segunda-feira, 11 de abril de 2011

Na era da riscofobia, queremos controlar todos os perigos da vida

ENTREVISTA LUIS DAVID CASTIEL
Paula Giolito/Folhapress
O médico Luis Castiel na Escola Nacional de Saúde Pública,
da Fiocruz, no Rio

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PARA MÉDICO EPIDEMIOLOGISTA,
"INDÚSTRIA" DA AVALIAÇÃO DE RISCOS
GERA A ILUSÃO DE QUE É POSSÍVEL
BLINDAR A SAÚDE

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O médico Luis David Castiel trabalha em um prédio com janelas blindadas. É a Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, em Manguinhos, zona norte do Rio. "Chamam de faixa de Gaza."
Como epidemiologista, ele estuda os fatores associados à difusão ou à prevenção de doenças -os chamados fatores de risco.
O que é parte de seu cotidiano e objeto de estudo é também alvo de suas críticas.
Para ele, há uma visão quase catastrófica da saúde, que torna as pessoas reféns de prescrições, exames e hábitos impostos e restritivos.
De sua sala blindada, ele falou à Folha sobre os perigos de hipervalorizar o risco.

Folha - Não é contraditório um epidemiologista questionar o conceito de risco? Luis David Castiel - Hoje em dia, a gente tem que justificar o papel da crítica. A academia está se tornando um local produtivista, e a crítica atrapalha o bom andamento dos trabalhos e resultados. Estamos numa era, para usar o clichê, da medicina baseada em evidências.
E qual o problema com a chamada "evidência"?
Vou ficar meio pernóstico, mas tudo bem: a evidência parte de um pressuposto de que a realidade é uma coisa autônoma, definível e independente da gente. Há uma espécie de premissa que não é esclarecida. E há também uma produção de evidências que está diretamente ligada à produção de mercadorias: remédios, equipamentos...

O conceito de risco em saúde também tem esse lado?
Tem, ele cria uma indústria de avaliação de risco que vende segurança. Vi uma propaganda de uma companhia de seguros que dizia: "Vai que...". Quer dizer, vai que acontece, então você não pode relaxar, tem que ficar atento. Isso aumenta a ansiedade em relação ao risco, que gera o impulso para fazer algo, ter ou consumir algo que possa controlá-lo.

Esse é o principal problema das avaliações de risco?
Tem também um lado opressivo que me incomoda. Uma dimensão moralista, que rotula as pessoas que se expõem ao risco como displicentes e que, portanto, merecem ser punidas [pela doença], se acontecer o evento ao qual estão se expondo.
Estamos à mercê dessa prescrição constante que a gente tem que seguir. Na hora em que você traz para perto a ameaça, tem que fazer uma gestão cotidiana dela. Não há como, você teria que controlar todos os riscos possíveis e os impossíveis de se imaginar. É a riscofobia.

Há um meio do caminho entre a fobia e o autocuidado?
A pessoa tem que puxar o freio de emergência quando achar necessário, decidir até que ponto vai conseguir acompanhar todos os ditames da saúde.

E a valorização do estilo de vida saudável?
Parte da ideia de que você tem que estar atento para todos os perigos e segurar a onda, ou segurar "a franga", porque a proposta é uma vida contida em um contexto de muitas ofertas de risco. Você tem simultaneamente ofertas de prazeres gastronômicos e o discurso de contenção da alimentação saudáveis.

Quais as consequências?
A mais marcante é o grau de ansiedade que isso gera, que pode se manifestar de maneiras variadas.

"Na saúde, a vigilância constante,
o excesso de exames criou
uma nova categoria:
a pessoa não está doente,
mas não é saudável.
Está sob risco."
Como, por exemplo, os distúrbios alimentares?
Sim, porque o distúrbio alimentar é um jogo entre a ansiedade e o controle. O jogo se manifesta em todas as esferas da vida. No Rio, onde eu moro, há a ansiedade da segurança. Esse episódio na escola de Realengo vai hipervalorizar isso, as pessoas vão querer o controle, cercar as escolas, não sei. É a ilusão da blindagem, mas você não pode blindar o seu corpo.

E quando surgem ameaças como o vazamento de radiação da usina no Japão?
Aí não tem jeito, é só pânico. As pessoas apostam tudo nos avanços tecnocientíficos, mas, quando você compra a tecnologia, o acidente vem junto. Quando acontece, reforça a ideia de que a gente pode ser contaminado tanto por dentro quanto por fora, e precisamos estar constantemente preparando nossas defesas para o que vier.

É um discurso de guerra?
Exatamente. E temos uma nova guerra, como a que foi criada pelo [ex presidente dos EUA] Bush, que é a guerra preventiva. Você não tem elementos claros sobre o perigo real, mas, na dúvida, faz uma intervenção. Na saúde, a vigilância constante, o excesso de exames criou uma nova categoria: a pessoa não está doente, mas não é saudável. Está sob risco.

RAIO-X

NOME E IDADE
Luis David Castiel, 60
FORMAÇÃO
Médico pela UFRGS e doutor em saúde pública pela Universidade de Alicante (Espanha)
ATUAÇÃO
Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública
LIVRO
"Correndo o Risco - Uma Introdução aos Riscos em Saúde" (Ed. Fiocruz, 135 págs., R$ 15, com Maria Cristina Guilam e Marcos Santos Ferreira)
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Reportagem por: IARA BIDERMAN DE SÃO PAULO
Fonte: Folha online, 11/04/2011

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