sexta-feira, 28 de maio de 2021

O futuro dos grandes centros urbanos no pós-pandemia

 Filipe Campante*

Ainda que com mudanças importantes, o dinamismo das cidades continuará sendo um motor central da atividade econômica

O Brasil se prepara para mais uma onda da pandemia – e já é difícil saber se para a terceira, a quarta, ou apenas para a uma continuação da maré cheia de mortes à qual o país parece ter se resignado. Enquanto isso, outras partes do mundo, com governos mais efetivos e/ou preocupados com a vida dos cidadãos, já vislumbram um retorno à normalidade, como resultado dos esforços de vacinação. Em países como os Estados Unidos, a pergunta agora é: como será esse “novo normal” que ora se desenha?

Uma das grandes mudanças que a pandemia introduziu foi forçar milhões de pessoas a trabalhar remotamente. Claro que não foram todos, e longe da maioria das pessoas, mas segmentos importantes da atividade econômica – em particular as profissões de escritório que os americanos costumam chamar de “colarinho branco” (“white collar”) – viram-se repentinamente, por mais de um ano, trabalhando de casa.

Isso produziu uma descoberta: quase despercebidamente, as tecnologias de videoconferência e a qualidade das conexões haviam melhorado tanto que o trabalho remoto se revelou surpreendentemente efetivo. Mais ainda, o receio de que estar longe do escritório seria um convite a um me-engana-que-eu-gosto improdutivo mostrou-se infundado. Ao contrário, sem a necessidade de perder tempo com deslocamentos até o local de trabalho, e mesmo dentro dele, a produtividade em alguns casos pode inclusive ter aumentado. Como sugerem os economistas José Barrero, Nick Bloom e Steven Davis, o trabalho remoto veio para ficar.

Essa constatação tem levado muitos a preverem consequências negativas para as grandes cidades, em particular as “superstar cities”, como Nova York ou São Francisco, que vêm concentrando os ganhos econômicos nas últimas décadas. O raciocínio é simples: viver nessas cidades é caríssimo, dada a escassez (em larga medida artificialmente criada) de moradias. As pessoas estavam dispostas a pagar por isso porque os empregos mais remunerados também estavam lá. Mas se é possível trabalhar para Apple ou Goldman Sachs morando (e pagando preços) de Flórida, Nevada ou Montana, as vantagens de estar em Manhattan ou Silicon Valley já não são tão claras. As notícias de êxodo dos ricos dessas supercidades, no ápice da crise, e a queda dos preços de aluguéis demonstrando isso de modo mais concreto, parecem ser o prenúncio de uma mudança profunda em curso.

Mas uma análise mais cuidadosa das forças econômicas que a pandemia colocou em movimento revela que previsões dessa natureza bem podem se revelar exageradas. Primeiro, o fato de que o trabalho remoto é uma possibilidade permanente não significa que estaremos todos (ou mesmo tantos de nós) trabalhando o tempo todo de casa. A proximidade ainda importa, e é muito diferente estar em casa quando todos também estão, tal como na pandemia, do que quando os colegas estão no escritório.

Da mesma forma, a pandemia mostrou que é em larga medida possível manter vivos, ao menos por algum tempo, os relacionamentos de trabalho já construídos presencialmente. Mas por quanto tempo? E será possível criar novos relacionamentos à distância? Posso dizer por experiência própria, de longa data, que é perfeitamente possível trabalhar com coautores à distância, mas é muito raro – no meu caso, inédito – formar parcerias de coautoria sem o contato cara a cara. E encontros presenciais, ainda que de vez em quando, impulsionam a produtividade de uma forma incomparável.

As oportunidades abertas pelo novo mundo do trabalho remoto provavelmente beneficiarão aqueles lugares já conectados, e deixarão ainda mais para trás os mais isolados

O resultado mais provável é que, na maior parte dos casos, as pessoas escolherão trabalhar um ou dois dias de casa, mas indo ao escritório nos outros dias. Isso implica continuar morando, talvez não necessariamente em Manhattan ou em São Francisco, mas não além dos subúrbios dessas cidades. Isso significa que elas continuarão se beneficiando dos efeitos produtivos de aglomeração que as tornaram as potências econômicas que são.

Para além disso, as grandes cidades modernas não são apenas engenhos de produção, mas também de consumo. A qualidade dos restaurantes, do entretenimento, dos bares depende da densidade populacional: só faz sentido manter um ecossistema de restaurantes étnicos ou de produções teatrais ou de boates se há um número suficiente de pessoas dispostas a consumir esses produtos. Isso significa que as pessoas continuarão atraídas por essas amenidades que só as grandes cidades podem prover.

Claro que a realidade do trabalho parcialmente remoto vai transformar esses lugares. Se as pessoas trabalham um dia por semana de casa, isso reduz em 20% o movimento dos restaurantes no centro. Num setor que trabalha com margens de lucro apertadas, isso implica que muitos dos negócios que existiam antes da pandemia não se sustentarão no novo equilíbrio. Mais ainda, as firmas poderão abrir mão de espaço, já que haverá menos gente compartilhando escritórios a cada dia. Por conta disso, o espaço comercial será substituído por uso residencial, reduzindo os preços e contribuindo, assim, para manter a atratividade das cidades.

Tudo isso mostra que, ainda que com mudanças importantes, o dinamismo dos grandes centros urbanos continuará sendo um motor central da atividade econômica no mundo pós-pandemia.

E o que isso significa para os centros urbanos em países como o Brasil? O impacto direto do trabalho remoto também se fará sentir, embora provavelmente em menor grau do que nos países ditos industrializados. Anedoticamente, me parece que o movimento nessa direção foi menos intenso no Brasil, em parte porque setores mais afeitos ao trabalho remoto são uma parte menor da economia brasileira.

Mais incerto é o efeito indireto: se a comunicação à distância se torna mais comum, a integração econômica no plano global pode acelerar. Afinal de contas, isso pode reduzir o custo de uma companhia americana ou chinesa operar uma filial ou fazer negócios com firmas no Brasil.

As evidências mostram, porém, que o contato pessoal é um elemento essencial na promoção de elos econômicos entre cidades e países distantes. Como resultado, as oportunidades abertas pelo novo mundo do trabalho remoto provavelmente beneficiarão aqueles lugares já conectados, e deixarão ainda mais para trás os mais isolados.

O Brasil atual, epicentro da pandemia e pária mundial, encontra-se mais isolado do que nunca. Resta ver se conseguiremos sair dessa trajetória a tempo de pegar carona na nova realidade pós-pandêmica.

*Filipe Campante é Bloomberg Distinguished Associate Professor na Johns Hopkins University. Sua pesquisa enfoca temas de economia política, desenvolvimento e questões urbanas e já foi publicada em periódicos acadêmicos como “American Economic Review” e “Quarterly Journal of Economics”. Nascido no Rio, ele é PhD por Harvard, mestre pela PUC-Rio, e bacharel pela UFRJ, todos em economia. Foi professor em Harvard (2007-18) e professor visitante na PUC-Rio (2011-12). Escreve mensalmente às quintas-feiras.

Foto do Blog. Porto AlegreRS clicado do Campo da Tuca

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