sábado, 23 de abril de 2011

Deixem nossa língua em paz (1)

CLÁUDIO MORENO*
O PRAZER DAS PALAVRAS
“Quem poderá nos defender?”

1 – Quem trabalha na imprensa sabe muito bem que nosso dinheiro ou nossa linguagem são assuntos que sempre mobilizam instantaneamente a atenção do público brasileiro. Não é para menos, pois desperdiçamos muitos anos a discutir mudanças na ortografia ou no padrão monetário, que entravam e saíam das manchetes com aquela persistência cíclica da praga do gafanhoto, deixando na imprensa e nas nossas vidas um rastro considerável de sua passagem. Durante quase três décadas esses dois temas, naturalmente polêmicos, serviram como uma luva para o homem público que quisesse sair da penumbra e ingressar na luz fascinante dos refletores; bastava abraçar um dos dois e dê-lhe entrevista, dê-lhe notícia, dê-lhe convite para o telejornal de domingo. Depois, a realidade tirou deles toda a graça e interesse: a indiscutível estabilidade do real criado por FHC quase nos fez esquecer a época em que o país trocava freneticamente de moeda, e a aprovação do último Acordo Ortográfico (pífio, é verdade, mas novinho em folha) esfriou, ao menos por alguns anos, qualquer outra proposta de reforma.
Ora, inspirados talvez nos modernos ideais de reaproveitamento e reciclagem, alguns políticos ladinos atinaram com outra forma de extrair ouro novo da mina da linguagem, que parecia esgotada: em 1999, o deputado Aldo Rebelo, do PC do B, apresentou um projeto de lei para proteger e defender (?) a Língua Portuguesa da ameaça dos vocábulos estrangeiros. O estardalhaço foi enorme, como era de esperar, e o projeto, apesar da pobreza constrangedora da justificativa apresentada (o deputado se limita a citar a opinião enviesada de um antigo gramático – um, não dois, nem três: apenas um), apesar da condenação que recebeu de todos os linguistas deste país, foi aprovado – para inglês ver, é claro, pois jamais poderá ser posto em prática, e dorme agora, talvez para sempre, nas gavetas do Congresso, depois de ter rendido a seu autor uma colossal exposição jornalística.
A quem me perguntava, na época, por que teriam os congressistas aprovado um tamanho disparate, minha explicação era muito simples: grande parte deles tinha caído numa engenhosa jogada de marketing (Epa! Bata na boca, seu herege, e troque isso já – marquetingue, ou márquetin, ou mercadologia, sei lá – mas troque!): a expressão “defesa da Língua Portuguesa”, ostentada como bandeira por Aldo Rebelo, escondia um sutil truque de lógica, uma “petição de princípio”, porque pressupunha como fato indiscutível que ela estivesse sendo ameaçada. Pronto! Habilmente contrabandeada, a ideia (que é falsa, como veremos) despertava em todos uma reação natural de apreensão: “Bem, se nosso maior patrimônio cultural corre perigo, quem poderá se omitir?”. Assim é covardia! Ninguém tem coragem de ser oposição numa hora dessas, ninguém vai querer ficar, como filho ingrato, impassível e indiferente quando a língua-mãe é ameaçada (e mãe ameaçada, como todo mundo sabe, pega muito mal no imaginário popular)...
2 – Pois não faz muitos dias fiquei sabendo da cansativa possibilidade de mais uma vez ser apresentado outro projeto de lei, do mesmo calibre, agora em âmbito estadual, prometendo novamente aquilo que ninguém está autorizado a fazer: “defender” a Língua Portuguesa do mau uso que seus falantes fazem dos vocábulos de origem estrangeira – em outras palavras, defender os falantes daquilo que eles mesmos resolveram fazer. “Lá vamos nós de novo”, pensei – “só que desta vez os deputados, alertados pelo fiasco da primeira tentativa, vão rejeitar a estrovenga”. Ledo engano! Escrevo estas linhas já ciente de que o projeto, tão equivocado e autoritário quanto o anterior, foi aprovado nesta terça-feira por dois votos, numa decisão que não honra a tradicional qualidade da Assembleia gaúcha.
O projeto é equivocado porque se baseia no princípio ingênuo de que os vocábulos estrangeiros são usados por razões fúteis, quando haveria em nosso léxico vocábulos legitimamente vernáculos que poderiam cumprir o mesmo papel – o que, como veremos, é falso, já que eles são importados exatamente por expressarem nuanças de significado que os nossos não conseguem transmitir. E é autoritário porque a liberdade de expressão proclamada por nossa Constituição e pela Declaração dos Direitos do Homem implica para cada cidadão o direito de escolher os termos que julgar mais adequados para expressar seu pensamento – e nenhuma lei poderá proibir que ele resolva fazer isso usando vocábulos estrangeiros, expressões regionais, gíria ou até mesmo formas condenadas pela língua culta padrão. O triste é que o PC do B, sem se dar conta da contradição, aceite defender aqui um tipo de lei que, na Europa, figura no programa dos partidos de extrema-direita – mas sobre isso falaremos na próxima coluna.
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*Professor. Escritor. Colunista. Ensaista brasileiro.
Fonte: ZH online, 23/04/2011

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