domingo, 23 de maio de 2021

William Faulkner SENHOR DO LABIRINTO

                                                           Mario Vargas Llosa*

William Faulkner 

O escritor norte-americano William Faulkner  Foto: New Films International

William Faulkner detestava os jornalistas e mentia para eles deslavadamente

Jacobo Bergareche é educado e simpático, desde que você não toque em certos temas, quando aparece sua verdadeira personalidade. Ele decidiu ir para os Estados Unidos e lá se foi. Mas não a Nova York nem a Los Angeles, como as pessoas normais - ele foi ao Texas. E o que diabo foi fazer neste riquíssimo estado de petroleiros e caubóis? Foi ver os caipiras e dançar “bem agarradinho” naqueles antros “de palavra sonora e de som agradável”.

Visitou também bilhares e bares de diversas índoles e, evidentemente, comeu nas melhores hamburguerias do mundo. Como precisava viver, armou um negócio que durou quatro anos. Além disso, conheceu Harry Ransom Center e seus quarenta e três milhões de documentos, onde acredito que passou boa parte dos quatro anos lendo e onde descobriu, entre outras maravilhas, as cartas de amor que William Faulkner escreveu à sua amante, “uma tal de Meta Carpenter”, enquanto trabalhava em Hollywood como roteirista.

Com tais materiais, acaba de publicar um romance - Los Dias Perfectos -, ameno, divertido, insolente e muito bem escrito. Jacobo acredita sinceramente que “o hábito faz o monge”, é um admirador ferrenho de Faulkner e de seus labirintos; sua história de amor e a evocação de “um dia perfeito” reproduz com graça e fantasia aquela que, segundo suas cartas, foi a aventura do autor de Palmeiras Selvagens, A Recompensa do Soldado e as demais obras-primas que conhecemos.

Em sua generosa recriação, aclimatada em Austin, Bergareche se diverte, diverte a nós, os seus leitores, e até se atreve a inventar outros fantoches inspirados nos que Faulkner enviava à sua amiga, mas os de Jacobo são melhores, porque Faulkner, que era um gênio escrevendo romances, não era um desenhista muito bom. É a primeira homenagem a Faulkner das três que encontrei, este mês, sem sair de Madri e sem buscá-los.

O segundo é León en el Jardín, com as entrevistas que Faulkner deu entre 1926 e 1962, reunidas por James B. Mariwether e Michael Millgate, e que Javier Marías publicou em sua mítica Reino de Redonda que, como se sabe, além de ser irreal, é um milagre que ainda exista, pois, embora seu catálogo seja constituído sempre por obras esplêndidas, elas se encontram apenas em certas livrarias e geralmente uma vez na vida. O livro que acabo de ler é tudo o que Faulkner não era, pois detestava os jornalistas e mentia para eles deslavadamente, confessando que havia nascido em 1826, de uma escrava negra e um jacaré, e que ambos se chamavam Gladys Rock.

Às vezes, atrevia-se a dizer barbaridades, como por exemplo, que o problema do racismo em relação aos negros se resolveria nos Estados Unidos “restabelecendo a escravidão”. Javier Marías lembra, em seu inteligente prólogo intitulado expressivamente “O que não escreveu Faulkner”, que o centenário do romancista que marcou nossa época foi comemorado no ano de 1997 e que passou quase despercebido.

O livro inclui também a mais séria e sólida entrevista que deu, e que aparece na Paris Review em 1956, de autoria de Jean Stein Vanden Heuvel, em que, diferentemente de outras, Faulkner fez um esforço para dizer realmente o que pensava, e falou do seu trabalho de escritor, um belo e raríssimo texto prazeroso de se ler e reler.

No outro extremo, estão as detalhadas conversações ocorridas na cidade de Nagano, no Japão, em 1955, onde o trancaram vários dias com professores e críticos literários, que perguntavam o que ele pensava da cultura ou das paisagens japonesas (que acabava de conhecer). Tocantes os maus momentos que o pobre Faulkner deve ter passado procurando colocar-se à altura das perguntas que lhe faziam com respostas que o mostram exatamente a anos luz do que realmente era, tentando dizer o que o seu público esperava dele, ou seja, como um homem bom e prestativo que não queria decepcionar os ouvintes, embora para isto tivesse de dizer as piores patifarias e dar as mais insinceras respostas.

Que maus momentos deve ter passado ali, com estas perguntas que lhe faziam sobre O Urso, o conto longo em que descreve como o seu personagem central vai se rendendo aos poucos ao avanço das máquinas e ao cimento das cidades que destrói seus bosques e a natureza selvagem na qual costumava viver. Não é de estranhar que Faulkner odiasse tanto as entrevistas e que poucas vezes aceitasse convites do exterior.

A terceira homenagem a Faulkner com a qual me deparei nos últimos dias visitando livrarias é uma nova tradução - a terceira em espanhol, acredito - de Absalão! Absalão!, um dos melhores e mais difíceis romances que ele escreveu e cujo tradutor, Bernardo Santano Moreno, além do texto original, inclui múltiplos adendos, como uma longa introdução, uma sinopse do livro, uma bibliografia e o mapa do condado de Yoknapatawpha, desenhado pelo próprio Faulkner.

Absalão! Absalão! é um dos mais difíceis romances escritos pelo autor, e a dificuldade tem a ver tanto com a linguagem falada por certos personagens - ou na qual eles pensam ou dialogam -, quanto com a estrutura temporal em que transcorre a história, com sua confusão de tempos e narradores, e as conexões que esta história tem com O Som e a Fúria, com as quais compartilham alguns personagens, embora as datas nem sempre coincidam.

Santano Moreno fez um bom trabalho em tudo o que se refere às formas convencionais do texto, sem dúvida, nos diálogos por exemplo, mas não nas páginas em que o romance se afasta dessas formas e explora, recria ou simplesmente inventa a maneira de falar dos camponeses e dos negros daquela região do Mississippi onde se passa a história. Não é possível recriminar isto a Santano; acredito que seja impossível traduzir tais textos sem cair na simplificação ou na irrealidade, e que todas aquelas páginas, parágrafos ou frases soltas, são simplesmente intraduzíveis, como ocorre frequentemente com a poesia que, por mais cuidadosos ou inteligentes que sejam, os tradutores jamais conseguem reproduzir nem encontrar as palavras, frases ou ideias equivalentes às originais.

Simplesmente soam diferentes em outros idiomas e, em alguns, não querem dizer nada. Em geral, os romances são todos traduzíveis e muitas vezes com excelência em outros idiomas, poucos escritores ficam à margem disto. Um deles é James Joyce, evidentemente, que, em Ulisses, inventou com luxo de detalhes todos os recursos que acabariam sendo incorporados ao romance moderno, do monólogo interior ao tratamento revolucionário do tempo ou as transformações do narrador.

Mas toda esta tecnologia foi melhor aproveitada, na prática, por Faulkner, melhor que o seu inventor, o próprio Joyce, em romances como O Som e a Fúria ou Absalão! Absalão! O caráter intrincado e escorregadio daqueles textos, nos momentos que exigem denodados esforços do leitor para entendê-los, ocorrem em circunstâncias excepcionais, mas não é possível compreender minuciosamente aquelas histórias sem estes episódios desconcertantes, e geralmente ferozes, nos quais os personagens se matam ou se castram, cometem incestos, incendeiam ou se suicidam e cometem crimes indizíveis, e não era raro que o próprio Faulkner nunca soube explicar, porque nem mesmo ele podia traduzi-los em uma linguagem convencional, natural e sem complicações. Simplesmente, como certos versos de T. S. Eliot ou Vallejo, eles não eram traduzíveis. Um dos poucos romancistas que alcançou esta dimensão foi Faulkner. Por isso, continuaremos lendo o senhor dos labirintos, deslumbrados e chocados, até o último instante. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

*É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,senhor-do-labirinto,70003720180

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