existe-a-visao-de-carlo-rovelli-considerado-novo-stephen-hawking/ 27/05/2021

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Se fosse ao divã, Brasil seria um paciente em estado de negação, afirmam psicanalistas

Especialistas veem um país em estado de negação

Joel Birman: “A polarização que se deu nos últimos três anos, o modo como a extrema direita esgrime contra tudo, tudo isso é marcado pela destrutividade” — Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo

Joel Birman: “A polarização que se deu nos últimos três anos, o modo como a extrema direita esgrime contra tudo, tudo isso é marcado pela destrutividade” — Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo

Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo

Fosse o Brasil uma pessoa, dificilmente se levantaria do berço esplêndido para se deitar em um divã. É preciso admitir a existência de problemas para buscar um tratamento psicanalítico, mas esse sujeito se encontra em estado de negação. O negacionismo, palavra tão em voga, decorre da tentativa de fugir do trauma, um núcleo perturbador, constitutivo do sujeito, que portanto todo mundo tem, em maior ou menor grau. Mas, em vez de atravessar seu trauma, essa pessoa prefere contornar o sofrimento e optar por ideias exógenas, que lhe são mais convenientes.

O Brasil já nutria uma péssima autoimagem, que agora está evoluindo para um comportamento autodestrutivo

Essa saída cobra seu preço. O sujeito age como um adolescente, embora já esteja envelhecendo, tendo acumulado questões não resolvidas de um passado doloroso, marcado por violência, autoritarismo e desilusões em série. A idade adulta chegou da pior forma, tornando esse indivíduo melancólico ou até mesmo depressivo. Mas há caminhos de cura - se o paciente aceitar ajuda terapêutica.

Mário Corso diz que o Brasil é “um país de pensamento autoritário latente que apresenta alguns momentos de democracia e bons ventos” — Foto: Reprodução/Youtube
Mário Corso diz que o Brasil é “um país de pensamento autoritário latente que apresenta alguns momentos de democracia e bons ventos” — Foto: Reprodução/Youtube

Este é um conjunto de visões descritas por psicanalistas convidados pelo Valor a imaginar um certo paciente Brasil, seus traços de personalidade, dores e crises. O exercício de imaginação foi encarado como um jogo por alguns, como Ricardo Goldenberg. Outros, como Sérgio de Castro, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, viram como válida a extensão da psicologia individual para uma dimensão social.

Embora entenda a sociologia e a antropologia como campos mais apropriados para pensar o Brasil, Goldenberg não se furta a um diagnóstico psiquiátrico: o país tornou-se um psicótico parafrênico, que é uma das manifestações da esquizofrenia.

“O indivíduo sofre de um delírio que organiza uma interpretação da realidade - por exemplo, a Terra é plana, a covid é uma gripezinha, a cloroquina cura, há um complô comunista para dominar o mundo -, mas, fora dos assuntos delirantes, raciocina e conduz a vida como qualquer sujeito normal.” Segundo ele, a condução da pandemia de covid-19 expõe uma postura esquizofrênica, pois é como se o sujeito agisse para deixar adoecer um membro do seu corpo, tomando atitudes que levam à piora de seu estado de saúde.

Francisco Daudt: O país do futuro virou uma piada porque esse futuro nunca chega. A esperança traz alento, mas também maltrata” — Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo
Francisco Daudt: O país do futuro virou uma piada porque esse futuro nunca chega. A esperança traz alento, mas também maltrata” — Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo

O psicanalista Mário Corso identifica traços de humor depressivo e lembra que o Brasil historicamente já nutria uma péssima autoimagem, como bem descreveu Nelson Rodrigues quando “diagnosticou” o complexo de vira-lata. O Brasil costuma falar mal e fazer troça de si mesmo, ao mesmo tempo que não tolera ser malfalado por alguém de fora.

Essa característica, no entanto, evolui para um comportamento autodestrutivo à medida que, segundo os especialistas, o governo promove um desmonte deliberado do seu patrimônio natural e social, como as áreas de meio ambiente e cultura. Corso cita como exemplo a Amazônia, onde as taxas de desmatamento aumentaram e a impunidade cresceu com o enfraquecimento dos órgãos de controle.

“Os discursos negacionistas são mais convenientes e fáceis de entender do que a complexidade do mundo”, diz Mário Corso

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 sob a promessa de extinguir os Ministérios da Cultura, que foi rebaixada a uma secretaria, e do Meio Ambiente, que hoje conta, segundo o Observatório do Clima, com o menor orçamento dos últimos 21 anos: R$ 1,8 bilhão previsto para 2021. No campo das negociações internacionais sobre clima, passou de ator protagonista a um pária, na visão de muitos observadores internacionais.

Para Corso, esses desmontes denotam um comportamento depressivo do paciente - que, por sinal, leva o nome de uma árvore, o dizimado pau-brasil. “O deprimido não joga fora qualquer coisa, ele abandona as coisas mais valiosas que possui. É um projeto de autossabotagem”, afirma.

Sérgio de Castro vê o trauma do sujeito-Brasil no longo período da escravidão, que autorizou o exercício de uma violência verdadeiramente desmedida — Foto: Reprodução/Youtube
Sérgio de Castro vê o trauma do sujeito-Brasil no longo período da escravidão, que autorizou o exercício de uma violência verdadeiramente desmedida — Foto: Reprodução/Youtube

Fora isso, a má gestão da pandemia, que já levou a milhares de mortes evitáveis, é mais um exemplo da manifestação do que Sigmund Freud (1856-1939) denominou de pulsão de morte, na avaliação de Joel Birman, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A polarização que se deu nos últimos três anos, o modo como a extrema direita esgrime contra tudo e a maneira como as pautas do governo Bolsonaro se organizaram desde o início, tudo isso é marcado pela destrutividade”, avalia.

Além das políticas antiambientais, Birman cita como exemplos de pautas destrutivas as tentativas de suspender o limite de velocidade, de desobrigar o uso de cadeirinhas de bebês e crianças em automóveis e de flexibilizar o porte e a posse das armas, sabendo-se que isso pode facilitar o armamento de milicianos e retirar do Estado a prerrogativa de proteger a população.

Para Birman, o clima destrutivo já tinha sido prenunciado quando o então deputado Jair Bolsonaro homenageou um torturador da ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff e não sofreu punição. Ao contrário, ganhou as eleições presidenciais dois anos depois.

No campo da saúde, a defesa por parte do governo da imunidade de rebanho - cuja eficácia é questionada pela comunidade científica e vista como possível estímulo ao surgimento de novas variantes -, o tratamento precoce com remédios com ineficácia comprovada e o desprezo pelo uso de máscaras, vacinação e isolamento social somam erros em série. Após um ano de pandemia, ainda não existe um protocolo nacional para guiar a conduta médica. Mas a declaração do presidente é de que só houve acertos no enfrentamento da pandemia.

Tania Coelho dos Santos: “Foi traumática a história do mensalão, do petrolão e tudo que a Lava-Jato desnudou. E sem comentários sobre a gestão Bolsonaro” — Foto: Reprodução/Youtube
Tania Coelho dos Santos: “Foi traumática a história do mensalão, do petrolão e tudo que a Lava-Jato desnudou. E sem comentários sobre a gestão Bolsonaro” — Foto: Reprodução/Youtube

“Isso leva ao país um sentimento de abandono e desorientação, que contribui para o estado de melancolia”, afirma Birman. “E uma das características da melancolia é a perda de perspectiva. Vive-se hoje a impossibilidade de atestar um futuro possível”, diz.

A ironia é que isso ocorre justamente no aclamado “Brasil, um país do futuro”, expressão que dá título ao clássico livro de 1941 do austríaco Stefan Zweig, radicado no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra Mundial. “Esse mito fundante do país contemporâneo, esse sonho de brasilidade, fica a cada dia mais difícil de ser sustentado”, diz Birman, para quem o paciente Brasil se transformou radicalmente nos anos recentes. “Era alegre e acreditava na sua renovação, apesar de toda a miserabilidade e a desigualdade existentes desde sempre.”

No lugar da alegria, a tristeza e o desalento são, para o psicanalista Francisco Daudt, os sentimentos dominantes hoje. “Não só pelos mortos. Difícil dizer isso, mas as mortes são o sintoma. O país do futuro virou uma piada porque esse futuro nunca chega. É como na história da procura pelo grande amor, em que a pessoa fica entre a esperança e o desalento. Ela pensa: ‘desta vez, vai’. Aí sofre a desilusão. A esperança traz alento, mas também maltrata”, diz ele.

“Tenho ouvido muito as pessoas se perguntarem se ainda acreditam em algo”, conta Tania Coelho dos Santos, professora associada da UFRJ e membro da Associação Mundial da Psicanálise. Para ela, o paciente Brasil deu-se conta de que o tempo passou e os representantes eleitos decepcionaram muito. “Foi traumática a história do mensalão, do petrolão e tudo que a Lava-Jato desnudou. E sem comentários sobre a gestão Bolsonaro e a quantidade de situações vexatórias que temos atravessado”, diz.

Para Tania, esse paciente, que foi vítima de uma credulidade jovem e esperançosa, não consegue mais imaginar o próximo capítulo. Por isso, precisa abandonar a esperança juvenil do amanhã, parar de acreditar em soluções mágicas e na retórica vazia de lideranças populistas e encarar a urgência de reformas profundas e não cosméticas. Mas se encontra envelhecido muito antes de amadurecer.

“Não tem estabilidade democrática e está polarizado pelo ódio recíproco entre grupos políticos. A sonhada igualdade perante a lei deu lugar a uma fragmentação social em grupos identitários”, diz. Segundo ela, esse paciente se comporta como um adolescente que anda em tribos, em vez de assumir a maturidade, que pressupõe a boa convivência entre grupos e visões diferentes. Prevalece a visão dual, com linhas divisórias entre o bem e o mal, entre o amigo e o inimigo. Tania explica que esse é o fundamento de toda estrutura psíquica, um modo primitivo e infantil de ver o mundo. “O esforço da civilização é superar esse juízo, para que se possa compreender que há gradações.”

Ricardo Goldenberg: “A democracia no Brasil é uma exceção. A norma é uma coisa arcaica, colonialista, uma relação de poder feudal” — Foto: Reprodução/Facebook
Ricardo Goldenberg: “A democracia no Brasil é uma exceção. A norma é uma coisa arcaica, colonialista, uma relação de poder feudal” — Foto: Reprodução/Facebook

Daudt comenta que, quando a humanidade era formada por grupos de caçadores e coletores, havia o princípio de que o estranho é sempre o inimigo. Ele vê uma regressão com a emergência desse traço primitivo: “Tudo hoje é investimento em tribo. Mesmo quando a pessoa desenvolve uma boa argumentação, frequentemente está investindo na demonização do estranho e do que lhe é oposto”.

A fragmentação em tribos, segundo Daudt, acarreta a perda de identidade nacional desse paciente-país, que passa a cultivar uma identidade tribal. Mas ele nota que o fenômeno não acomete apenas o Brasil. “A tribalização é um desses movimentos mundiais que são pendulares da humanidade. A nossa natureza humana é tirânica, a democracia é uma construção, e a tirania é um imediatismo. O imediatismo, por sua vez, é: ‘Um manda e o outro obedece’”, diz, referindo-se a uma fala de Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, a Bolsonaro.

A tribalização dos dias de hoje é reforçada por doses de dopamina que as redes sociais fornecem a esse paciente, segundo Daudt. Os “likes” alimentam os vícios. Esse paciente se vê com milhões de seguidores e percebe que as ideias horrorosas e as notícias falsas obtêm mais engajamento. E quanto menos maduro for o indivíduo, mais ele será seduzido por essa overdose de dopamina.

“Quanto mais o indivíduo causa, mais o algoritmo o premia. A treta, o insulto e a humilhação nas redes são práticas de sadomasoquismo”, avalia Daudt. Tais práticas violentas, obviamente, levam a uma deterioração na personalidade do sujeito. “O nome disso é corrupção. A corrupção não é só ladroagem, é também a deterioração, a degradação e a decadência. Quando um corpo apodrece, diz-se que ele está corrompido.”

O antídoto para a violência, portanto, está no respeito à diferença de visões e na garantia do estado de direito, dentro de um exercício democrático. E haja exercício. Sérgio de Castro lembra: “A civilização exige sacrifícios, dizia Freud”. Ou seja, esse paciente precisa fazer um esforço contínuo se quiser manter-se civilizado, porque isso não faz parte da constituição do seu ser.

Segundo Mário Corso, o Brasil não é um sujeito democrático que tem laivos de autoritarismo e tirania, mas justamente o oposto: “Um país de pensamento autoritário latente que apresenta alguns momentos de democracia e bons ventos”, diz.

Ricardo Goldenberg vai na mesma linha: “A democracia no Brasil é uma exceção. A norma é uma coisa arcaica, colonialista, uma relação de poder feudal”, diz o psicanalista. “Eu venho da Argentina e vivi a ditadura lá. O mais traumático de uma ditadura é que o Estado, a quem cabe cuidar de você, é o que o mata. Mas é cínico o suficiente para dizer que está cuidando de você. Eu vejo o mesmo discurso retornar ao Brasil neste momento, em nome do bem do povo brasileiro.”

Para entender a personalidade autoritária de que os psicanalistas falam, é preciso ir mais a fundo na história de vida desse paciente. “Não nos esqueçamos que o Brasil, ao mesmo tempo que afetuoso, é extremamente violento, e é claro que isso tem sua matriz no trauma.”

Castro explica que todo ser humano constitui a sua subjetividade a partir de um núcleo traumático, que é próprio de cada sujeito. “Todo mundo tem, cada um com seu tom, com suas particularidades.” Uma vez inscrito no período de constituição da pessoa, não se elimina. “O trauma é o núcleo de um certo disfuncionamento, a partir do qual as coisas rateiam, não funcionam bem. Do ponto de vista psicanalítico, não se trata de eliminá-lo, mas de tentar fazer disso o melhor uso possível.”

Feita a explicação, Castro apresenta uma hipótese, a de que o trauma do sujeito-Brasil está no longo período da escravidão. “A escravidão não foi só um modo de produção econômica, mas se tratou da posição de um ser humano diante de outro ser humano, o que já introduz aí um elemento forte de ordem subjetiva, portanto isso concerne à psicanálise. A convicção de que eu posso inclusive dispor da vida de outro ser humano a partir de uma decisão pessoal. Ou que eu posso encarcerar um outro ser humano à revelia e a partir de um sistema jurídico subjacente que me autoriza a isso.”

Não que todos os senhores de escravo fossem intimamente cruéis, mas a escravidão, segundo Castro, autorizou o exercício de uma violência verdadeiramente desmedida. “Será que é tão difícil perceber traços, resquícios, ecos dessa matriz traumática constitutiva do nosso país hoje em dia? Talvez não”, diz. Para Corso, o maior esqueleto guardado no armário é o da escravatura e o quanto ela ainda produz efeitos no imaginário. “O fato de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravatura [nas Américas] é uma questão que ainda não foi tratada”, diz.

A esse trauma ele adiciona o da colonização predatória. “Fico lembrando das teses do meu falecido amigo Contardo [Calligaris, psicanalista morto em março], para quem o fantasma do Brasil é a imagem do colonizador, o sujeito que veio para cá explorar sem qualquer lei, apropriar-se das riquezas e ir embora. Isso suporta a ideia do escravo, de transformar o sujeito em um objeto”, diz.

Embora não se possa apagar o trauma constitutivo, Castro afirma que há como lidar com seus efeitos de formas distintas. “A pior veia é recusar o evento traumático. O negacionismo é uma tentativa que vai variar da canalhice a uma ignorância tola de acreditar que isso tornaria aquele evento inexistente”, diz ele. Em novembro de 2020, quando o cliente negro João Alberto Freitas foi espancado até a morte em uma loja do Carrefour, o vice-presidente Hamilton Mourão, em declaração à imprensa, negou a existência de racismo no Brasil. “Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui”, disse.

Corso descreve o trauma como uma espécie de buraco negro. “Tudo que você não elabora cria um espaço de não pensamento que tende a ser repetido e não entendido. Com isso, você não integra aquilo à sua personalidade.” Ele dá como exemplo o fato de a elite do Brasil pensar que este é um país branco, enquanto os Estados Unidos e a Europa nos veem como um pais mestiço ou negro.

O psicanalista explica que um sujeito traumatizado sabe que algo traumático aconteceu, mas não tem um discurso sobre aquilo. Na falta de um discurso próprio, um discurso exógeno toma o lugar, de preferência com algo que nega o fato. “Por isso fazem tanto sucesso os discursos negacionistas, que são mais convenientes e fáceis de entender do que a complexidade do mundo. As ideologias tornam as coisas mais simples, é assim ou assado. O negacionismo ainda oferece uma autoimagem melhor do que realmente somos”, diz. Refutar a Teoria de Darwin, por exemplo, é negar que o humano é apenas uma espécie agressiva de macaco que dominou a linguagem simbólica. “No projeto darwiniano não tem Deus. Somos apenas o fruto do caos que se organizou na forma de vida. Isso é muito insuportável”, diz.

O não pensamento, ainda explica Corso, é um jeito de fugir da verdade e criar uma realidade alternativa mítica, menos sofrida. O tratamento por meio de uma terapia é deixar o paciente contar a sua história de um jeito melhor, mais verdadeiro, e fazer as pazes com os fatos. Até porque, no fundo, o Brasil sabe da subjugação de negros e do assassinato de indígenas. É um país que fundou sua base genética no ventre materno de índias e negras, ao mesmo tempo que rejeitou a cultura dessas civilizações e lhe negou direitos. “Não houve uma miscigenação real e sim com alteridade de poder e subjugação do corpo.”

Isso ajuda, segundo ele, a explicar o complexo de vira-latas. “A gente pode enganar os outros, mas não a si mesmo. Se a pessoa ficar pegando identidades emprestadas, como vai saber quem de fato é? A grande dificuldade do Brasil é de apropriar-se de sua verdadeira identidade. Gosto muito da frase do historiador e jornalista Décio Freitas: ‘Ou bem o Brasil vai ser uma democracia racial ou não será nada’. A primeira coisa que o país precisa fazer para se tratar é assumir que é mestiço.” Enquanto não fizer isso, segundo Corso, continuará achando natural a aberrante disparidade econômica entre as classes sociais que adveio desse passado escravocrata.

Para superar o complexo de inferioridade, Joel Birman afirma que é preciso entender o que de real existe na condição de vira-latas: o fato de que o Brasil é racista, cultua o racismo estrutural há quatro séculos e trata de forma desigual os diversos setores da população.

O trauma da colônia escravocrata, ao não ser elaborado, repete-se na violência da desigualdade e do autoritarismo que desembocou na ditadura, segundo os psicanalistas. Já Tania Coelho dos Santos tem uma outra visão. “Não quero desvalorizar a importância do que resta enraizado no país com relação à escravidão e não estou dizendo que a violência não exista, mas vamos comparar Estados Unidos com o Brasil”, propõe. Para ela, o Brasil tem uma grande diferença em relação a outros países por causa da miscigenação. “Aqui, não é claro diferenciar o preto do branco; nos EUA, sim. Os americanos foram mais rápidos em se livrar da escravidão e, no entanto, não se livraram da violência inter-racial”, diz.

Para Tania, o traço mais marcante desse paciente-país é a dupla moral nos campos social, econômico e sexual, que o antropólogo Roberto da Matta bem descreve. “Somos o país da desigualdade perante a lei. Temos uma lei para os privilegiados - o recorrente ‘Sabe com quem está falando?’ - e outra para o cidadão comum.” Mas ela pondera que existe uma outra face dessa desigualdade: enquanto na ocupação legal e na economia formal existem fiscalização, multas e exigências burocráticas, na cidade informal a tolerância é a regra, com flexibilidade no que se refere aos direitos dos mais pobres de ocupar ilegalmente o solo e tolerância com camelôs e biroscas.

Ela argumenta que a história da Europa e de muitos lugares do mundo é fundada na guerra e de escravização dos vencidos. “Por isso eu não costumo falar do Brasil elegendo essa questão como uma questão principal”, diz a autora de “A cabeça do brasileiro no divã” (Sephora, 2008).

Outros países, no entanto, lidaram com os traumas ligados à violência e ao autoritarismo ao longo de sua história, como a Alemanha que revisitou o nazismo e o Holocausto.

Goldenberg cita o exemplo da Argentina, que, segundo ele, conseguiu de algum modo elaborar o trauma da ditadura militar. “A Argentina transformou a Esma [Escola Superior de Mecânica da Armada], um centro de tortura daquela época, em um museu dedicado à memória dos torturados e da tortura”, diz. Para o psicanalista, o Brasil teve iniciativas como Tortura Nunca Mais e a Comissão da Verdade, mas com efeito político zero. “A Argentina, mal ou bem, botou na prisão perpétua o primeiro escalão do governo militar. O Brasil fez uma anistia geral e varreu tudo para debaixo do tapete. Isso é traumático”, afirma.

Para Birman, a Anistia foi justamente a forma encontrada pelo Brasil para não elaborar o trauma, que retorna em novas manifestações, como a recorrente negação por parte do governo federal de que houve ditadura no Brasil e a violência praticada pelas polícias. Basta ver, diz, a ação que matou 28 pessoas neste mês, na operação mais letal do Rio de Janeiro, com suspeitas de execução pelas mãos do Estado na comunidade do Jacarezinho.

“Os torturadores e colaboradores da ditadura que não foram julgados pela opinião pública ou pela ordem jurídica permaneceram nas sombras e correspondem àquilo que ficou em silêncio nos ditos porões, envergonhados de vir a público logo depois da redemocratização do país. Mas que estavam presentes na sociedade e construíram a mão de obra futura que hoje forma os milicianos no Brasil”, diz Birman.

O professor da UFRJ não vê possibilidade de se fazer uma ruptura com as marcas da ditadura enquanto não houver um pacto contra a desigualdade. Para isso, diz que as elites brasileiras, que nunca abriram mão de seus anéis, terão de perdê-los. Dar um fim à desigualdade “é retirar os anéis das elites para que elas saiam desse lugar onde só ganham, enquanto a miserabilidade cresce”. “Este é o caminho para uma cura estável. Um tratamento estrutural passa pelo combate direto à desigualdade que, inclusive, tem sido pauta de economistas de centro, não necessariamente de esquerdistas”, observa.

 

Além disso, Birman vê a CPI da Covid como uma das formas de colocar o Brasil ressentido no divã. “Não para ser um sistema irresponsável de acusações, mas no sentido de fazer uma avaliação das responsabilidades do que, como e por que aconteceu”, diz.

 

Um outro caminho terapêutico, segundo Sérgio de Castro, é indignar-se diariamente com a falta de valor da vida: “É tão impressionante e tão chocante, que todo dia de manhã é bom a gente se assustar com isso”. Mário Corso sublinha a dificuldade de ser essa pessoa chamada Brasil. “Lida com todo esse passado”, diz. Lembrando que, sem revisitar esse passado, o país do futuro não chegará mesmo.

Procurado pela reportagem, o Palácio do Planalto não comentou questões levantadas pelos psicanalistas até o fechamento desta edição.

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/05/21/se-fosse-ao-diva-brasil-seria-um-paciente-em-estado-de-negacao-afirmam-psicanalistas.ghtml